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Ouvi!

 

Proclamar Libertação – Volume: 46
Prédica:
 Amós 8.4-7
Leituras: Lucas 16.1-13 e 1 Timóteo 2.1-7
Autoria: Ruben Marcelino Bento da Silva
Data Litúrgica: 15º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 18/11/2022

 

1. Introdução

Amós, originário de Tecoa, um povoado ao sul de Jerusalém, era homem do campo. Ganhava a vida como vaqueiro e riscador da fruta do sicômoro, uma espécie de figueira (7.14). Esta atividade consistia em talhar a fruta ainda verde  a fim de que se extraísse parte do suco amargo, deixando a outra porção para ser transformada em açúcar. Parece que Amós não estivera ligado nem a santuários e palácios nem a confrarias de profetas (7.14), porém, tal qual a pessoa que tremia ao ouvir o rugido do leão, profetizou porque ouvira a palavra do Senhor YHWH (3.8). Conforme veremos a propósito de Amós 8.4-7, sua profecia se destinava à defesa das pessoas empobrecidas em Israel (ZENGER, 2003, p. 490-491).

As duas leituras, Lucas 16.1-13 e 1 Timóteo 2.1-7, vinculam-se ao texto da prédica provavelmente por meio dos temas da fraude e da pregação. Lucas 16.1-13 é a parábola sobre o administrador que, sob acusação de roubo e ameaça de demissão, favorece dois devedores de seu senhor com descontos nos valores das dívidas, esperando com isso que lhe retribuíssem quando precisasse. Com essa história, Jesus recomenda aos seus discípulos que usem prudentemente as riquezas da iniquidade fazendo amigos que possam recebê-los futuramente nas tendas da eternidade. Lucas 16.13 possivelmente fornece a chave para a compreensão: trata-se de submeter o uso do dinheiro a serviço de Deus e do seu reino, em vez de se tornar escravo do dinheiro. 1 Timóteo 2.1-7, por seu turno, enfatiza a oração e a pregação sobre Cristo Jesus como práticas cristãs indispensáveis para o cumprimento da missão apostólica, que é levar todas as pessoas à verdade e à salvação.

 

2. Exegese

Esse oráculo do livro de Amós, ainda que se valendo de uma estrutura básica muito simples, comunica uma mensagem fortemente consternadora. A composição possui apenas duas partes: uma chamada para ouvir (8.4-6) e uma declaração conclusiva (8.7). Como é característico desse tipo de pronunciamento profético, qualificado habitualmente como oráculo de juízo (LIMA, 2004, p. 190), há uma acusação e uma sentença. O que chama atenção, porém, é que se identificam diretamente por suas ações reprováveis aqueles que são chamados para ouvir. Ademais a sentença não envolve a explicitação de alguma desgraça que concretizaria o juízo divino contra os culpados. Assevera-se, em lugar disso, que YHWH jamais esquecerá o que os acusados fizeram. Vamos agora observar mais de perto essa breve unidade literária.

V. 4 – O imperativo shim‘û (Ouvi!) instaura a comunicação do orador com aqueles a quem se dirige. Esse recurso linguístico de apelo a alguém se chama apóstrofe e, com o verbo hebraico shāmá‘ (ouvir), tanto ocorre outras vezes em Amós (3.1,13; 4.1; 5.1) e demais livros proféticos (por exemplo, Os 4.1; Mq 3.1; Is 1.10; Jr 7.2) como integra uma das mais importantes formulações teológicas da Torá (Dt 6.4-5): Shemá‘ Iśrā’ḗl YHWH ’elōhếnû YHWH ’eḥád. We’āhavtá ’ēt YHWH ’elōhéykā bekol-levāvká ûvekol-nafsheká ûvekol-me’ōdékā. (Ouve, Israel: YHWH, nosso Deus, é um só YHWH! Portanto amarás YHWH, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua vida e com toda a tua força!). Constata-se, desse modo, que se trata de um elemento estilístico  muito significativo.

