Proclamar Libertação – Volume 34
Prédica: Habacuque 1.1-4; 2.1-4
Leituras: Lucas 17.5-10 e 2 Timóteo 1.1-14
Autor: Humberto Maiztegui Gonçalves
Data Litúrgica: 19º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 03/10/2010
O contexto da profecia de Habacuque, texto da prédica, é a violência de uma nação poderosa contra uma nação vulnerável. Em outras leituras, o Evangelho de Lucas expõe a vulnerabilidade de Jesus na caminhada para Jerusalém (Lc 9.51-19.28)1. A 2ª Carta a Timóteo traz a reprodução de uma saudação pessoal em que Paulo não esconde sua vulnerabilidade como, na mesma carta, faz em 2 Timóteo 4.7 (cf. 1Co 9.12; 2Co 11.16-33; 12.7; Gl 4.12-14).
Como vemos, tanto no texto da prédica como nos textos de Lucas e 2 Timóteo há muito de vulnerabilidade. O texto do Evangelho de Lucas abre com a frase: “Aumenta-nos a fé”. Não é essa uma declaração de vulnerabilidade? O pedido nasce da advertência de Jesus contra aqueles que “escandalizam” as pessoas “pequeninas” (17.1-2). Jesus protege as pessoas pequenas em sua vulnerabilidade. E as pessoas que seguem Jesus, ao pedir para ter sua fé aumentada, mostram a necessidade da presença de Deus no meio de suas vulnerabilidades.
Na saudação, comum a 1 e 2 Timóteo, destacam-se as palavras: “graça, misericórdia e paz” (cf. 2Tm 1.2; cf. 1Tm 1.2). Graça está diretamente ligada à vulnerabilidade. Reinerio Valentín, olhando para nosso contexto latino-americano, escreve: “Se entendemos que estamos nos referindo a como vivem, ou melhor dito, como sobrevivem as grandes maiorias de nosso continente, poderíamos afirmar que existem no meio de uma verdadeira desgraça”2. Misericórdia, que em hebraico lembra o útero materno (réhèm), não é o poder de Deus gerando vida através de nossas vulnerabilidades? Paz, do hebraico shalom, não é um sonho acalentado na vivência de nossas vulnerabilidades?
Diferentemente de dez dos doze profetas menores, Habacuque recebe o título de há nabiy’ (o profeta). Por outro lado, o conteúdo do texto é chamado de “visão recebida” (ha masá’ ´asher hazah), enquanto em quase todos os outros textos proféticos o conteúdo é chamado de “palavra de YHWH” (dabar YHWH; cf. Os 1.1; Jl 1.1; Am 1.1; Jn 1.1; Mq 1.1; Sf 1.1; Ag 1.1; Zc 1.1; Ml 1.1). Só na profecia de Naum se fala de um “livro da visão” (sefer hazôn).
O título de profeta deve estar ligado à atividade profética no templo. Tudo indica que tanto as profecias de Naum como a de Habacuque vêm de profetas do culto, onde é a “visão” que vira “palavra”.
O tema de Naum e Habacuque é o mesmo; um parece ser o eco do outro. Os dois tratam do domínio do Império Babilônico (caldeus) após a queda de Nínive em 612 a.C (Na 1.1). O novo império ultrapassa em crueldade e violência qualquer referência anterior (Na 2.2-14). Alguns anos antes, Jerusalém, cercada pelos assírios, tinha miraculosamente se salvado (em 701 a.C.), reforçando a teologia da invulnerabilidade da Cidade Santa e do Templo. A ideia de invulnerabilidade deve ter crescido ainda mais durante o reinado de Josias, que expandiu o território e promoveu uma reforma político-religiosa (cf. 2Rs 21-22). No entanto, a morte desse rei na batalha de Meguido, tentando intervir no conflito entre egípcios e babilônicos (609 a.C.), pode ter sido para o profeta Habacuque um sinal do fim dessa invulnerabilidade. O fim do reinado de Josias é o fim de um sonho, especialmente para os sacerdotes e profetas do templo de Jerusalém (claramente beneficiados com a reforma centralizadora do culto feita por Josias). Nesse contexto de morte e iminente invasão, é possível entender o “até quando?” do profeta (Hc 1.2).
O livro tem uma estrutura dialogal: o profeta intercede e Deus responde. Após o cabeçalho aparece a primeira intercessão do profeta (“Até quando…”; 1.2-4). Logo após aparece a primeira resposta de Deus, abrindo o olhar para a conjuntura internacional (avanço dos caldeus ou babilônicos) e o sofrimento “temível e terrível” (1.7) que eles podem causar a todos os outros povos (1.5-11).
