Proclamar Libertação – Volume 34
Prédica: 2 Samuel 11.26-12.10, 13-15
Leituras: Lucas 7.36-8.3 e Gálatas 2.15-21
Autor: Haroldo Reimer
Data Litúrgica: 3º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 13/06/2010
O entrelaçamento temático do culto é pecado, perdão e possibilidade de nova vida. Para isso indicam claramente os dois textos de leitura e o texto proposto para a pregação.
O texto do evangelho, Lucas 7.36-8.3, narra a história da mulher que ungiu os pés de Jesus durante uma refeição na casa de um homem chamado Simão. Dela se afirma que muito havia pecado e que, em consequência do gesto como expressão de sua fé, muito lhe foi perdoado. Exatamente o gesto de derramar o bálsamo sobre os pés de Jesus é expressão da dimensão da entrega gratuita por amor e reconhecimento da messianidade de Jesus.
O recorte do texto paulino em Gálatas 2.15-21 ressalta a dimensão da justificação pela fé em ou de Cristo Jesus. Assumir a caminhada na fé implica seguimento do caminho de cruz; é solidariedade com os que sofrem no pecado e na dor; mas é também solidariedade na recepção da graça que possibilita um novo viver.
O texto da pregação põe em destaque a figura de Davi. Nessa figura paradigmática da história hebraica se discute o tema central do culto: pecado, perdão e possibilidade de nova vida. Esse texto, contudo, acrescenta ainda de forma marcante a dimensão da ação profética da denúncia dos desmandos de Davi feita por Natã. É a denúncia que possibilita a consciência da situação de pecado, e essa gera a possibilidade para nova possibilidade. Portanto falar sobre pecado, perdão e nova vida não deveria esquecer essa faceta importante da profecia bíblica, que é a denúncia de situações entendidas como “pecado”. O olhar profético está dirigido a práticas concretas e não somente à sua interpretação, quiçás até bem subjetiva.
O texto de 2 Samuel 11.26-12.10,13-15, previsto para a pregação neste terceiro domingo após Pentecostes, coloca em cena dois tipos ideais da historiografia bíblica: o rei e o profeta. Em termos concretos, os personagens da perícope a ser explicitada ao modo de pregação põe em cena o rei Davi e o profeta Natã. Na disputa entre os dois, na forma de uma “parábola”, é colocada em cena uma outra figura: o camponês empobrecido (hebraico: rash), apresentado como vítima dos desmandos de um homem rico. Esse é interpretado logo a seguir como sendo figura representativa do próprio Davi.
O texto apresenta uma densidade própria. Vários fios de uma narrativa mais ampla estão aqui condensados. Ao ler esse recorte ou essa perícope, há que se ter presente que o texto está tecido dentro de uma trama literária maior. Trata-se da chamada Obra Historiográfica Deuteronomista, a qual busca descrever traços da história do povo hebreu desde a entrada na terra de Canaã, passando pelas experiências do tribalismo e das monarquias até a perda da autonomia política e da própria terra com a destruição de Jerusalém em 586 a.C. e a subsequente experiência do exílio. O “autor deuteronomista” que conta essa história situa-se numa espécie de metaponto do futuro na situação do exílio e olha para o transcurso da história e busca identificar uma lógica. Nessa lógica, o tema da transgressão do povo e o perdão de Yahveh é recorrente. Vários momentos da história são apresentados nessa dinâmica ondular: o povo ou representantes do povo transgridem, arrependem-se e se convertem, Deus perdoa e a vida continua de forma renovada até vir a próxima onda e, então, o mesmo esquema se repete. Assim, pois, não se deve ver o tema da “conversão” e do perdão de forma isolada nessa perícope. Há que se vê-lo como elemento constitutivo de um tipo de escrita da história do povo hebreu ao longo da macronarrativa de Josué a 2 Reis. É claro que nessa reescrita reflexiva da trajetória histórica dos antigos hebreus houve o aproveitamento de materiais já existentes em termos de tradição escrita. Assim, especialmente a “história da ascensão de Davi” e a “história da sucessão de Davi” são entendidas como escritos incluídos na macronarrativa deuteronomista.
