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Prédica: Jeremias 29.1,4-14a
Autor: Vitor Westhelle
Data Litúrgica: Domingo Rogate
Data da Pregação: 30/04/1978
Proclamar Libertação – Volume: III


CATIVEIRO: VIA DE LIBERTAÇÃO

I – Introdução

Jeremias, o profeta, escreveu uma carta a um grupo de judeus cativos na Babilônia. Ela remonta aos últimos anos do séc. VI a.C. e foi privilegiada, vindo a fazer parte da sexta série de textos usados no ano eclesiástico, para o domingo rogate. Este texto epistolar é o primeiro do gênero na Bíblia.

A carta de Jeremias 29. 1, 4-14a é expressiva para a situação de exílio que vivia o dividido Judá. O seu drama maior foi e ainda é usado na História da Igreja como paradigma para dadas situações. A transferência do papado para Avignon (França), no séc. XIV, foi descrita como o cativeiro babilônico do Papa. Usando o mesmo motivo, Lutero descreveu a própria Roma como sendo o cativeiro babilônico da Igreja que mantinha em cadeia os verdadeiros sacramentos (De captivitate babilonica ecclesiae -1520). Mais de quatro séculos após, na A.L., o ex-bispo luterano do Chile, H. Frenz, pasmado ante o golpe militar que tirou a vida de estimadamente 15 mil pessoas e que criou seis mil refugiados (sem contar presos, desempregados, etc.) declarou que em nossa situação atual, a teologia da libertação não ajuda, antes nós precisamos buscar uma teologia do cativeiro. A mesma questão também é suscitada pelo teólogo brasileiro L. Boff, que pergunta se não seria mais realista fazer, ao invés de uma teologia da libertação, uma teologia do cativeiro… dentro de um mundo que se tornou num submundo (cf. bíbl., p. 112). Já o alemão H. Gollwitzer, com mais ousadia afirmou em uma palestra (Luta de Classes Por Causa do Reino de Deus?) que “a História Eclesiástica é, em grande parte, a história do cativeiro babilônico da Igreja na sociedade de classes”.

Nesta multiplicidade de afirmações, o que significa o cativeiro no Brasil e, especificamente, no que concerne a IECLB? O que significa a carta de jeremias como instrumento de transposição dos muros do exílio? São estas as questões que nos movem a seguir.

II – Relance Histórico

O Reino de Judá, nos primeiros anos do séc. VII, vivia com Josias (639-609) um pouco da glória do período davídico-salomônico. A Palestina incrustava-se entre duas potências (Assíria e Egito) e garantia, graças a uma astuta política, sua autonomia. Os problemas começaram a surgir quando ao oriente se ergueu uma outra potência com pretensões hegemônicas: a Babilônia. Nínive e Harã já haviam sido tomadas à Assíria, quando esta resolveu se unir ao Egito para fazer frente ao avanço babilônico. Opondo-se a esta aliança, Josias foi morto pelo faraó Neco em 609 (2 Rs 23.28ss), que mesmo assim não conseguiu evitar o avanço da nova potência sobre a nação aliada.

A partir deste momento, a Palestina perdeu sempre mais sua autonomia nacional. Neco empossou como rei de Judá a Jeoaquim impondo a nação forte jugo. Passados alguns anos, o quadro político internacional cambiaria um pouco com a vitória de Nabucodonosor da Babilônia sobre Neco (605). Judã passou ao jugo babilônico. O evento mais importante ainda se deu quando Jeoaquim morreu (598) e seu filho Joaquim assumiu o poder. O novo monarca não era de agrado de Nabucodonosor, que por certo o via como representante de tendências nacionalistas. O rei babilônico se pôs em marcha contra Judá, cercando e tomando Jerusalém, sem muita oposição, em 597. A isto sucedeu-se uma deportação da elite judaica, começando pelo próprio rei, passando pela corte e indo até grupos técnicos completando ao todo 10 mil pessoas, ficando em Judá o povo pobre da terra (2 Rs 24.14).