Um novo apelo do profeta aponta para a grandeza de Deus (no qual se baseava a teologia da invulnerabilidade dos habitantes de Jerusalém; 1.12-17). Deus responde indicando o princípio da justiça divina, prometendo a salvação do justo e fiel (2.4b). Segue um epílogo no qual reaparece o “até quando” original (2.6b). No final, o alvo é o opressor, que terá oportunamente seu castigo (2.6-19).
Em 2.20, uma frase final acolhe o sentido da presença protetora de Deus no templo, contudo já não mais como certeza de invulnerabilidade, mas como presença de julgamento contra os que colocam a fé na sua própria força (1.11).
O apelo de 1.2-4 é marcado por duas perguntas e um resumo da situação. As perguntas estão em 1.2a – “até quando?” (‘anah ´od) – e 1.3a – “por quê?” (lamah) –; o resumo é aberto com a expressão: “por isso” (´al ken). Ligadas a essas perguntas e ao resumo aparecem como roupas no varal os sentimentos humanos, as realidades opressivas e as expectativas teológicas em relação a Deus. Vejamos isso no esquema:
A situação é dominada pelo termo “violência”, que aparece nos versículos 2 e 3. No entanto, a violência é desdobrada em injustiça, desgraça, opressão e perda de poder do justo. Seria isso um lamento indireto pela morte do rei Josias, vista como princípio das calamidades que recairiam sobre Jerusalém?
As respostas divinas visam ampliar a visão do profeta (e consciência do povo que ele representa na intercessão). A resposta leva o olhar do profeta para fora do círculo estreito de Jerusalém e convida, ou até ordena, ver o mundo. Na primeira resposta são usados termos como: “Veja!” (reu’), em 1.5a, e “olhai” ou “contemplai” (1.5b). Na segunda resposta, fala-se duas vezes na “visão” (2.2a e 3a)!
O diálogo entre Habacuque e Deus revela alguns dos artifícios mais comuns usados para ocultar a vulnerabilidade por trás de teologias da invulnerabilidade. No primeiro apelo (ou clamor) do profeta (1.1-4) apresenta-se um alerta para a vulnerabilidade de Israel. Esse alerta é dado pelas palavras que apontam para a realidade (violência, injustiça, desgraça e opressão do justo). No entanto, na teologia da invulnerabilidade apenas se espera que Deus resolva a situação (nas palavras ouvir/salvar/instruir/julgar, isto é, sem o povo se comprometer com alguma mudança de atitude perante o próprio Deus ou perante a realidade). O clamor do profeta mostra estranheza diante da vulnerabilidade, por isso a interrogação (até quando? por quê?). No interior do profeta habita ainda a teologia que entende Deus como garantidor da invulnerabilidade de Judá e Jerusalém (onde fica seu Santo Templo; cf. 2.20). Por isso se surpreende que Deus permita coisas como essas. Não é o que falamos, ou ouvimos dizer, quando há grande sofrimento, catástrofes ou violência? Por que Deus permite que isso aconteça? Por trás desse questionamento, humanamente válido diante do medo e do sofrimento, há uma teologia de Deus como garantia de invulnerabilidade. Existe uma teologia que diz que quem tem fé não pode sofrer, porque se a presença de Deus está com ele ou ela (seja essa uma pessoa, um estado ou uma comunidade), nada de “ruim” poderia lhe acontecer. O problema dessa teologia da invulnerabilidade é que ela leva a uma falta de compromisso com a sustentabilidade do projeto de justiça de Deus, como o próprio profeta mostra em 1.4.
Por outro lado, as respostas de Deus pedem para que se assuma a vulnerabilidade com fé na justiça, sem perder o sonho da superação daquilo que atenta contra o caráter do Deus da Vida e da Justiça. A profecia de Habacuque leva para o povo a voz de Deus que, diante do sofrimento iminente, pede para manter a esperança diante de inimigos externos e de injustiças internas. A isso ele se refere quando indica que o sofrimento é “por um tempo” ou “por um prazo determinado” (2.3a). Deus não deseja o sofrimento humano, nem promove a violência ou a injustiça. No entanto, convida para assumir a vulnerabilidade (diante do pecado e da morte) com esperança. A mensagem gerada pela nova visão de vulnerabilidade e esperança de justiça de Deus deve ser pública, inclusiva e participativa; por isso deve ser escrita com letras grandes, para ser vista até por quem passa correndo.
