|


Prédica: Romanos 12.6-16
Autor: Heinz Ehlert
Data Litúrgica: 2º. Domingo após Epifania
Data da Pregação: 20/01/1980
Proclamar Libertação – Volume: V

Viver como justificados pela fé

I — Considerações exegéticas

1. Observações preliminares.

O texto não apresenta, no aparato crítico do original grego, variantes dignas de nota. Poderíamos chamar atenção para uma, no v.11, onde se apresenta KAIRÕ em lugar de KYRIÕ, ou seja: em lugar de servindo ao Senhor, teríamos servindo ao tempo (hora) oportuno. Apesar de não ter sido aceita no texto de Nestlé, esta variante tem longa tradição. Estaria inclinado a aceitá-la, porque faz muito sentido no fluxo de pensamentos (cf. também Ef 5.16; Cl 4.5). Servir a hora oportuna (presente) teria o sentido de fazer o que a hora exige, o que combina bem com no zelo não sejais remissos. Quanto ao texto em português, ainda prefiro a versão Revista e Atualizada de Almeida, em lugar da que se encontra na Bíblia na Linguagem de Hoje, por estar a primeira mais perto do original grego.

Nosso trecho é tirado do contexto da epístola que, a partir do cap. 12, contém a parte parenética, isto é, exortações quanto à conduta, quanto à maneira de viver e agir dos cristãos. Para a compreensão do nosso trecho, é indispensável ter em mente a afirmação dos vv. 1-2 deste capítulo, pois ali o apóstolo indica em que se baseiam as exortações. Não devem ser mal interpretadas como normas de conduta impostas na forma de leis, mas interpretadas como consequência daquilo que Deus tem feito, em Cristo, pelos crentes. A grande misericórdia de Deus, explanada nos caps.1-11 (ensino), deverá mostrar-se como força propulsora e determinante na vida dos crentes (ética), na própria comunidade e para com os de fora (w.9,14). Para a prédica, será ainda importante enunciar a comparação usada pelo apóstolo: comunidade, um corpo em Cristo.

2. Análise de detalhes.

a) Vv.6-8: Como usar os carismas (dons)? Os carismas, verdadeiros dons da graça de Deus, logo se evidenciam como tarefas no todo da comunidade. Habilitam a uma função mas, ao mesmo tempo, limitam o indivíduo, para dar oportunidade aos demais membros. Assim o requer o cabeça, Cristo, para o bom funcionamento de seu corpo, a comunidade

Os carismas enumerados não coincidem simplesmente com os citados em 1Co 12. Sem dúvida, o apóstolo, que não conhecia pessoalmente a comunidade de Roma, referiu-se aos dons espirituais (carismas, em analogia a 1 Co 12, por exemplo). Não sabemos o quanto conhecia dessa comunidade através de informações de outros. A enumeração aqui não parece ter a intenção de dar uma relação completa, mas de citar exemplos, dando instruções para o uso correto dos carismas (veja 1 Co 12-14). O dom da profecia é citado em primeiro lugar. Segundo nossos conhecimentos, assim é chamado o dom de interpretar, de maneira clara, uma palavra ou mensagem de Deus para um determinado tempo e situação especial. Não são muitas as passagens do NT onde aparece o termo profecia. Além das cartas paulinas, ainda aparece em 2 Pe 1.20s e Ap 1.3; 11.16; etc. É digno de nota que se explicite segundo a proporção da fé. Isso confere com o v.3, onde o apóstolo já exortava a observar a medida da fé que Deus repartiu a cada um. Profecia, portanto, não pode ser um dom que estivesse à disposição de qualquer um, a qualquer hora; mas depende da inspiração divina e da fé que Deus reparte.

O ministério é citado em seguida. O termo grego DIAKONIA sugere a compreensão de servir, uma atividade que presta amparo a necessitados (cf. At 6.1-3). O dom consiste em fazê-lo de maneira a, de fato, ajudar o irmão sem humilhá-lo ou conduzi-lo à inércia.

O ensinar, também considerado dom, era importante juntamente com a proclamação e a profecia, para propiciar um crescimento e aprofundamento na fé e no conhecimento dos fiéis, tornando-os capazes de enfrentar, de uma maneira nova, os problemas da vida, justamente também em decorrência da nova existência em Cristo. Sem dúvida, era baseado na doutrina dos apóstolos (At 2.42). Os crentes deviam aplicar-se a estas tarefas de acordo com o seu dom.

O mesmo vale para o que exorta. Este dom compromete, no sentido de ser usado com dedicação, sem se pensar em outras tarefas da comunidade. A exortação inclui correção, consolo, estímulo e encorajamento para se andar e agir na fé, para se fazer o que por si talvez não faria: justamente o que o apóstolo fazia através de sua carta.

Contribuir – também um dom especial? Talvez se refira a ofertas especiais e de vulto, motivadas por um compromisso que se sente para com uma situação (necessidade) especial. Que seja, então, em simplicidade de coração, sem segundas intenções.

Presidir, evidentemente, é função importante em qualquer comunidade. Exige dedicação e cuidado, na comunidade cristã, isso deve ser redobrado.