Um novo rei, Zedequias, foi entronizado por Nabucodonosor. Como este também não correspondeu à fidelidade esperada pelo monarca babilônico, alimentando sonhos idealistas de independência (chegando a estabelecer uma aliança com o novo rei do Egito, Ofra), Nabucodonosor repôs suas tropas em marcha e sitiou Jerusalém, aniquilando, desta vez, a cidade e procedendo uma segunda deportação (isto no ano de 587). Com o gesto de insubmissão de Zedequias e a tomada de Jerusalém, Judá perdeu os últimos resquícios de autonomia que tinha com a monarquia. A partir de então, Judá passou a ser administrada por um governador designado pela Babilônia.

A carta de Jeremias foi escrita entre as duas deportações, endereçada à primeira leva de desterrados durante o reinado de Zedequias.

Possivelmente o mais difícil é saber quem se sentia em situação pior, os exilados fora da terra ou o povo pobre na terra. Se o Salmo 137 é descrição da nostalgia de um povo que não podia entoar o canto de Javé em terra estranha, o livro de Lamentações é a descrição da tragédia de um povo que vivia em miséria na própria terra, onde as mulheres, outrora compassivas, cozeram seus próprios filhos (Lm 4.10). O exílio babilônico não significava somente a deportação, mas as consequências da mesma na Palestina. Se os da Babilônia estavam em um exílio geográfico, os que ficaram em Judá eram exilados econômicos, eram pobres desorganizados e privados repentinamente de toda uma administração nacional em uma nação espoliada. A deportação e o cativeiro eram uma realidade com duas faces e ambas decorrentes do mesmo pecado do povo. A própria deportação, na expressão do verbo hebraico, significa 'descobrir' GALAH. Se o povo estava em cativeiro não era simplesmente por autoria de um déspota que o provocou, mas porque o pecado contra Javé se tornou evidente, se 'descobriu'. A deportação não era causa, mas sintoma do pecado do povo.

Entre o povo na terra e o povo na Babilônia havia uma barreira. Esta barreira era o fator exílico, que afastava uma parte do povo de seu torrão, de seu chão, do templo e da cidade de Jerusalém, e a outra parte estava vivendo em anomia social e miséria econômica enormes. A tarefa era de se postar sobre a barreira e alcançar aquela parte do povo que vivia na Babilônia, em razoáveis condições materiais (não eram prisioneiros, pois habitavam cidades – Ez 3.15), mas longe do local de culto e distante de seus símbolos cultuais, que revestiam a religiosidade, praticamente, de forma incondicional. Para estes, Jeremias se dirigiu de uma forma peculiar: Assim diz Javé – valorizando aquele povo que se sentia fora das possibilidades de cultuar ao seu Deus, ou mesmo de se relacionar com ele.

III – Carta

V. 1: Este é o conteúdo da carta que o profeta Jeremias enviou, de Jerusalém, ao resto dos anciãos deportados, bem como aos sacerdotes, aos profetas e a todo povo que Nabucodonosor havia desterrado para a Babilõnia.

V.4: Assim diz Javé dos poderes, Deus de Israel, para todos os cativos que foram deportados de Jerusalém à Babilônia:

V .5: Edificai casas e habitai-as. Plantai pomares e comei, dos seus frutos.

V. 6: Tomai esposas e gerai filhos e filhas. Procurai mulheres para vossos filhos e filhas. Assim, multiplicai-vos e não definheis.

V. 7: Buscai a paz da terra para onde vos deportei e intercedei em favor dela perante Javé, pois na sua paz reside a vossa paz.

V. 8: Assim diz Javé dos poderes, Deus de Israel: Não vos enganem os vossos profetas que se encontram convosco, nem os vossos adivinhos. Não deis ouvidos aos sonhos que eles sonham,

V. 9: pois eles vos profetizam mentiras em meu nome. Não os enviei – dito de Javé.

V. 10: Assim diz Javé: Logo que se completarem, para a Babilônia, setenta anos ocupar-me-ei convosco. Sustentarei as minhas promessas para trazer-vos de volta a este lugar,

V. 11: porque eu sei os projetos que tenho arranjado para vós – dito de Javé – , projetos de paz e não de desventura, para prover-vos futuro e esperança.

