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Prédica: João 14.23-27
Autor: Ervino Schmidt
Data Litúrgica: Domingo de Pentecostes
Data da Pregação: 03/06/1979
Proclamar Libertação – Volume: IV


Inicialmente podemos constatar que este texto do Evangelho Segundo João não leva a uma prédica festiva por ocasião de uma determinada data. O nosso Evangelho não fala tanto de um acontecimento isolado e único, mas do Pentecostes atual e permanente, do Pentecostes que sucede à comunidade de todos os tempos (Bonhoeffer). É feita a promessa de que Jesus Cristo não abandona os seus, e é apontado o presente de despedida que ele lhes deixa: A sua paz.

I — Contexto

O nosso trecho faz parte de um bloco maior que abrange os capítulos 14-17. Contêm eles os ensinamentos de Jesus na hora de sua despedida. Na perspectiva da cruz reconhecemos o amor infinito de Deus revelado em Jesus de Nazaré. Neste bloco encontram-se três unidades marcantes: o primeiro discurso de despedida (14,1-31); o segundo discurso de despedida (15,1-16,33) e a oração sacerdotal (17,1-26).

Por trás dessas unidades há diferentes tradições, de épocas diversas, que foram agrupadas e trabalhadas para formarem o conjunto em que atualmente se encontram. Não queremos, porém, entrar nos detalhes da crítica literária.

II – Exegese

Vv. 23 e 24: Pentecostes é experimentado por aqueles que amam Jesus Cristo e guardam a sua palavra. Onde ele é amado, ali toda a sua palavra (observe-se o singular!) é observada. Mas o que significa concretamente amá-lo? Não se trata de um sentimento místico. Ë antes um amor encarnado que procura o irmão. Do irmão, no entanto, o passo seguinte leva outra vez a Jesus. Este não somente dá um novo mandamento no sentido de ser aquele que desencadeia o amor ao próximo. Ele é também o alvo deste amor. A abertura que ele possibilita é exatamente uma abertura em direção a si. Temos aí um círculo: Eu vos amei, amai-vos uns aos outros (13,34), assim estareis amando a mim (vv. 15 e 21).

Quem arrisca viver nestes termos nada precisa temer. Não há poder que pudesse destruir o que se dá onde Jesus é amado!

Onde sua palavra (que é também a palavra do Pai) é observada acontece algo definitivo. Por isso é dito que todo o amor de Deus se cumprirá naquele que ama Jesus. A este virão o Pai e o Filho e farão nele morada. Eles vêm a quem se distancia de si próprio em amor. Não se trata aí de uma obra meritória por parte do homem. O pressuposto é a fé. Quem não ama a Jesus, mas a si mesmo, não poderá ser templo de Deus.

Vv. 25 e 26: Eis aí a promessa de Jesus de permanecer com os seus discípulos, pois em seu nome o Pai enviará o Consolador, o Espírito Santo. Qual será a função do PARAKLETOS? Ele vos ensinará todas as cousas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito. Ele interpreta e aplica o que sucedeu em Jesus. Não se trata, portanto, meramente de uma recapitulação, mas antes, de uma atualização. O Espírito Santo é o Deus que faz lembrar, que conduz à história de Jesus, testificando da entrega ali realizada, e nos leva a nos entregarmos (Joerg Bauer). Assim a obra de Jesus é continua¬da por Deus mesmo numa nova realidade pessoal.

V. 27: A promissão da morada que o Pai e o Filho farão no crente, e do envio do Consolador, junta-se a dádiva da paz Claramente essa paz é distinguida da paz que o mundo dá. Ela não e algo exterior! É a paz com Deus e com os homens que perdura, que tem consistência mesmo lá onde somos ameaçados de destruição. E uma paz confiada como tarefa. A paz de Cristo, então não e 'passiva'…, nem 'descanso eterno'. É uma paz ativa, uma paz interior, que se consegue na prática do amor e que, alcançada sempre de novo se traduz em amor eficaz e engajado (J. Konings) É paz como graça e como encargo.

III – Meditação

Sugiro destacar na prédica o tema: paz como graça e como encargo. O v. 27, evidentemente, não devera ser isolado, mas sim interpretado no espírito de toda nossa perícope. Na meditação tentarei aprofundar, num primeiro momento, a questão da paz. Num segundo passo procurarei mostrar ser imprescindível estar em intima ligação com aquele que diz: Se alguém me ama, guardará as minhas palavras. Chegarei, assim, à primeira parte do nosso texto.

