Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: Colossenses 1.11-20
Leituras: Jeremias 23.1-6 e Lucas 23.33-43
Autor: Uwe Wegner
Data Litúrgica: Domingo Cristo Rei
Data da Pregação: 24/11/2013
O Domingo Cristo Rei é o último do ano eclesiástico, antes dos quatro domingos de Advento. A origem da festa do Cristo Rei remonta a 1925. Ela foi instituída pelo papa Pio XI. A alusão ao Cristo “Rei” tem dado margem a críticas: Seria esse um título adequado para expressar o domínio universal de Deus e Cristo? Pessoalmente, Jesus falou de reinado de Deus, mas não chegou a exaltar Deus como “rei” nem a empregar os termos “reinar” ou “régio” para Deus. Aparentemente, os “reis” eram uma metáfora inadequada para Deus, pois sua prática era contrária ao que Deus fazia (Mc 10.42; Dt 17.14ss; 1Sm 8). Os reis não serviam ao povo, mas se serviam do povo. Nada melhor do que uma Palestina rural e endividada para poder sentir essa realidade em toda a sua nudez e crueza. E foi em meio a ela que Jesus passava a maioria de seus dias. Haverá outras metáforas mais “neutras” e condizentes com a verdadeira natureza serviçal e democrática da soberania universal exercida por Cristo? Paulo Suess sugere como alternativa “democracia participativa do reino de Deus”, outros simplesmente “soberania” (e não “soberania real”), já que os poucos reinados monárquicos ainda existentes estão em franca extinção e pouco dizem a pessoas latinomericanas, que vivem em repúblicas mais ou menos democráticas. Some-se a isso o fato de o próprio Cristo ter enfatizado não ser o seu reino deste mundo (Jo 18.36) e que também a sua paz não é dada como o mundo a dá (Jo 14.27). Ou seja: se alguém quiser falar de Cristo Rei, do reinado de Cristo, precisa estar ciente de que se trata de um reinado e rei diferentes dos que o mundo tem a oferecer.
É para esse detalhe que também sinalizam os textos adicionais previstos para leitura neste domingo: Jeremias 23.1-6 e Lucas 23.33-43. Jeremias compara a função dos governantes (“reis”) à de pastores e constata: os que pastoreavam Israel não cuidaram de suas ovelhas, mas as afugentaram e, em vez de conservá-las unidas, as dispersaram. Ao contrário disso, o “rei que reinará” da parte de Deus “agirá com sabedoria, executará o juízo e a justiça na terra”, trazendo a Judá a salvação e uma habitação segura e sem medo em sua terra. Isso evoca de imediato a insegurança gerada por nossas autoridades estatais (os atuais “reis” governantes), ante cuja prática a população, em vez de se sentir segura, sente-se refém da ameaça e do perigo de bandidos e assaltantes. Além disso, muitos de nossos dirigentes, em vez de governar com justiça, apresentam currículos manchados por toda sorte de corrupções, favorecendo uma prática de impunidade e desrespeito às leis. Também Lucas 23.33-43 mostra a alteridade do reinado de Jesus quando comparada aos reinados deste mundo. Pois Jesus se apresenta, antes de sua ressurreição, como “rei” impotente, condenado e crucificado. Salvou outros, mas não conseguiu salvar a si próprio (Lc 23.35ss).
O texto pode ser subdividido em três partes:
V. 11-12 – Oração para o fortalecimento dos colossenses na perseverança e paciência, com alegria.
V. 13-14 – Cristo como libertador do império das trevas, trazendo a redenção em forma de perdão de pecados a todas as criaturas.
V. 15-20 – Hino cristológico: Cristo como mediador da criação e redenção.
V. 11-12 – Oração de intercessão: Paulo ora pela perseverança/constância dos fiéis e por sua paciência (Almeida: longanimidade), em alegria. É dessa força que eles necessitam se pretendem dar frutos de boas obras e crescer no conhecimento de Deus (v. 10). A oração por constância/perseverança dos cristãos sinaliza que sua tentação reside num possível enfraquecimento e desânimo nessa jornada de crescimento no amor ao próximo e conhecimento do divino. Esse é um fato conhecido. É muito fácil perder a alegria na prática do amor: pode acontecer quando ele não é correspondido ou quando é mal-agradecido ou quando procura aproveitar-se de nossa bondade. Também uma progressão no conhecimento de Deus precisa de constância e paciência. Às vezes, é difícil entender Deus e encontrar explicação para muitas coisas; em outras ocasiões, deparamo-nos com tantas religiões e tantas confissões cristãs, que ficamos em dúvida ou céticos quanto à verdade de nosso próprio conhecimento.