Outro alerta vai à figura de Davi. A instituição e a preservação da linhagem davídica é preocupação central da historiografia deuteronomista. Por isso, o que se passa com Davi a partir da crítica feita por Natã nessa perícope deve também ser entendido a partir dessa “simpatia” dos redatores deuteronomistas com a casa davídica, que representa, em si, a estrutura central do poder no Reino de Judá ao longo de sua existência, isto é, a partir da divisão do reino de Davi até o desmantelamento da estrutura estatal judaica por meio dos babilônios. Assim, o que se diz de Davi e o que Davi faz na perícope em questão deve ser visto em perspectiva mais ampla do arco narrativo historiográfico. Isso, contudo, não significa que se deva perder os detalhes da própria perícope a ser enfocada.
O início do texto (11.26-27) indica que Bateseba, a mulher de Urias, pranteava seu marido morto e nisso foi levada para o palácio de Davi. Essa nota remete ao episódio anterior da paixão de Davi por essa Bateseba, que, por sua vez, era mulher de um dos guerreiros de Davi. Esse “caso” tem consequências na medida em que a mulher engravida e Davi, ao sabê-lo, arma uma estratégia para se livrar do rival: envia-o para perigosa situação na frente de batalha, onde esse morre, abrindo caminho para o próprio Davi.
Essa situação é utilizada por Natã, no capítulo 12, como recurso para esboçar uma crítica ao rei Davi. Natã, que nesse texto não leva o título de profeta, conta uma história, em geral chamada de “parábola”, a qual trata de um conflito entre um rico e um pobre numa cidadezinha em Israel. A história é conhecida, bastando indicar os pontos principais.
Num lugar havia um homem rico que tinha muitos animais e outro pobre, que só tinha uma ovelhinha da qual gostava como filha. O homem rico, ao receber visitas, mandou tomar a cordeirinha para oferecê-la em banquete à visita certa- mente ilustre. Diante disso, Davi se infla e profere uma dupla sentença: o homem deve ser condenado à morte e deve restituir quatro vezes o que roubou do pobre. O rico deveria ser enquadrado duplamente em sanção penal e civil. Diante da reação condenatória do rei, Natã arremessa a famosa frase: Atah ha-ish = “Tu és o homem”. Com isso, embora aqui não sendo apresentado como profeta, Natã esboça um início de profecia crítica do mandatário.
Natã utiliza aqui provavelmente um caso típico de conflito nos inícios da monarquia em Israel para aplicá-lo a Davi. Nessa aplicação, porém, permanecem dúvidas e ambiguidades. Em primeiro lugar, o desmando cometido por Davi no caso Urias-Bateseba não se enquadra no exemplo de Natã, que trata fundamentalmente de apropriação coercitiva de propriedade alheia a partir de prerrogativas de poder. Em segundo lugar, a sentença de Davi só em parte reage condenatoriamente ao caso relatado. Em si, pelas normas provavelmente vigentes à época, a pena deveria consistir somente na indenização pecuniária em quatro vezes o valor do bem roubado (Êx 21.27), não havendo previsão de morte no caso de roubo.
Natã investe criticamente contra o rei com a famosa frase “Tu és o homem!” (v. 7), retomando, logo a seguir, o próprio episódio do adultério seguido de assassinato (v. 7-10). Trata-se de uma boa tentativa de crítica, a qual, contudo, logo é desdita ou relativizada. Natã, após o arremesso crítico, continua relembrando os favores de Deus para com o rei e, claro, implicitamente, favores do próprio Natã em favor de Davi. Isso porque Natã está vinculado diretamente com Davi e com a casa davídica. Em 2 Samuel 7, no famoso anúncio da longa duração do reinado davídico, Natã atrela-se a Davi e à corte como aquele que, em nome da divindade Yahveh, outorga legitimidade à casa davídica. “A tua casa e o teu reino serão firmados para sempre” (2Sm 7.16). Natã, pois, está vinculado ao poder na forma de legitimador divino do governante davidida. Essa sua vinculação mostra- se também no episódio de 1 Reis 1, no qual Natã aparece como promotor de intriga na corte, fazendo a sorte da ascensão real recair sobre Salomão. Natã quase que impõe Salomão como rei. Natã inclusive foi educador de príncipe davidida.