E quem é chamado para ouvir? Conforme assinalado anteriormente, são pessoas cuja identidade é associada aos atos de que estão sendo acusadas: hashshō’afîm ’evyốn welashbît ‘anwê-’árets ([vós] que pisais o necessitado, a fim de exterminar os oprimidos da terra). Imputam-se-lhes feitos terrivelmente hostis que cometiam contra determinada porção social, a qual, neste e no v. 6, é referida com as palavras ’evyốn (necessitado), ‘anāwîm (oprimidos) e dallîm (fracos). “Esses três termos são, em Amós, os mais importantes para designar as pessoas e os grupos, em defesa dos quais vai sua profecia” (SCHWANTES, 2004, p. 88). Com base em 2.7, pode-se atribuir ao verbo shā’áf o sentido de “pisar”. A Bíblia de Jerusalém é mais enfática e o traduz por “esmagar”. Por sua vez, o verbo shāvát (na modalidade ativa causativa [hifil]: “fazer cessar”, “exterminar”), em outros contextos, indica a cessação dos sons efusivos dos instrumentos musicais, o emudecimento do burburinho das pessoas em festa e o desaparecimento da alegria das danças por causa da destruição de uma cidade (cf. Is 24.8; Lm 5.15). Aqueles, pois, contra quem a fala da profecia se volta deixavam atrás de si um rastro de vítimas por onde passavam.

V. 5 – A descrição dos acusados continua, agora os caracterizando por aquilo que dizem. Nessa fala deles destacam-se basicamente estas duas coisas: uma preocupação e um comportamento. Preocupam-se por causa de duas ocasiões específicas: a lua nova ou neomênia (ḥṓdesh; de ḥādásh, na modalidade ativa intensiva [piel]: “renovar”) e o sábado (shabbát; de shāvát, na modalidade ativa simples: “cessar” e, em decorrência, “descansar”). A lua nova ocorria no primeiro dia do mês de tishrî ou ’ētānîm, o sétimo mês do calendário religioso, enquanto que o sábado encerrava o ciclo semanal. Os textos bíblicos referentes a esses dias os designam como dias de repouso, tempos sagrados e momentos festivos, nos quais se proibiam desde tipos peculiares até quaisquer formas de trabalho, tanto de seres humanos quanto de animais não humanos (Êx 20.8-11; 23.12; 34.21; Lv 23.23-25; Nm 10.10; 15.32-36; 29.1-6; Dt 5.12-15; 1Sm 20.5,18,24; 2Rs 4.22-23; 11.5-8; 16.18; Os 2.13[11]; Is 1.13-14; 66.23; Jr 17.21-27; Ez 46.1-12; Sl 81.4[3]; Ne 10.32; 13.15-22). Inclusive, como justificativas teológicas para a reverência ao sábado, Êxodo 20.11 e Deuteronômio 5.15 oferecem, respectivamente, a santificação do sétimo dia por YHWH após ter criado os céus e a terra em seis dias e a escravidão no Egito, da qual YHWH libertou Israel poderosamente.

Note que aqueles que estão sendo apontados pelo discurso profético esperavam pelo fim da lua nova e do sábado precisamente porque estavam impedidos de realizar sua atividade econômica por conta da exigência sociorreligiosa associada àqueles dias. Mas que atividade era essa? Eles diziam que aguardavam para pôr o grão à venda e abrir o trigo, isto é, abrir a saca do cereal e oferecê-lo aos compradores. Tratava-se, pois, de comerciantes (SCHWANTES, 2004, p. 60). Ao negociar seu produto, todavia, comportavam-se de maneira desonesta, mostrando-se ansiosos para tornar o ’êfấ menor, para tornar o shéqel maior, para fraudar com balanças de falsidade. De acordo com Wolff (1977, p. 327), o ’êfấ, unidade de medida para sólidos, equivalia a cerca de 40 litros, enquanto o shéqel, correspondente a aproximadamente 11,5 gramas, era usado para calcular numa balança a quantia da prata relativa ao valor da compra. Logo, mediante adulteração do sistema de cálculo, aqueles comerciantes superfaturavam a mercadoria, lesando os compradores.

V. 6 – Esse versículo e o anterior exibem juntos um recurso estilístico chamado inclusão (PAUL, 1991, p. 259), que é quando uma “[…] palavra, uma frase ou um conceito presente no início reaparece no fim e funciona como um enquadramento, que delimita e encerra tudo o que ficou ‘incluído’ entre elas […]” (SILVA, 2000, p. 74). O esquema a seguir ilustra isso:

A estrutura literária da composição revela ainda um arranjo característico da poesia bíblica conhecido como quiasmo, que “[…] consiste em organizar o texto em dois períodos consecutivos, de modo que, no segundo período, reapareçam os mesmos signos ou elementos do primeiro, mas em ordem inversa (a-b–b’-a’) […]” (SILVA, 2000, p. 162). Além do conteúdo, observe principalmente a sequência das palavras wenashbírâ (a fim de pormos à venda [o grão]) e bār (trigo) em 5aα2-5aβ, a qual se repete em 6b, porém invertida. Desse modo, 5aα2-5aβ e 6b formam uma moldura redacional e conjuntural para a inclusão de 5bα-6aβ. Ao lado da falsificação de medidas e balanças, outra prática lamentável também estava vinculada ao âmbito das atividades dos acusados: a mercantilização de pessoas transformadas em escravos. Com base em passagens como Amós 3.9-10; 4.1 e 5.11, Schwantes (2004, p. 90-96), descrevendo o cenário socioeconômico durante o governo de Jeroboão II no Norte (788-747 a.C.), aponta que tanto o Estado monárquico quanto o luxo das elites citadinas e o lucro de negociantes eram sustentados pela contínua extorsão dos produtos dos trabalhadores do campo.

A situação desses lavradores empobrecidos é grave. Em 8,4-6, obtemos um quadro de sua fome. Denunciam-se aí os comerciantes, em particular talvez os pequenos mercadores. Os “pobres” aparecem como fregueses principais desses vendedores afoitos e gananciosos. Espoliados e empobrecidos tornam-se presa fácil, quando necessitam adquirir de terceiros sua comida de cada dia. São aniquilados (v. 4), transformados em mercadoria (v. 6), em escravos. A escravidão dos lavradores deve ter abalado nosso profeta de maneira muito intensa. Afinal, menciona-a diversas vezes. Denuncia a transformação de pobres em escravos por causa de suas dívidas […] “Prata” e “par de sandálias” são o preço da mercadoria chamada lavrador escravizado. A vida de tais pessoas era degradante (SCHWANTES, 2004, p. 92-93).

V. 7 – A sentença divina contra os acusados vem na forma de um juramento. A expressão gue’ốn ya‘aqṓv (o orgulho de Jacó) assume um sentido negativo em 6.8, o que possivelmente é também o caso aqui. De modo irônico, YHWH estaria, por conseguinte, jurando pela mesma arrogância que as palavras dos acusados ostentavam (PAUL, 1991, p. 260). E o juramento é este: Não esquecerei jamais quaisquer de suas obras. Nessa declaração, emprega-se a lítotes, ou seja, uma figura de linguagem em que se afirma algo mediante a negação do contrário. É o mesmo que dizer isto: “Eu me lembrarei sempre de suas obras todas”. É curioso que essa associação entre lembrança e obras aparece também no mandamento do sábado (Êx 20.8-11). Lembrar (zākar) o sábado significava abster-se de fazer (‘āśấ) qualquer trabalho nesse dia. Assim, ficavam garantidos o descanso e a dignidade para seres humanos e animais não humanos, circunstâncias que refletiam a sabedoria e a bondade de Deus (Êx 23.12; 34.21; Dt 5.14-15). Segundo essa perspectiva, o trabalho não deveria ser alienante, mas promover a vida. Por isso é possível entender que, com o juramento de que não esqueceria (shākáḥ é antônimo de zākar) quaisquer das obras (ma‘aśîm) dos que estavam sendo acusados no oráculo profético, YHWH demonstrava sua veemente oposição à conduta ultrajante deles. Por serem desprovidos de generosidade, probidade e compaixão, não admira que aqueles comerciantes estivessem contrariados por causa da lua nova e do sábado!

 

3. Meditação

Ouvi! A ganância é mortal!

Os acusados no oráculo profético deixaram-se dominar pela ambição, de maneira que para eles o trabalho e as pessoas perderam seu valor autêntico.  Trabalhar tornara-se atividade subordinada ao desejo exclusivo de lucrar a qualquer preço, uma desfiguração do empenho por subsistência e liberdade. Pessoas foram convertidas em utensílios para provimento do indivíduo, não importando que para isso fossem roubadas, escravizadas, abusadas. Em decorrência das atrocidades cometidas contra grupos vulneráveis, o tecido social em Israel do Norte tornara-se tão apodrecido, que o profeta Amós receberia de Deus o comunicado de uma resolução tenebrosa: Chegou o fim para Israel, meu povo! Não tornarei novamente a passar sobre ele! (8.2b; cf. 7.8). É importante reparar que esse anúncio de que não haveria mais perdão faz parte da visão do cesto de frutos de verão (8.1-3), passagem bíblica que vem imediatamente antes desta que ora estudamos. Com sua ganância, pois, os comerciantes acusados não só desgraçaram as vidas daquelas e daqueles a quem exploravam, mas também contribuíram para o desmantelamento permanente da sociedade israelita. De fato, o fim chegou em 722 a.C., quando os neoassírios invadiram e derrubaram o reino de Israel do Norte, deportando milhares de pessoas para a Mesopotâmia e a Média. Elas nunca mais voltaram (DONNER, 2010, p. 361).

