Prédica: Lucas 17.11-19
Autor: Manfredo Siegle
Data Litúrgica: 14º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 16/09/1979
Proclamar Libertação – Volume: IV
I – Preliminares
1. Situação do Texto
Ao lado de duas outras perícopes (Lc 9.51-55; 10.30-37), as quais relacionam a pregação e a atuação de Cristo com samaritanos ou com o território da Samaria, o texto em apreço seria o terceiro que deixa transparecer a atuação de um samaritano. As três perícopes estão inseridas no bloco de histórias ligadas à grande peregrinação empreendida por Jesus Cristo a Jerusalém.
a) Contexto maior
Analisando o contexto maior da perícope em foco, veremos tratar-se de uma história relacionada com a viagem que Cristo empreendeu rumo a Jerusalém (Lc 9.51-19.27). O Senhor parte para Jerusalém. Ele parte para o sofrimento e para a morte. Em sinal de obediência Jesus segue, resolutamente, a Jerusalém. Cristo vai, porque devia ser assunto ao céu (Lc 9.51). Essa glorificação implicaria em paixão, morte e ressurreição. A ida a Jerusalém não foi uma iniciativa do próprio Cristo, mas representa ser um sinal de obediência.
Do ponto de vista literário toda a viagem, tal como nos é apresentada por Lucas, revela ser uma construção, um trabalho redatorial. Estímulos para este trabalho ele recebeu de algumas fontes, das quais tinha conhecimento. Cite-se entre estas o Evangelho segundo Marcos, a fonte Q, além de matéria exclusiva do próprio autor. Não chegamos a constatar um real progresso nessa peregrinação do Senhor. Entre as poucas notícias geográficas, cf. Lc 9.51-56; 13.31-33; 18.35-43; 19.1-10. Todos os textos relacionados com a Samaria (Lc 10.29-37; 9.51-56 e 17.11-19) ou com samaritanos, provavelmente, estão ligados a uma tradição, veicula da por um grupo de cristãos helenistas, em Jerusalém, e que deixa transparecer uma preocupação pela importância da missão, além das fronteiras da Galileia e da Judéia (Conzelmann, p. 50).
b) Contexto menor
A análise dos vv.11-19, especificamente, dentro do cap.17, não evidencia um relacionamento maior e mais direto com as demais perícopes em sua volta. Quem sabe, pudéssemos apontar para o tema da fé, levantado no v.19 e nos vv. precedentes 5 e 6, onde os discípulos pedem a Cristo: aumenta-nos a fé!
2. O autor e a sua concepção de história
Acentuamos, anteriormente, que do ponto de vista literário todo o bloco de histórias ligadas à grande viagem de Jesus a Jerusalém vem a ser uma construção redatorial do próprio evange¬lista. Disto podemos concluir que Lucas não estava interessado em historiar apenas fatos relacionados com o empreendimento de Cristo. Atrás deste trabalho redatorial esconde-se toda uma concep¬ção de história do autor. Ele parte da convicção de que história não é história profana, pura e simplesmente. A história serve de palco de ação de Deus; é uma testemunha do agir de Deus. Deus mesmo tem interesse na história. Sim, Ele faz história e a sua história é salvífica. O plano de redenção, concretizado em Jesus Cristo, está aninhado dentro da história. Hans Conzelmann procura interpretar a concepção histórica de Lucas, a partir de três grandes fases. Procede da seguinte maneira e destaca as seguintes fases:
1 – O tempo de Israel (o tempo da lei até João Batista)
2 – O tempo da ação de Cristo (caps.4.14-22,3)
3 – O tempo da Igreja (a partir de Pentecostes).
Durante a ação de Cristo, Satanás é destronado totalmente do seu poder. A partir de Pentecostes o poder satânico manifesta-se novamente. Algumas características do tempo de ação de Jesus são a sua bondade, a sua misericórdia e o seu amor para com o pecador e o homem desprezado.
Nosso texto, 17,11-19, seria, pois, um testemunho do autor para mostrar o amor de Cristo pelos marginalizados, considerando-se que os leprosos tinham que viver afastados da família e da sociedade judaica em geral (Lv 13).
II – O Texto — aspectos exegéticos
A perícope, excluindo os vv. 11 e 19, os quais servem de moldura, é uma unidade, tanto do ponto de vista literário como em seu conteúdo. Poderiam servir de protótipos para o nosso texto fatos relatados em Mc 1.40-45 e 2 Rs 5.1ss.