V. 13-14 – Cristo como libertador do império das trevas: Estes versículos dão testemunho da libertação efetuada por Cristo. A libertação é interpretada com a metáfora de um transporte ou, caso se queira, de uma transferência ou passagem. O verbo usado é metistemi, que significa remover de um lugar para outro, transferir. O reinado ou império para o qual os cristãos foram transferidos é o do amor. Onde eles se encontravam escravizados é denominado de “império da escuridão ou das trevas”, que, por dedução, representa a existência de um governo de desamor, com todas as suas sequelas por nós conhecidas e que Paulo numera em diversos textos, a começar pela própria carta (Cl 3.5,8; cf. também Rm 1.29- 31; 13.13; 1Co 5.10s; 6.9s; 2Co 12.20s etc.): calúnia, maus desejos, avareza, prostituição, corrupção, brigas, falta de compaixão. O v. 14 atribui essa situação catastrófica, que representa o “poder das trevas”, ao pecado humano. Os cristãos são chamados à responsabilidade por Deus. O pecado não é simplesmente esquecido ou desconsiderado, mas perdoado. Há outras maneiras de lidar com a culpa: há religiões que defendem que a culpa não pode ser “perdoada”, mas deve ser “paga” ou “expiada” ou “compensada” por quem a cometeu. Outras acham que ela não é de responsabilidade direta das pessoas que cometem os pecados, mas de poderes ou espíritos malignos, aos quais se encontram escravizadas. Diante das tendências mencionadas, a fé cristã proclama que o perdão divino representa uma Domingo Cristo Rei condição de leveza e alívio para a vida do cristão e para um reinício de vida sem o ônus de dívidas passadas, em que regem o amor e a solidariedade.
A considerar cabe, por último, ainda o emprego da própria metáfora: transferência. Salvação é transferência, é deslocar-se ou ser deslocado de um lugar para outro, de uma condição para outra, de uma prática para outra. Em Colossenses 3.9s, é empregada outra metáfora: a do despojamento, do revestir-se – tirar uma roupa velha e suja e colocar indumentária nova, diferente. Metáforas assim querem lembrar: salvação nunca deixa a pessoa como era e no lugar em que se encontrava; a salvação só começa a tornar-se realmente prática em pessoas que se deixam transformar e modificar, que se despojam da maldade, para revestir-se de bondade, que saem da ganância e da soberbia para ser transferidas à esfera da solidariedade e simplicidade. É o que frisa por mais de uma vez a própria carta: Colossenses 1.21-23; 2.8-23; 3.5-17.
V. 15-20 – “Hino” cristológico: Neste trecho, o autor da carta exemplifica 1.13-14 com o recurso a uma tradição poética provavelmente já existente antes dele e que ele repassa à comunidade dos colossenses. Que em Colossenses 1.15-20 se trate de uma exaltação cristológica em forma de poesia usada pelo autor depreende-se por certa métrica e pelo fato de a linguagem fazer amplo uso de conceitos não mais usados em Colossenses ou então empregados unicamente nesses versículos em todo o Novo Testamento. O texto é concebido por alguns como “hino” da cristandade primitiva, por outros como “salmo cristológico” e por terceiros ainda como “louvor a Cristo”. Geralmente, o trecho é subdividido em duas partes:
Primeira parte: v. 15-18a
Cristo: mediador da criação
Ele é a imagem do Deus invisível […]
Porque nele foram criadas todas as coisas […] sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele é antes de todas as coisas. Nele todas as coisas têm consistência. Ele é o cabeça do corpo da igreja.
Segunda parte: v. 15b-20
Cristo: mediador da redenção
Ele é o princípio, o primogênito de entre os mortos, para em todas as coisas ter a primazia, porque aprouve a Deus que nele residisse toda a plenitude […] e que, havendo feito a paz [pelo sangue da sua cruz], por meio dele reconciliasse todas as coisas […]
a) Cristo como mediador da criação: Na primeira parte, o destaque é dado a Cristo como mediador e sentido último da criação. Todas as coisas foram criadas nele, por ele e para ele (cf. também Rm 11.36; 1Co 8.6). Cristo assume aqui o papel que, no judaísmo, assumia uma grandeza, como, por exemplo, a sabedoria, cuja existência desde a eternidade e participação ativa na criação do mundo são afirmadas em textos como Provérbios 8.22ss. A pressuposição do texto é que Cristo, como participante da divindade, é preexistente (Jo 1.1-3,14; 17.5; 1Jo 1.1).