V. 12: E quando me chamardes e rogardes por mim, também vos ouvirei.

V. 13: Quando me procurardes e rogardes, também encontrar-me-eis . Se me buscardes com toda aspiração,

V. 14: serei por vós desvelado – dito de Javé.


O texto da carta vai do v. 4 até o v. 14a, dos quais provavelmente os vv.8 e 9 são uma inserção posterior pois esclarece aos leitores a presença dos profetas entusiastas ( cf. Jr 23.16s, 25ss) em meio aos deportados na Babilônia. O missivista se defronta com duas tendências existentes no exílio e a ambas dá uma e a mesma resposta: lançar raízes á terra. O profeta se encontra embasado, para esta postura, em duas perspectivas na análise e leitura que faz dos fatos.

As tendências . A carta encontrou os exilados alguns poucos anos após a deportação à terra estranha. Entre eles ainda desempenhavam um grande papel os profetas de paz, os sonhadores idealistas que ousavam iludir em nome de Javé, manipulando sua mensagem, fazendo de Javé um Deus particular, pronto a fazer a vontade de Judá a qualquer custo. Jeremias afirmou a liberdade de Deus, como é livre o oleiro no moldar do barro (Jr 18). Era sonho, não mais que sonho, o que anteviam os profetas: uma reabilitação imediata da nação. Neste contexto, o profeta assegurou que o tempo de espera ainda iria demorar, e era necessário estar preparado, talvez excedesse a uma geração (este é o sentido não literal de setenta anos). Era hora de lançar-se ao chão, plantar árvores ainda dariam os seus frutos, e construir que resistissem aos anos, etc. As palavras duras do profeta ainda seriam ditas (v.7). O povo de Israel, a nação eleita, foi reconhecida dentro de um sistema político internacional e dependente do mesmo. A dependência política factual constitui-se em elemento de reflexão teológica de Jeremias, no que era distinto de seus opositores. Foi supondo um conhecimento da conjuntura política da época que o profeta pode escandalizar o povo afirmando: que a paz, a salvação, o bem estar do povo se constituía justamente em buscar a paz, o bem estar, etc., da terra onde se encontravam. Esta era uma via estranha de saída, pois tirava de Javé as atribuições próprias de um deus nacional confessando-o não apenas como um Deus de perto, como também de longe, que enche os céus e a terra (Jr 23.23ss).

Ao mesmo tempo em que os entusiastas se esquivavam da libertação, evitando assumir e refletir a situação em que se encontravam de fato, havia uma outra tendência presente entre os exilados: os resignados. Fora da terra, longe do Templo, nem mais Javé os alcançava. A religiosidade ligada a elementos culturais se desmantelava. O que os mantinha vivos ainda eram as recordações de Jerusalém (Sl 137), expressas num ato nostálgico. A carta começa e repete por três vezes a afirmação de que quem se dirige ao povo desterrado é o próprio Javé. E daí surge a conclamação à resistência e não à resignação. A saída não era impossível, embora pudesse demorar, mas viria, certamente, viria. Procriar era, portanto, necessário. Sobreviver, um dever histórico do povo, embora persistisse a realidade do exílio que precisava ser assumida. Saudades de Jerusalém nada adiantavam, mesmo porque a terra estava desolada. Tudo tinha de começar dos fatos dados. O próprio culto e o relacionamento com Javé tinha de iniciar pela realidade da Babilônia e na Babilônia interceder a Javé. Interceder a Deus sem a mediação do culto de Jerusalém era uma possibilidade nova, e orar em favor dos inimigos, algo espantosamente surpreendente para quem tendia ceder à resignação e para quem se achava único na história de Deus.

As perspectivas. A primeira perspectiva é a que o profeta enfoca o cativeiro como o próprio chão onde se desenrola a libertação. SHALOM a palavra usada para descrever salvação, paz, libertação, bem estar, etc. Segundo a carta, a única via de libertação possível é aquela que não salta por cima das contingências circunstanciais, mas que as assume, a ponto de buscar não só o próprio bem-estar, mas a paz de toda a terra onde estavam os desterrados . SHALOM não deveria ser entendido como um conceito isolado, mas como um termo de relação, pois na sua paz reside a vossa paz. Esta era a perspectiva prática de ação para quem quisesse sair do cativeiro: assumi-lo com suas implicações. Qualquer outra postura, fosse de resignação, fosse de entusiasmo, não passaria de uma forma escamoteadora, que nada mais conseguiria que perpetuar a situação.