No v. 11 o autor relata que Jesus Cristo estava a caminho de Jerusalém. O caminho que toma o conduziria por entre os territórios da Galileia e Samaria. O Senhor começa a atuar numa área limítrofe. As informações quanto à topografia, porém, não são nada claras. O que se visa, desde logo, é preparar o futuro encontro que Jesus teria com o grupo dos 10 leprosos. Onde Cristo, na realidade, se encontrava, permanece uma incógnita.
V.12: Dentro de lugarejos os leprosos podiam permanecer. A lei dava-lhes este direito. A história começa, de fato, quando Cristo chega a um lugar concreto. A lepra era vista como um castigo de Deus (Dt 28. 27) e a seus infelizes portadores só era dado permanecer fora da cidade (Lv. 13.45s). Dizia-se no Oriente ser a lepra o primogênito da morte (Jó 18.13). Os leprosos falavam só de longe.
V.13: Os dez doentes não gritam já de longe impuro, impuro; palavra essa, que identificava o portador da doença e que ao mesmo tempo servia de sinal de alerta. Eles pedem, diretamente, por auxílio, por compaixão (cf. Lc 16.24; 18.38ss). Cristo é conside¬rado como Mestre, um título que lhe é conferido também em outras passagens (Lc 5.5; 8.24s; 9.33,49). A forma de falar com Jesus indica que já tiveram e que querem ter um relacionamento com o Mestre. É importante ressaltar que o imperativo: compadece-te de nós deixa transparecer a solidariedade dos dez. Não são dois ou três que esperam pela ação misericordiosa de Cristo, mas todos eles sentem o drama do outro como se fosse seu próprio.
V.14: O Mestre reage de maneira pronta e decidida; dá-lhes a ordem de se apresentarem perante os sacerdotes. São estes que iriam reintegrá-los na sociedade, após a constatação da cura (Lv I4.1ss). Não acontece diálogo algum entre os dez e Jesus. O fato de se dirigirem logo aos sacerdotes evidencia obediência às palavras de Cristo. A obediência resulta em cura (cf. 2 Rs 5.10-14).
V .15: Um dos dez volta após a cura. Ele louva a Deus em alta voz. Considera a ordem e cura por Cristo como obra de Deus. A fé, para a qual Jesus ainda apontaria (v.19), transparece no louvor (cf. Mc 2.12; Lc 13.13). Aquele que retorna, um samaritano, sente-se agraciado por Deus. O estrangeiro observou que o amor de Cristo renovou toda a sua vida, por isso ele procura agora comunhão com este Senhor.
O v.16 continua a relatar a reação daquele que havia voltado Cristo é adorado como um Rei. O novo deste versículo consiste na informação de que o curado era um samaritano. Ao lado do bom samaritano (Lc 10.30-37) chegamos a conhecer agora um samaritano agradecido. Samaritanos eram considerados estrangeiros (v.1 8), de origens étnicas mistas.
Nos versículos seguintes, 17 e 18, Jesus pergunta pelos outros nove. Estes consideraram a cura como um direito que lhes assistia (Lc 4.25ss). Mesmo assim os nove não foram castigados com o retorno da doença (Gn 19.26; 2 Rs 5.19ss). O samaritano aceitou a cura como um presente. Bem por isso, Jesus imputa o agradecimento do samaritano como sinal de fé. Despede-o em seguida (v.19).
Obs.: Quanto à tradução do texto sugiro que se faça uso do texto de Almeida. As observações e pequenas nuances do aparato crítico não alteram o sentido global do texto.
III – Do texto à prédica
Eis aí um texto, ao qual o pregador pode dar acentos diversos; apresentarei alguns destes acentos.
1o) Poderíamos, e muito bem, acentuar o aspecto do agradecimento do samaritano que voltou. Quem sabe, alguém chegue até mesmo a analisar o texto como sendo um paradigma para o agradecimento cristão. Os motivos para a gratidão deixo aqui em aberto. Acrescente-se que o próprio agir do cristão, motivado pelo amor de Cristo, não pode levá-lo a esperar por grandes recompen¬sas. Neste sentido não estamos em situação diferente daquela, pela qual Cristo mesmo passou, ao perguntar pelos outros nove que também tinham sido curados.
2o) Ao lado do agradecimento é possível destacar a alegria que se expressa no dar glória a Deus em alta voz (v. l 5). Essa alegria seria, então, uma consequência da gratidão e a expressão do reconhecimento da presença de Deus. Fé agradecida leva a alegria. Sem a presença de Cristo o problema dos dez não teria sido superado.