O ser humano nasce vulnerável e frágil, dependendo inteiramente dos cuidados da mãe, do pai e da coletividade familiar, comunitária e social. Nas etapas de transição, o ser humano experimenta a vulnerabilidade em sucessivas crises de passagem, entre a primeira e a segunda infâncias, na adolescência, entre a juventude e a vida adulta (autonomia, possibilidade ou não de formação de uma família etc.) ou entre a vida adulta e a chamada “terceira idade” (questões de saúde, mu- dança de atividade ocupacional, possível solidão e perda etc.).
Diante da vulnerabilidade humana, os sistemas de dominação e as teologias e ideologias que lhes servem passam a imagem de invulnerabilidade através de ideias como o “progresso” e com promessas de “solução” para todas as mazelas da humanidade. Mas como resultado há o descomprometimento com as outras pessoas e promove-se a violência, justifica-se a miséria e alenta-se a destruição do meio ambiente.
Diante da vulnerabilidade do ser humano podemos ver imagens belas e naturais quando nos vemos crescendo e passando pelas etapas e desafios cotidianos da vida. Diante da vulnerabilidade causada pela violência e injustiça surgem também belas imagens como as marchas, as mobilizações populares, o trabalho social e a ação diaconal das comunidades. Enfim, Deus dá-nos visões de superação e esperança, como fez com o profeta Habacuque. Resta para nós vivermos isso publicamente.
Ao mesmo tempo em que é uma intercessão, o clamor do profeta não deixa de ser uma confissão. A resposta de Deus transforma-se em um anúncio de reconciliação.
Reconciliando-nos com Deus a partir de nossas vulnerabilidades
Celebrante: Amigas e amigos, somos frágeis e vulneráveis, a vida apresenta-se como um delicado equilíbrio que pode ser rompido por egoísmo, injustiça, abuso de qualquer tipo de poder e por tantos outros pecados e violências. No entanto, a profecia de Habacuque nos anima a ter fé e esperança e a nos reconciliar com nosso Deus e Senhor.
Povo: Pois a pessoa justa pela fé viverá!
Leitor/a 1: Até quando seremos dominados por sistemas que promovem a violência e a miséria, condenando a maior parte das pessoas a viver em condições sub-humanas e desumanas? Até quando ficaremos esperando soluções divinas, sem nos colocar comprometidamente à disposição da tua graça, Senhor?
Povo: Perdoa-nos, Senhor, e dá-nos a graça de ver tua justiça agindo no mundo que nos cerca e de viver o alegre compromisso com a realização da tua vontade.
Leitor/a 2: Senhor, quantas vezes, como o profeta, vamos para tua igreja para esperar com atenção a tua resposta às nossas queixas (Hc 2.1). No entanto, isolamo-nos do mundo que tanto amaste; não queremos ver ou ouvir a tua voz e não queremos sair da igreja para tornar pública a tua justiça para todas as pessoas, em todos os lugares.
Povo: Aumenta nossa fé para que possamos publicar, com tua graça e poder, o anúncio da tua justiça vivificadora e redentora.
Celebrante: O Senhor tenha misericórdia de nós e que, pela sua graça, nos perdoe e liberte de nossa omissão e das nossas falsas autossuficiências. Que, pelo poder do Espírito Santo, possamos viver a verdade, mesmo quando dura e sofrida, e encontrar em Deus a fonte de toda esperança!
Povo: Amém. A pessoa justa pela fé viverá!
Intercessões:
Sugerimos que para as intercessões sejam usadas imagens, montadas ou extraídas de jornais ou fotografias. As imagens podem incluir:
A vulnerabilidade diante das etapas da vida humana.
A vulnerabilidade diante da violência em todas as suas formas.
A vulnerabilidade de nossa fé diante do sofrimento ou dos conflitos humanos. Pessoas escolhidas/convidadas da comunidade (melhor se forem de diferentes idades, gênero, etnia etc.) mostrarão as imagens à comunidade (também podem ser projetadas com retroprojetor ou datashow). Nesse tempo de silêncio e contemplação cantamos:
Canto:
A nossa oração (melodia de Taizé).
A nossa oração, a nossa oração, ao clamarmos, ouve Senhor. A nossa oração, a nossa oração, vem e ouve Senhor.
Após esse momento de contemplação, pode-se abrir um espaço para orações espontâneas da comunidade ou, com antecedência, grupos da comunidade podem ter preparado uma intercessão para cada uma das imagens apresentadas (incluindo os motivos da própria comunidade). Para finalizar, canta-se novamente o canto A nossa oração.
Notas:
1 BOVON, François. Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos, p. 225-226.
2 VALENTÍN, Reinerio Arce. Graça, sofrimento e esperança, p. 61,68.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).