O penhor do SHALOM era o próprio Javé com seus pensamentos, com seus projetos. Os projetos de Javé podem ser entendidos no sentido técnico do termo, como um fabricante, que já concebe, projeta de antemão seu aparato, já o tem pronto, bolado, embora não processado. E os projetos de Javé são claros, são os de dar futuro e esperança, o que para o pensamento hebreu já incluía um forte conteúdo positivo. E se estes eram os planos de Javé, ali estava um Deus que, de fato, carecia ser buscado com toda a aspiração (1), de todo o coração. As condições estavam dadas, os arranjos estavam sob Javé, então cabia ao povo embarcar no desencadear do planeja mento com raízes tão presentes, aspirá-lo, assumi-lo de forma integral.

A perda do culto no templo, a impossibilidade das peregrinações a Jerusalém, das festividades e do drama litúrgico levaram o povo na Babilônia a uma crise religiosa profunda. Os elementos culturais que revestiam a religiosidade judaica haviam se tornado tão importantes (cf. Jr 7), que passaram a ser determinantes da espiritualidade do povo desterrado. A carta é uma conclamação para que o povo desenvolva no exílio uma religiosidade e que de lá intercedam a Javé, que os ouve. A missiva é uma afirmação que o Deus de Israel permanece o mesmo, apesar da diversidade das situações e das exigências de outras formas cúlticas para expressar a mesma fé. Aqui está presente a conclamação a uma religiosidade de exílio e a uma cultura de cativeiro.

IV – Cativeiro hoje

Em sua Constituição, a IECLB se define como Igreja de Jesus Cristo no Brasil (art. 1). O que quer que isto possa significar em todas as dimensões que envolve, não deixa de evocar o evento de Jesus Cristo como sendo o que define o modo de inserção da igreja na situação brasileira. Isto, quer me parecer, não significa menos que a radicalização e a realização (em Cristo) da encarnação rumo a libertação em uma realidade de cativeiro. Esta tarefa é legado perpétuo da Igreja . Resta calcar a pergunta de como se limita hoje este cativeiro e como se processa o assumir indispensável .

Embora viessem os colonizadores alemães, no decorrer do século passado até meados deste, para promover a ocupação do território nacional, sua transposição para o Brasil não foi feita a modo dos navios negreiros. Os primeiros tempos foram caracterizados por uma enorme ilegalidade e marginalização política dos imigrantes. A despeito de dificuldades na legalização de suas posses, os colonos alemães tinham suas propriedades e nelas produziam. Desta forma e em decorrência de ainda incipientes indústrias em cidades surgintes, os ádvenas assumiram uma posição intermediária na estratificação sócio-política e econômica, que se encontrava estamentizada na aristocracia rural e nos trabalhadores do campo (empregados, escravos, peões, etc.). Constatou o pesquisador E . Willelms (1940) que o teuto raramente é colono assalariado ou mesmo latifundiário. A pequena propriedade . . . é quase a única forma existente (cf. Willelms, bibl., p.267). Assim foram os alemães no sul que inauguraram uma classe intermediária.

Hoje a classe média do Brasil, devido à modernização, está mais populada, mas ainda é onde se encontra grande parte da população teuto-brasileira. A divisão da terra, daquelas propriedades que já não eram grandes, com a prole, sempre numerosa, subdividiu as glebas chegando a minifúndios insustentáveis. O minifúndio é o pri-meiro passo para o êxodo rural, quando o pequeno pedaço de terra é vendido para ser agregado a uma grande propriedade gerando um processo de concentração de terras. O antigo colono passa a engrossar a marcha do êxodo rural. Dirigindo-se às margens das grandes cidades, tenta a sorte nas indústrias ou passa à condição de posseiro.Isto não é peculiaridade doa imigrantes alemães, mas um dado integrante da realidade agrária do Brasil onde 10% das propriedades abarcam mais de 60% da área agrícola. Estes dados devem também ser comparados com a situação alternativa do que sai do campo para tentar a sorte à beira das cidades. A situação do assalariado no Brasil não é alternativa, pois 45% da população ocupada recebe (dados do ÍBGE,1973) menos de um salário mínimo e por volta de 75% recebe menos de dois salários. Esta é uma das dimensões do cativeiro que está efetivamente a sugar social e economicamente os estratos subalternos da população, criando os pobres da terra defraudados em suas riquezas e vivendo numa anomia social.