Vivemos num mundo que procura a sua autossuficiência. E toda autossuficiência cega o homem em relação ao poder de Cristo e ao próximo. A reação dos nove que encontraram a sua saúde, mas não a Cristo, como Senhor e Salvador, revela essa autossuficiência.
3o) Uma terceira possibilidade em termos de acentuação da mensagem do texto seria o elemento da esperança. Os dez partiram em direção a Cristo que entrava numa aldeia, cheios de esperança A convicção de que o poder de Jesus poderia eliminar a doença que os marginalizava da família e do povo fez nascer neles uma esperança muito grande.
Jesus Cristo não é visto e anunciado somente como cura d'almas, mas e revelado como Senhor, cujo interesse está no bem-estar do homem todo.
Sem dúvida, os três aspectos, a saber, o agradecimento, a alegria, a esperança, não são no texto grandezas separáveis, mas antes a concretização da confiança dos dez leprosos, naquele homem que lhes apareceu numa aldeia entre a Galileia e a Samaria.
Dentre os três aspectos quero destacar o momento da esperança. A partir do conceito esperança, vejo a possibilidade de estruturar o texto da seguinte maneira:
A esperança que nasce a partir da presença de Cristo leva o homem à convicção de que:
1°) Cristo gosta de atuar em situações limítrofes da vida. A atuação de Jesus acontece entre a Galileia e a Samaria (v.11).
2g) Jesus Cristo é um Senhor vitorioso sobre a miséria e as suas consequências (v.13 – marginalização).
3e) O espírito de solidariedade impera acima de toda e qualquer vontade centrada em si mesma: compadece-te de nós!
4o) Obediência e risco são elementos inerentes à esperança cristã (vv.13 e 14).
5o) Fé não entra em fria (v.14 – os dez não questionaram as palavras de Cristo).
6o) Ele (o homem) não pode viver sem a comunhão com Cristo, o doador da esperança (vv15ss – por isso a volta do samaritano).
7o) O poder de Cristo não começa no momento em que o homem, por si só, não mais consegue ir adiante!
8o) O verdadeiro caminho para a vida é sempre o caminho para a cruz (Cristo estava a caminho de Jerusalém, a caminho da cruz).
Essa estruturação do texto pode servir de conclusão, bem como de roteiro para a prédica. Uma escolha entre alguns dos tópicos expostos seria plenamente justificada.
IV – Meditação sobre a esperança
Ao elaborar o termo esperança e refletir sobre o mesmo, lembrei-me logo de um adágio popular brasileiro, comumente usado, nas situações mais diversas: a esperança é a última que morre. Esse adágio, na boca do povo, expressa uma vontade indescritível de superar momentos difíceis na vida humana.
Os momentos de crise, nos mais diferentes campos da vida, são, sem dúvida, chão fértil para que o homem desenvolva o seu conceito de esperança. Surgem então, ainda que superficiais, ditos na boca do povo que falam da esperança. Nascem canções, das quais brota o conceito esperança. Poetas usam a sua fantasia e procuram iluminar os seus versos com o sol da esperança.
A esperança que é articulada e pregada na Igreja cristã não pode ser somente mais uma esperança, ao lado de tantas outras. O Evangelho não desenvolve a sua mensagem de esperança, a partir de uma filosofia de vida positivista (a ex. da Igreja Messiânica, ou de outras religiões ligadas ao Oriente); muito menos é fruto de uma ideologia fantástico-especulativa. Jesus Cristo crucificado e ressurreto é a nossa esperança (Cl 1.27)!
A comunidade que vive a partir da esperança tem consciência e certeza de que todo nosso agir e a nossa maneira de ser é determinada por algo que está em nossa frente. A esperança peia renovação da vida faz com que o povo de Deus ponha-se em marcha (Moltmann, p. 392). A esperança que nasceu dentro do grupo dos dez leprosos fez com que eles se pusessem em marcha. Puseram-se a caminho em duas direções: uma vez, em direção ao próprio Cristo, na expectativa de serem curados; por outro lado, dirigiram-se, em obediência, aos sacerdotes na certeza de que a ordem de Cristo se concretizasse em cura.
O povo de Deus, motivado pela esperança cristã tem o seu horizonte de vida aberto para frente, para o futuro. Bem por isso é um povo a caminho, o qual não se satisfaz com a sua situação, que não se dá por satisfeito com a realidade presente. A esperança no presente tem como objetivo uma situação nova e diferente no futuro
Falei, anteriormente, que o tema esperança é Desenvolvido em larga escala entre o nosso povo, em ambiente de cidade e de colónia, a partir da realidade de crise, na qual ele vive.