Nessa situação de atrelamento ao poder, Natã emerge em 2 Samuel 12. Suas palavras estão permeadas de cuidados diplomáticos. Louvável é que ele levanta a crítica e promove um enfrentamento crítico. Nisso reside sua faceta heroica. Mas ele é um herói ambíguo. Ele está nos inícios da profecia bíblica. Ele não é um Amós, embora talvez comungue de certos traços comuns com Isaías. Os castigos que Natã anuncia a Davi não atingem diretamente a Davi, mas são diluídos como acontecimentos eventuais suscetíveis no futuro aos herdeiros da casa davídica. Mesmo a indicação de que a instituição da monarquia davídica passará a carregar a mácula da violência pela espada é genérica. Reis governam com a espada! Espada é instrumento de poder! Também o anúncio, não contemplado na perícope de pregação (v. 11-12), de que o mal de Davi será expiado pelas mulheres do harém não é castigo direto, mas indireto na medida em que as mulheres do harém eram consideradas propriedade real e qualquer avanço sobre elas deveria ser entendido como atentado contra a dignidade do possuidor. Mesmo o anúncio, já no contexto do arrependimento de Davi, de que o filho da relação dele com Bateseba viria a morrer descarrega numa criança os desmandos do pai. Há, pois, certa lógica retributiva, mas o modo de contar a história procura “amaciar” a crítica inicial para com Davi. Em geral, a confissão de pecador feita por Davi costuma ser tomada como âncora para a leitura do texto.
No contexto da perícope, a afirmação peremptória de Davi “Pequei contra o Senhor!” (v. 13) certamente será explorada na mensagem para mostrar justamente o arrependimento e o consequente perdão divino para Davi. Ao assim fazê-lo, contudo, devemos nos dar conta da complexidade da trama textual maior, da qual a perícope é somente um recorte.
No todo, o arrependimento de Davi e o perdão dado a ele estão relacionados com o problema da injustiça. Não se trata de “injustiça” enquanto conceito genérico, abstrato. Trata-se de práticas sociais concretas e mapeáveis. No caso, foi o desmando de Davi para com Urias para facilitar a sua relação amorosa com Bateseba. A parábola do pobre camponês também é colocada no contexto para evidenciar essa dimensão da injustiça enquanto prática social.
A tradição hebraica, vazada para dentro de formas literárias da Bíblia hebraica, situa o lugar do profeta na crítica de práticas sociais. O fenômeno da pro- fecia tem no embate com o poder monárquico um de seus pontos de cristalização. Mas também as relações “microfísicas” do poder estão na mira de palavras críticas de profetas. Muitos e conhecidos são os exemplos que nos vêm dos textos dos vários profetas da Bíblia. Especialmente os mais críticos do século VIII devem ser lembrados. Aí injustiça não é um estado de espírito, subjetivo. Tem a ver com ações sociais concretas. Isso é importante também na atividade pastoral. A igreja deve buscar ser voz profética. Isso perfaz uma de suas dimensões, embora, claro, não a única.
Na parte final da perícope prevista para a pregação, Natã aparece não mais tanto como profeta. Está mais para a figura típica de cura d’almas. Isso o coloca, claro, na grade das tarefas pastorais. Mas a pastoral não pode passar ao largo da dimensão profética, mesmo que seja esse tipo de profecia arranjada desse texto. Por isso é bom insistir que o perdão dos pecados, parte essencial da liturgia do culto, não se transforme em “graça barata”, isto é, na oferta de perdão, sem que haja algum gesto de efetivo arrependimento por parte dos fiéis. Pois isso acentuaria a dimensão da hipocrisia. Hipocrisia institucionalizada com o tempo vai desacreditando a venerável tarefa e missão da igreja.