O cativeiro, embora seja diferente daquele da Babilônia, também configura a nossa situação, pois cativeiro antes de tudo é divisão, é separação. Quem não o vê é porque com ele não sofre ou sai ganhando, passando a afirmar ufanisticamente que tudo está em paz e harmonia, quando isto não existe. Ocultam-se assim os sintomas do pecado, se passa um verniz, mas não se desfaz a realidade. Assumir o cativeiro é adotar a perspectiva de quem vislumbra o muro que divide os homens de muitas formas e encarar a seriedade de sua concretude, de sua pecaminosidade. Nesta tarefa a Igreja precede os homens e sustenta-lhes a visão, como o corpo estendido do próprio Cristo. Se a Igreja assume as dimensões do cativeiro, ela também sabe quem é o povo pobre da terra, sabe do posseiro, do homem desolado nas grandes cidades ou as suas margens, dos que tendem a resignar ante um Deus que parece que não há, e dos profetas sonhadores de nossos dias acalentando o sonho de falsos milagres dos taumaturgos da economia. Saber desta situação é encravar-se nela como a semente que germina na terra e precede a flor. Ou, como canta Chico Buarque adaptando um texto de J. Varion e M. Leight (The lmpossible Dream):

É minha lei/ É minha questão/ Virar este mundo / Cravar este chão/ Não importa saber/ Se é terrível demais/..,E amanhã/ Este chão que eu beijei/ For meu leito e pendão/ Vou saber que valeu/ Delirar e morrer de paixão/ E assim/ Seja lá como for/ Vai ter fim/ A infinita aflição/ E o povo vai ver/ Uma flor brotar/ Do impossível chão.

O Brasil tem sido considerado um cadinho cultural que mesclou etnias, povos e culturas dando um resultado homogêneo: o povo brasileiro. Esta teoria do cadinho não resiste a uma análise mais profunda, pois se defronta ante a preservação de elementos étnicos e culturais de vários grupos que após gerações têm se mantido resistentes à assimilação. Os imigrantes alemães que vieram ao Brasil tinham inicialmente de preservar sua identidade cultural como forma de sobrevivência num ambiente adverso, para o que as comunidades serviam, inicialmente, de amparo e de meio. Esta impermeabilidade é um traço marcante até hoje nas comunidades evangélicas de imigrantes. O elemento germânico ainda desempenha papel no drama litúrgico, nos hinos e no próprio idioma, em algumas comunidades. Cabe aqui a pergunta se este rito alemão (assim H. Dohms traduziu Deutsche Evangelische Kirche von RGS: Igreja Evangélica do rito alemão no RGS) ainda se apresenta como elemento de unidade indispensável e como fortalecimento de processo de fixação à terra. Cabe a pergunta se a igreja se mantém ao lado dos que sofrem no processo de subsistência ou se está a acompanhar o féretro de uma cultura que já subsiste mais como folclore, onde muitas manifestações não se rearticularam com a mudança dos tempos, dos homens. As comunidades evangélicas ou mesmo o germanismo alcança os homens e mulheres às margens das cidades e nos interiores, servindo a estes de amparo e fortalecimento com os elementos que preserva? Se o faz, o faz buscando a paz da terra em que se vive em desterro?

O texto traz muitas outras implicações e interpretações. Procurei chamar a atenção para duas barreiras que possivelmente possam estar criando uma situação de cativeiro em nossas comunidades, dentro delas e delas em relação à sociedade brasileira. O problema, que aqui não se esgota, é vislumbrar as barreiras reais e concretas, apontando-as. Para isto é preciso uma perspectiva de quem ficou como Jeremias com os pobres da terra, no que isto possa significar. Esta perspectiva dá ao profeta condições de superar as barreiras para alertar ao povo desengajado de sua sorte. O gênero epistolar é um ótimo recurso que, preservando a distância e a crítica que ele possibilita, alcança a comunicação da mensagem. E, sobretudo, é muito fecundante, visto que a perspectiva de quem fala de longe sempre é esclarecedora, denunciadora e, não por último, anunciadora. Sem dúvida, uma tarefa dura para um pastor, vinculado à sua comunidade. (Talvez seria frutífero, a modo de Jeremias, adotar o gênero epistolar para alcançar o objetivo inverso: distanciamento e estranheza na linguagem. Os pastores poderiam também promover uma troca de cartas com o objetivo que levou Jeremias a redigir a sua. Tudo isto guardando as diferenças: um pastor não é profeta veterotestamentário).