 

Ouvi! Deus se opõe a situações de opressão e desigualdade!

A lua nova e o sábado eram momentos para celebrar a vida. É significativo que os israelitas tenham associado a festividade e a alegria em comemoração dos produtos hauridos do trabalho com a devoção ao Sagrado mediante a fixação de momentos para interrupção da rotina diária. Como fundamento do ser, YHWH era visto como doador de tudo que era necessário para a manutenção da integridade e paz do seu povo. Portanto era justo que todas e todos não só trabalhassem, como também experimentassem tempos de repouso durante os quais pudessem usufruir dos resultados do trabalho. Sábado é descanso (shabbát)!

Ao contrário, as ações dos que são denunciados pelo oráculo profético privavam muitos de seu sustento digno, relegando mulheres e homens à miséria, à marginalidade, à morte. Pensando apenas em seu próprio benefício, cooperavam para fazer desaparecer (shāvát, no sentido ativo causativo) da terra aquelas pessoas oprimidas. Em vista disso, Deus jurara jamais esquecer o que os comerciantes acusados haviam feito. YHWH se mostrava solidário com a gente sofredora e injustiçada!

 

4. Imagem para a prédica

Um conto brasileiro fascinante diz que dois lenhadores iam à mata para cortar árvores que usariam para fazer carvão. Tonho tratava bem a natureza,  tentando retirar das árvores somente o que precisava, com todo cuidado, de modo a causar o menor dano possível. Todavia Chico não só destruía a vegetação, mas também, vez por outra, matava um animal para treinar pontaria. Num dia, Tonho foi sozinho à floresta e se encontrou com o Caipora, o deus das matas de pés virados para trás. Este lhe pediu fumo e o lenhador lhe deu. Mais tarde, ao queimá-la no forno, percebeu que obtivera da lenha um carvão de excelente qualidade. Pensou, então, que fora agraciado pelo deus das matas. Mesmo assim, decidiu não voltar mais à mata. Chico, com inveja dele, foi à mata. Quando viu o Caipora, ofereceu-lhe fumo para conseguir também o carvão milagroso. O Caipora, enfurecido, atacou o lenhador. Foi então que uma nova assombração começou a aparecer na floresta: um homem que vagava virado pelo avesso (GUIMARÃES; JUNQUEIRA; ABDALLA, 1988, p. 17-24).

A partir desse conto, sugiro fazer pontes com o texto de Amós por meio dos seguintes temas: trabalho colaborativo e construtivo; compaixão e solidariedade; relação entre a divindade e a vida; ganância como desumanização.

 

5. Subsídios litúrgicos

Sugestão de hinos: HPD 2, 381 – Pela palavra de Deus (antes da prédica); HPD 2, 417 – Igreja que serve (após a prédica).

 

Bibliografia

DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos. 5. ed. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2010. v. 2.
GUIMARÃES, Ruth; JUNQUEIRA, Sonia; ABDALLA, Sandra. Caipora, o pai-do-mato. In: URIBE, Verónica (Ed.). Contos de assombração. Coedição Latino-americana. Trad. Neide T. Maia Gonzalez. 4. ed. São Paulo: Ática, 1988. p. 17-24.
LIMA, Maria de Lourdes Corrêa. Exegese bíblica: teoria e prática. São Paulo: Paulinas, 2014.
PAUL, Shalom M. Amos: a commentary on the book of Amos. Minneapolis, MN: Augsburg, 1991. (Hermeneia).
SCHWANTES, Milton. A terra não pode suportar suas palavras: reflexão e estudo sobre Amós. São Paulo: Paulinas, 2004.
SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São Paulo: Paulinas, 2000.
WOLFF, Hans Walter. Joel and Amos: a commentary on the books of the prophets Joel and Amos. Translated by Waldemar Janzen, S. Dean McBride, Jr., and Charles A. Muenchow. Philadelphia, PA: Fortress, 1977. (Hermeneia).
ZENGER, Erich. O livro dos Doze Profetas. In: ZENGER, Erich et al. Introdução ao Antigo Testamento. Trad. Werner Fuchs. São Paulo: Loyola, 2003. p. 460-544. (Bíblica Loyola, 36).

 

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Proclamar libertação (PL) é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).