No conjunto da tradição hebraica ou judaica, é importante também levar em consideração que a justificação ou o “ser tornado justo” mantém relação estreita com a ética. No caso de Davi, não se sabe se ele realmente fez alguma indenização por danos causados. Diferente já é a narrativa neotestamentária acerca do cobrador de impostos Zaqueu, que, recebendo o rabi Jesus em sua casa, passa por uma experiência de conversão e decide restituir quatro vezes o que extorquiu a mais dos pobres, bem com desfazer-se de parte de seus bens. Aí a “vida nova” começa com um gesto efetivo de arrependimento. Assim, quando se anuncia o perdão de pecados ou se fala da dimensão da justificação, não deve faltar essa dimensão de referência à conduta ética. Em termos bíblicos, a ética está cristalizada na Torá, isto é, justamente naquilo que chamamos de “lei”. Aí há um fundamento a partir do qual se pode iniciar a reflexão sobre uma conduta ética adequada ao arrependimento e ao refazimento dos erros cometidos. Claro, nem todos os temas desafiadores em termos éticos estão presentes na Torá mosaica. Porém não se pode querer jogar a fé contra as disposições da “lei”. Pois “graça” também pode estar vazada na forma de “lei”. A ética do amor não pode prescindir da baliza da lei.
Como a temática do arrependimento certamente estará no foco das pregações neste domingo, as seguintes estórias do universo judaico dos Hassidim podem ser ilustrativas.
Quando o rabino Yechiel, neto do rabino Baruch de Medzibush, era uma criança pequena, perguntou ao seu avô: “Se Deus sabe de tudo, por que Ele chamou Adão, o primeiro homem, após o pecado e disse: ‘Onde estás?’”
O rabino Baruch ouviu, mas nada respondeu.
Algum tempo depois, o rabino Baruch perguntou ao pequeno Yechiel: “Queres brincar às escondidas?”
O menino ficou encantado e correu para esconder-se. Esperou e esperou, mas nada do avô aparecer para procurá-lo. Finalmente, desistiu e saiu do esconderijo.
O avô, percebeu ele, estava sentado à sua mesa e não tinha ainda tentado procurá-lo. O pequeno Yechiel começou a chorar. “Avô, esqueceste-te de mim! Nem ao menos tentaste procurar-me!”
“Isto”, disse o rabino Baruch, “é a resposta à tua pergunta. É claro que Deus sabia onde Adão estava. Adão, entretanto, cometera dois pecados: comer o fruto da árvore e tentar esconder-se do Senhor do Universo. Se Deus não tivesse ido ‘procurar’ Adão, este não teria conseguido sobreviver por causa da sua vergonha. Ao ‘procurar’ por Adão, Hashem deu-lhe a oportunidade de ter contato com Ele novamente, para que pudesse uma vez mais ficar face a face com seu Criador.”
“Um homem rico estava à beira da morte porque, embora estivesse com muita febre, não conseguia suar. O médico tentara de tudo o que fosse possível e nada funcionara. Por fim, convicto de que iria mesmo morrer, ele pediu a presença do rabino e este pediu-lhe que fizesse uma boa ação, pois a caridade livra até mesmo da morte. O rico homem pensou muito e, por fim, providenciou uma bela doação a uma instituição de ação social. Doou grande parte de suas riquezas para fins beneficentes. Assinada a procuração, o rabino já se ia quando o homem gritou: “Vê, rabino? Olha como estou suando!”.
Alguns pensamentos também podem ser ilustrativos:
“O remorso é uma impotência; ele voltará a cometer o mesmo pecado. Apenas o arrependimento é uma força que põe termo a tudo” (Honoré de Balzac).
“O arrependimento prolonga a vida do homem” (Talmude babilônico).
“O arrependimento é a chave que abre qualquer fechadura” (pensamento rabínico).
SCHWANTES, Milton. Natã precisa de Davi. Na esperança da igreja profética. Estudos Teológicos, São Leopoldo, v. 18, n. 3, p. 99-118, 1978.
STOLZ, Fritz. Das erste und zweite Buch Samuel. Zurique: Theologischer Verlag Zürich, 1981.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).