1. Pelo mundo afora há conflitos armados e não armados. Quanto à situação no continente latino-americano, ela é caracteriza¬da por tensões de todo tipo. Menciono somente alguns poucos exemplos: Sobre pequenos agricultores que tiram da terra os seus parcos meios de subsistência é exercida forte pressão por grandes empresas. De modo geral, há uma iníqua repartição das rendas. Enquanto alguns poucos podem se dar ao luxo de padrões requintados de consumo, a grande maioria luta pela sobrevivência. Aumenta perigosamente o confronto entre as classes sociais. A todo momento são violados os mais elementares direitos humanos. Sequestros, banimentos, prisões arbitrárias e torturas se repetem constantemente. Também o nosso pequeno mundo mais imediato está cheio de tensões. Sim, em nós mesmos erguem-se conflitos.

Aí lemos, então, uma palavra como a do nosso trecho bíblico: Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou. O que significa isso concretamente, perguntamos. Onde há paz? Onde?

Com Jesus Cristo a paz de Deus entrou na história dos homens. O crucificado não fracassou com as suas intenções de paz. A paz não foi derrotada. Daquele que a viveu até o fim, nós confessamos: Ele vive! Ele foi ressuscitado. A paz que com ele entrou no mundo nunca mais poderá ser eliminada. Ao contrário, ela já nos envolve. A paz de Deus já se manifesta, mesmo que muitas vezes devido à nossa cegueira não o percebamos. Às vezes até as igrejas, ao invés de serem instrumentos da paz, aumentaram o ódio no mundo.

Seja como for, uma cousa temos que admitir: Onde a palavra de Jesus Cristo foi ouvida, ali, apesar de tudo, houve um forte impulso em direção à paz. Em Jesus Cristo ela é uma realidade. A paz de Deus já é paz na terra.

Queremos explicar esta afirmação com três exemplos:

a) Culpados são perdoados! Por que tantas divisões, por que tanta separação, por que tantos conflitos no mundo? Por que tanta guerra? Guerra desencadeia-se por causa de suposta ou verdadeira culpa e, ao mesmo tempo, gera nova culpa. Um, porém, quebrou este circulo vicioso! Os escribas e fariseus trouxeram à presença de Jesus uma mulher surpreendida em adultério. Conforme a lei ela teria que ser apedrejada. Como insistissem na questão, Jesus levantou-se e lhes disse: Aquele que dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar a pedra. Então, todos se retiraram um por um. Somente ficou a mulher. Jesus perguntou-lhe: Ninguém te condenou? E o desfecho: Nem eu tão pouco te condeno; vai e não peques mais. As pedras não foram arremessadas. Ninguém conseguiu resistir à pergunta: Quem dentre vós está sem pecado?. Diante de Deus cada qual de nós se encontra na mesma situação de pecador. E se alguém já está com uma pedra na mão para arremessá-la contra o seu semelhante, ele é perguntado: Quem dentre vós está sem pecado? A pedra ficará deitada. Vejam, aqui nos movimentamos em terreno firme da paz.

b) O homem torna-se livre da ansiosa solicitude pela vida. Exagerada preocupação no sentido de querer garantir a sua vida, leva à exploração do próximo. É o medo pela sobrevivência. Medo leva a ver no outro um rival, conduz à guerra. E Jesus? Ele diz: Não andeis ansiosos pela vossa vida. Observai as aves do céu! Não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiro; contudo vosso Pai celeste as sustenta. Não valeis vós muito mais que as aves? E quantas vezes ouvimos nos evangelhos o célebre: Não temais! Certa vez ergueu-se uma forte tempestade sobre o mar. Os discípulos ficaram apavorados. Jesus lhes pergunta: Por que sois tão tímidos? De uma maneira poimênica o homem é libertado do medo que o escraviza. Onde desaparece o medo peia sobrevivência, há abertura para o próximo, há uma real chance para a paz.

c) Barreiras de separação são derrubadas. Jesus entrou numa aldeia de samaritanos com seus discípulos. Samaritanos e judeus eram inimigos mortais. Nega-se a Jesus e seus discípulos a pousada, ao que Tiago e João perguntam: Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu para os consumir? A resposta é: Vós não sabeis de que espírito sois?

Resumindo: Onde culpados recebem perdão, onde ansiosos se enchem de confiança, onde adversários se reconciliam, ali acontece paz na terra.