O cativeiro em que bem ou mal sobrevivemos, não é um muro em torno, é pior, é um muro, ou melhor, vários paredões no meio. Muitos imperceptíveis, mas reais. São muros com pretensões demoníacas de eternidade e precisam ser desvelados e expostos, para que todos saibam de seu domínio, mas também de suas limitações. Quero terminar ilustrando com extratos de um texto do jovem escritor goiano Santiago Terra, Uma Estória de Muros:

E quando a terra… exausta se entregou as fogueiras do sol e do deserto, e os movimentos da vida escassearam, e a sombra dos homens, porque já então éramos apenas sombras, foi buscando este tom cinza que trazemos agora, cresceu o muro. Não em altura que já era alto o suficiente para tocar o telhado sujo da noite e roubar-nos completamente o horizonte, mas em volume, em espessura, sufocando com sua pedra e sua cinza o espaço cobrado pelo corpo. O muro abandonou seus alicerces. Dotou-se de raízes como cercas-vivas. Não para fixar-se à terra, mas para sugar dela a força que nos mantinha pulsando… Avançou sobre nós compacto e turvo… A cada manhã conferimos um território a menos. Mais escasso o corredor, mais breve o dia, mais estreito o catre. Tudo se impregnara da substancia do muro. Tudo se cerrara. Os sapatos recusando caminhos, a garganta retendo palavras, as portas aos poucos, ganhando a feição de paredes, as janelas sempre fechadas desde que nascera o muro, o tempo as desfigurara em traves de ferro e agonia. Passamos a carregar o muro nos tornozelos, nos pulsos, a sonhar com o muro, a enxergar o muro nos rostos das sentinelas, de quem aliás jamais soubemos a pátria, posto que chegaram de repente, embora timidamente imaginássemos em nome de quem se postavam ali com todas aquelas armas, hinos e bandeiras… Vieram então as formigas, que a velhice do muro gerou, e se puseram a comer-lhe as raízes, o cupim apodreceu-lhe as entranhas, mas isto deu-se depois de longos anos de noite cega e absoluta. E se a princípio alguns se iludiram com a miragem de que a podridão acabaria por minar-lhe os alicerces, os séculos se encarregaram de demonstrar a vitalidade do muro e seus propósitos de eternidade. (Movimento no. 97, de 9/57 1977)

V – Bibliografia

– BOFF, Leonardo. Teologia do Cativeiro e da Libertação. Multinova, Lisboa, 1975.
– HERRMANN, Siegfried. Geschichte Israels in alttestamentlicher Zeit. Chr. Kaiser Verlag, München, 1973.
– HOMBURG, Klaus. Introdução ao Antigo Testamento. Ed. Sinodal,São Leopoldo, 1975.
– KLIEWER, Gerd U. Uma Comunidade Evangélica Frente aos Problemas Sociais e à Atuação Sócio-Política da Igreja. In: Estudos Teológicos. Ano 17, no. l, São Leopoldo, 1977, pp. 5-23.
– RAD, Gerhard von. Teologia do Antigo Testamento II. Aste, São Paulo, 1974.
– RUDOLPH, Wilhelm. Jeremia. 2- edição, J.C.B, Mohr, Tübingen, 1958.
– WEINGÄRTNER, Lindolfo. Meditação Sobre o Caminho de Nossa Igreja. In: Estudos Teológicos . Ano 11, São Leopoldo, 1971.
– WEISER, Artur. Das Buch Jeremias. Caps. 25,15-52,34. 5ª. edição, Vandenhoeck & Ruprecht, Göttingen, 1969.
– WILLELMS, Emílio. Assimilação e Populações Marginais no Brasil . Estudo Sociológico dos Imigrantes Germânicos e seus Descendentes. Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1940.

Uma interessante e suscitadora aborda¬gem da questão social, política e étnica de aspec tos da colonização teuta no Brasil é feita no cinema com Aleluia Gretchen, um filme recente (1977) de Sílvio Back.