Dentro da Carta aos Colossenses é acentuada a criação por e para Cristo dos poderes que regem o mundo: “tronos, soberanias, principados, potestades” (v. 16). Em Colossenses 2.8,20 (cf. Gl 4.3,9), Paulo inclui também os stoicheia tou kosmou (elementos/rudimentos do mundo: em regra, eram interpretados como os elementos da terra, fogo, água e ar, que regiam e condicionavam a vida das pessoas) e, em 2.18, os angeloi (“anjos”), que na comunidade eram objeto de adoração. Paulo não define mais exatamente esses poderes que podem escravizar negativamente as pessoas, como se depreende de Colossenses 2.8ss,16ss,20ss. Mas a afirmação do hino é categórica: legitimidade qualquer poder só tem na medida em que atende e corresponde a seu propósito criacional, que é contribuir para o poder e o engrandecimento daquele que tudo rege e sustém – Cristo, o amor encarnado de Deus. É seu amor mostrado na cruz que revela a verdadeira natureza de qualquer poder: um poder, quando regido por interesses egoístas e fraudulentos, não subsiste ao critério da cruz – é ela que consegue re-velar, expor publicamente e manifestar a verdadeira natureza de autoridades, governos e instituições: Colossenses 2.15.
Em segundo lugar, a afirmação de que “tudo” foi criado por Cristo e para Cristo representa também – pelo menos indiretamente – um atestado de validação para a materialidade e corporalidade de coisas e pessoas. O cristianismo, ao contrário de várias religiões, não anela por uma libertação do corpo físico e material, mas por sua redenção e vivência plena. Transparece a importância ecológica do hino. No v. 17, afirma-se: em Cristo “todas as coisas têm consistência” (assim a tradução da Bíblia CNBB; outra tradução: “subsistem” [Bíblia de Jerusalém; Almeida]). O verbo grego é synistamai (do que se deriva o substantivo systema = “sistema”). A ideia é que em Cristo toda a criação forme um “sistema” integrado, em que as partes são interdependentes. A Nova Tradução na Linguagem de Hoje traz para o v. 17: “Antes de tudo ele já existia, e, por estarem unidas com ele, todas as coisas são conservadas em ordem e harmonia”. Essa é uma tradução interpretada que, assim nos parece, atinge em cheio o sentido cristológico da criação: se a criação foi por Cristo e para Cristo, estará cunhada por respeito e cuidado recíprocos entre as criaturas e a criação; do contrário, haverá desrespeito, opressão e devastação.
b) Cristo como mediador da redenção: Pressuposição para a mediação da redenção por Cristo é que nele reside “toda a plenitude”. Por Colossenses 2.3,9 ficamos sabendo que essa plenitude se refere à plenitude divina. Pode-se, pois, interpretar: em Cristo tudo o que Deus representa e é adquiriu sua expressão máxima; ele é a transparência máxima do que Deus é e significa. Em palavras joaninas: Cristo e Deus são um (Jo 17.11,21s). A salvação é descrita no v. 20 com a metáfora da reconciliação: a reconciliação proporcionada por Cristo – agora ressuscitado – devolveu a paz às pessoas. A mediação para a reconciliação foi o “sangue da sua cruz” – esse sangue, segundo Colossenses 2.13s, gerou perdão para todos os nossos pecados, ou seja, para nossa dívida com Deus.
O texto aborda três temáticas principais. Elas poderiam ser exploradas separada ou conjuntamente para uma prédica.