2. Um ousou viver diferente. Por isso é imprescindível estar em ligação com ele que diz: Se alguém me ama, guardará a minha palavra. Importa querer pertencer-lhe, estar em comunhão com ele, desejar sua presença. Quem ama assim, guardará a palavra daquele que ama. Não mais quer viver sem observá-la. Agirá conforme a mesma. Tal viver em amor terá total cumprimento. O Pai e o Filho virão a quem ama e farão nele morada. Isto significa que todos os outros senhores que estavam tomando conta de nós terão que debandar. Quanto mais deixarmos Jesus Cristo ser o nosso Senhor, tanto mais habitará em nós.

Com a promissão de tomar morada nos discípulos, Jesus lhes dá a certeza de que quer permanecer com eles, após a sua volta ao Pai. Esta sua presença se dá através do Espírito Santo que o Pai envia, em seu nome. O Espírito Santo vem aos discípulos e os orienta como Consolador. A comunidade hoje, da mesma forma, recebe orientação sempre de novo no seu caminho. Nas diferentes situações ela tem quem a oriente: o Espírito Santo que é Deus vivo. Tudo o que o Espírito Santo ensina, está ligado à vida e obra de Jesus. Por isso, ao ensinar se alia o lembrar.

A paz que em Jesus já se tornou realidade no mundo, como dissemos acima, nos é ensinada e lembrada pelo Espírito Santo.

Entre os homens o desejo pela paz é tão antigo quanto a humanidade. Mas ele sempre de novo se acende, em vista de cidades devastadas e homens sacrificados. Em meio a uma guerra se deseja paz. E uma vez conseguida, tenta-se garanti-la à base de armas. Isso está tudo dentro de um sistema de valores e de hierarquias de poderes no qual vivem os homens e no qual perecem. Todo este sistema Jesus rompe de dentro para fora. A paz e o amor que proclamou e viveu renovam os pressupostos da vida. Todo nosso ser e agir poderão estar sob o sinal dessa paz, desse amor. No contato com os cristãos todos os homens deveriam perceber algo desse viver a partir da paz que é graça e encargo ao mesmo tempo.

Karl Marx certa vez exclamou: Os filósofos meramente interpretam o mundo… o que importa é transformá-lo. Oxalá não se possa dizer dos cristãos que eles meramente interpretaram o mundo em vez de fazer algo, em vez de transformá-lo. Somos discípulos do Príncipe da Paz! Vivendo como tais, estaremos vivendo no espírito de Cristo.

IV — Sugestões para a prédica

1. Penso que o pregador poderia apontar para a estranheza que causa a proclamação da paz em meio a um mundo dividido Talvez nos moldes como o esbocei no primeiro item da meditação. É aconselhável trazer exemplos concretos que os ouvintes conheçam, mas sem se deter na difamação do mundo mau.

Não obstante a experiência diária de divisões, separação e ódio, a paz duradoura, a paz de Deus, já é realidade!

2. A paz que o mundo oferece não tem consistência, pois ela esta integrada no sistema de valores» e de hierarquias de poder estabelecido, sistema baseado na corrida desesperada do homem por afirmação de si próprio. Em contrapartida, o Espírito Santo nos mostra um viver a partir do amor, da entrega. Nesse contexto, paz é possível, paz como graça e como encargo.

3. O Espírito Santo nos certifica que a paz que entrou no mundo com Cristo Jesus, não mais poderá ser eliminada. Nada poderá derrotar a paz que provém do espírito de amor, da entrega de si mesmo! (Cf. Rm 8).

V — Bibliografia

– BULTMANN. R. Das Evangelium des Johannes. In: Kritisch-exegetischer Kommentar ueber das Neue Testament.10a ed., Goettingen. 1964.
– SCHULTZ. S. Das Evangelium nach Johannes. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol. 4. Goettingen. 1975.
– BAUR, J. Meditação sobre João 14.23-27. In Calwer Predigthilfen. Vol. 11. Stuttgart. 1972
– KONINGS. J. Encontro com o Quarto Evangelho. Petrópolis. 1975.
– BONHOEFFER. D. Meditação sobre João 14.23-27. In: Gesammelte Schriften. Vol. 4. Muenchen. 1961.
– Vários. Evangelização na América Latina. Centro Ecumênico de Informação. Suplemento 21. Rio de Janeiro. 1978.