O diálogo sobre o futuro que acontece entre colegas de serviço, no final de um dia ou de uma semana de trabalho, no boteco da esquina ou em qualquer outro lugar, é motivado pela esperança por dias melhores. Em meio à atmosfera pesada da cachaça sopram, muitas vezes, ventos de esperança. É a expectativa por uma realidade melhor, em termos de valorização do trabalho, de melhores condições de trabalho, de melhores salários, de menos discriminação, de mais diálogo e de maior fraternidade e mais respeito. Creio que neste aspecto acontece, à semelhança da solidariedade dos dez leprosos, uma solidariedade idêntica.
A realidade de crise e de esperança, ao mesmo tempo, faz-se sentir, ainda, em outros campos e situações da vida. Corredores e quartos, em nossos hospitais, são, sem dúvida, locais onde pessoas desenvolvem, à sua maneira, novas esperanças. O frasco de soro ligado por um condutor às veias do paciente representa uma boa dose de esperança. A presença do médico, a mensagem do cura d'almas junto ao leito do paciente pode ser um marco de novas esperanças.
Em muitos lares, onde pais e filhos recém conseguiram superar os seus conflitos e dificuldades, a esperança por dias mais agradáveis e menos difíceis, é uma constante. São os pais esperando pela aceitação dos filhos; são os filhos necessitando de mais calor humano, esperando por mais diálogo e por mais tempo, da parte dos país.
A IECLB, em sua situação peculiar, é terra fértil para novas esperanças. Espera por uma simplificação da sua estrutura, por uma maior dinamicidade. Ela alimenta esperanças por uma vivência mais evangélica. Espera que possa contribuir de uma maneira mais eficiente e corajosa no contexto sócio-político brasileiro, reivindicando e denunciando. São pessoas de todas as idades, em seus diferentes níveis culturais e sociais, esperando pela concretização de ideias e planos elaborados no papel, em reuniões, encontros e concílios.
Os dez leprosos foram encontrados por Cristo no caminho entre a Galileia e a Samaria, portanto, numa área limítrofe entre dois povos que não se cheiravam. Nos limites da nossa própria existência e realidade o Senhor continua a nos encontrar.
Os nove leprosos que não procuraram ter uma maior comunhão com Jesus Cristo, encontraram nele um fazedor de milagres. Ele corrigiu uma situação difícil, que, na certa, os teria levado à morte. Em termos de vida nova, porém, nada sucedeu aos nove. Aceitaram o poder de Cristo como uma forma de garantir a eliminação das suas próprias deficiências físicas. Não levaram Jesus Cristo, o Filho de Deus, a sério como doador de uma vida nova. Não concordaram que Cristo colocasse neles uma semente, cujos frutos levariam a uma nova comunhão com ele e com o próximo. Para os nove a esperança no Mestre Jesus Cristo esvaiu-se com a cura. Deram-se por satisfeitos com aquilo que Cristo lhes havia dado de volta, a saúde. Desapareceram na massa, mas não se tornaram fermento na massa. Somente poderiam desempenhar este papel se procurassem comunhão com o Mestre. Essa comunhão poderia implicar em revolução da própria vida, e por conseguinte, do ambiente de vida. Isto eles, assim nos parece, não desejavam. Preferiram permanecer no seu status de consumidores. Aliás, uma realidade muito viva e presente em nossas comunidades!
Obs.: O texto oferece vários acentos e opções ao pregador. Procurei deter-me mais no aspecto da esperança. Os itens 1 a 8, anteriormen¬te colocados como conclusão da perícope, oferecem subsídios vários ao pregador. Dentro da sua situação específica, poderá optar livremente. Além do mais, a meditação sobre a esperança, acima desenvolvida, por certo dará estímulos ao pregador que se defrontar com este texto.
V — Bibliografia
– BAUER. K.A. Meditação sobre Lc 17.H-19. In: Goettinger Predigtmeditationen. Ano 61. Caderno 8. Goettingen. 1973.
– CONZELMANN. H. Die Mitte der Zeit. In: Studien zur Theologie des Lukas. Tuebingen. 1954.
– GOLLIN.J. Meditação sobre Lc 17,11-19. In: Deutsches Pfarrerblatt. Ano 73. Caderno 12. Essen. 1973.
– GRUNDMANN, W. Das Evangelium nach Lukas. 2a ed.. Berlin.
– MOLTMANN. J. Theologie der Hoffnung. 4a ed.. Muenchen. 1966.