1 – Há uma afirmação básica: toda a criação não é mera casualidade, mas tem uma origem e um propósito cristológico, e isso não significa outra coisa senão salvífico. Ora, pela revelação histórica de Cristo sabemos que ele veio para que haja vida em abundância e para que o amor a Deus e a todas as pessoas indistintamente seja o que oriente e inspire nossos corações. Daí podemos dizer que todas as coisas e poderes estão destinados exatamente para esses dois propósitos cristológicos básicos: fomento à vida e vivência da solidariedade. Quando poderes os difundem, fomentam e defendem, têm legitimidade cristã. Mas, quando eles agem contrários a essa “marca” de Cristo, são devidamente desmascarados pela cruz e pelo que representou o sangue de Jesus ali derramado (2.14s). Para a cristandade, essa confissão cristológica traz duas consequências:
a) Comunidade cristã terá sempre uma relação de proteção e cuidado com a totalidade do mundo criatural de Deus/Cristo, tanto humano como vegetal, animal ou mineral. A preservação da vida é um marco inconfundível de Jesus (Jo 10.10);
b) Comunidade cristã terá sempre uma relação de abertura crítica diante dos poderes constituídos na forma de autoridades, leis, constituições, sistemas sociais e políticos etc. O amor e a cruz de Cristo são os critérios pelos quais poderes vigentes podem ser afirmados e apoiados ou devem ser denunciados e combatidos. Os poderes, segundo Colossenses 1.16ss, não são ruins por natureza, mas podem sê-lo por abuso e perversão de autoridade. Sua razão legítima e última é servir à vida e à solidariedade. Quando não o fazem, são expostos publicamente como maléficos pela cruz de Cristo.
2 – A salvação como afastamento do reino das trevas para uma prática de amor e solidariedade (1.13-14): a salvação pode ser presentificada. Para viabilizá-la, é necessário que a gente se deixe “transportar” de um lugar antigo (“reino das trevas”) para um lugar novo e uma práxis nova (“reino do Filho do seu amor”). Jesus diria: É preciso se converter (Mc 1.14s). Não é possível sair de trevas sem se deslocar. Não é possível viver salvação sem dar adeus a uma vida egoísta de desamor e desrespeito. Isso vale também e em especial em relação aos poderes constituídos.
3 – São necessárias constância e paciência, com alegria, para viver a nova vida com sobriedade e sem ilusões. Em sua oração pelos colossenses, Paulo pede a Deus que lhes dê perseverança/constância e paciência em sua nova vida como crentes e salvos por Cristo. Paulo é sufi cientemente realista para saber que mudanças de vida pressupõem, na maioria das vezes, processos difíceis, cunhados por fortes resistências interiores e exteriores. Pensemos nas muitas mudanças necessárias na esfera da política. Como é difícil o processo de minar um sistema clientelista e favorável a corrupções de todo tipo! E quantas vezes processos alvissareiros em andamento sofrem revezes por mínimas razões, e toda a luta sociopolítica necessita começar da estaca zero. Em casos como esse, é muito fácil perder a paciência e simplesmente desistir da luta por mudanças.
A prédica poderia tematizar um ou dois desses pontos, mas também todos eles. Nesse último caso, talvez seria bom ter em mente sempre uma e a mesma temática, como, por exemplo, a condição dos “principados, potestades e poderes”, considerando-se sua criação por e para Cristo. Exemplificando, uma prédica com referida temática poderia desenvolver:
(1) O sentido e a razão da existência de principados e poderes (governos, governantes, leis, instituições, sistemas políticos e socioeconômicos etc.), considerando- os como criação de Cristo e para Cristo (lembrar Jo 10.10; Mc 12.30s; também textos como Mc 10.41-45; Jo 18.36 etc.).
(2) A necessidade de mudança de conduta e valores para adequar governos, instituições e governantes ao exercício evangélico de autoridade. Aqui caberia apresentar algumas barreiras ou impedimentos concretos que necessitariam ser removidos para que uma nova prática de solidariedade e justiça possa ocorrer. O que está a impedir que passemos de um “reinado das trevas” para um governo que traz as marcas do Filho amado de Deus? Qualquer conversa despretensiosa com políticos a esse respeito poderia fornecer à pregação uma riqueza de exemplos.
(3) A exigência de paciência e perseverança diante do ritmo geralmente lento das mudanças.
Pensamentos ou provérbios relacionados com
Perseverança:
Fracassar não é cair, é recusar-se a levantar (provérbio chinês). Uma prova de que Deus está conosco não é o fato de que não venhamos a cair, mas que nos levantemos depois de cada queda (Santa Teresa de Ávila).
Tudo o que é nobre é difícil de ser alcançado (Benedictus de Spinoza).
Paciência:
O homem que remove montanhas começa carregando pedras pequenas (provérbio chinês).
Corrupção (uma verdadeira chaga na política):
Enquanto houver impunidade, nunca teremos sucesso no combate à corrupção (Itacarambi, Ethos).
A corrupção cresce à medida que a população se cala (Ronaldo Marcelo Kravicz).
A corrupção é como o câncer: quanto maior a demora em estabelecer o diagnóstico e iniciar o tratamento, menores são as chances de cura (Alcione Alvez).
Para os subsídios litúrgicos, remetemos aos Manuais de Culto
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).