Exercer misericórdia deve ser também um serviço que dá amparo ao que se encontra em situação miserável (não se pode definir em que consiste a miséria). Trata-se de uma compaixão que sente com o irmão, que se identifica com ele e que, movida pela alegria no Senhor, procura dar alegria ao próximo.

b) Vv. 9-16: A nova existência em Cristo se manifesta em relação a Deus como fé e, dentro da comunidade e mesmo fora dela, através da prática do amor (cf. Ef 5.2). Estes versículos aplicam, portanto, tal reconhecimento a diferentes situações. A fé se evidencia no amor (Gl 5.6). Nos versículos em pauta é visado especialmente o próximo, tanto no âmbito comunitário, como no social. O apóstolo acha necessário dizer o que o amor faz ou não faz. Sem dúvida, a comparação com o cântico do amor, de 1Co 13, se impõe. Nygren, em seu comentário ao texto (p. 302), sugere que, para compreender melhor o parentesco, se coloque o amor como sujeito nos w. 9ss: o amor detesta o mal e se apega ao bem. Ama os irmãos, preferindo-os em honra… e assim por diante.

No v.9 está a exortação para que o amor seja sem hipocrisia, e no v.16, a admoestação contra o orgulho e a favor da humildade. O amor, pois, inclui autenticidade e, com isso, um profundo respeito pelo outro. Mostrar ao irmão e ao próximo um amor artificial seria um grande desrespeito a ele e uma volta à existência anterior, sem Cristo. Por isso os vv.9,10 e 16 descrevem, de diferentes maneiras, a mesma preocupação. Com isso, apontam para o perigo muito comum de o velho homem voltar a dominar com seu amor próprio, incapaz de identificar-se com o próximo e mesmo insensível às suas alegrias e sofrimentos (v. 15). O ardor original da nova existência em Cristo necessita, aparentemente, de constante renovação (v.11). Como? Isso só poderia suceder pelo recurso à misericórdia de Deus e pela entrega de si mesmo a Deus, qual sacrifício vivo, santo e agradável (cf. v.1). Só assim se poderá aproveitar as oportunidades da hora presente e realizar o que ela exige.

O v.12 apresenta três exortações de profundo significado e alcance neste sentido. A ligação com Deus fortalece, renova e habilita para o andar em amor. De um lado, isso resulta em olhos abertos para as necessidades imediatas da outra pessoa (v. 13) e, de outro lado, capacita a sair da velha ordem do olho por olho. Em lugar de se ter pensamentos de vingança (amaldiçoar), deve-se abençoar os perseguidores. Brunner (p. 89) diz: Vencer o mal pela ação do bem: eis a nobreza e liberdade do amor. É fácil perceber como isso lembra os preceitos do Sermão do Monte (Mt 5.43-48, Lc 6.27-31). A fé em Cristo e o viver nele conduz ao próximo e tira da solidão, estabelecendo nova comunhão. Isso representa uma vida mais rica e contribui para a alegria e paz entre os homens.

II – Meditação

A justificação pela fé, que se tornou tão importante para Lutero, é também hoje relevante para o discípulo de Cristo. Deus me aceita e me considera justo por causa de Cristo e da fé nele: isso é misericórdia. Deus tem compaixão deste mísero pecador. A sua misericórdia me faz membro do povo de Deus, o corpo de Cristo. A nova existência em Cristo, em que fui colocado por Deus (o batismo foi o sinal externo dessa ação de Deus) é prova do seu amor.

Uma comunidade e igreja de confissão luterana faz bem em lembrar-se constantemente desse fato, para a renovação de sua fé e conduta. Fomos e somos acusados de estar mais preocupados com ortodoxia (o ensino correto) do que com ortopraxia (a prática ou conduta correta). Se esta crítica tem fundamento, está na hora de nos penitenciarmos. Em outras palavras: é preciso buscar uma sintonia entre fé e ação, deixando que a misericórdia e o amor de Deus nos conduzam em nosso relacionamento com o próximo e em nossa ação e trabalho na sociedade, no tempo em que vivemos.

O que Deus fez por nós, a aceitação por parte dele, nos dá confiança em nós mesmos (somos alguém), mas ao mesmo tempo exclui qualquer orgulho. No momento em que o orgulho tomar lugar em nós, afastamo-nos da nova existência em Cristo. Uma contrição diária, como Lutero sugere na explicação do sacramento do batismo, poderá contribuir para que fiquemos no lugar que nos cabe e para que assumamos o papei que podemos desempenhar.

A figura que compara a comunidade cristã com o corpo é muito feliz. Pode muito bem expressar a importância e o limite de cada um no iodo. Dizendo no todo do organismo, já estamos chamando a atenção para a necessidade da comunhão. Todo o trecho, que leva tão a sério o indivíduo com sua característica pessoal, é uma única proclamação em favor da comunhão, do conjunto da convivência e cooperação.

Para a comunidade cristã, isso significa que ela precisa cultivar a comunhão dos fiéis, não de maneira artificial, através de promoções que apenas reúnem gente, mas levando a sério o que Deus fez, a missão que ele lhe entregou, e dando oportunidade para que cada qual participe com suas potencialidades. Seguir uma certa tradição e rotina é mais cómodo. Descobrir, porém, os dons e dar oportunidade para aplicá-los é muito mais interessante e dá a todos um sentimento de maior realização. Não basta reconhecer isso e concordar; é preciso que se comece a praticar. Em nossa tradição, o pastor e o presbitério ocupam uma posição chave. Eles e as lideranças dos grupos existentes na comunidade devem submeter-se a um teste, confrontar-se com o nosso texto. Por que não fazer um estudo e levantamento sobre a maneira como nós encaramos os dons? Talvez a predominância de alguns esteja eliminando a participação de outros. Conheci uma comunidade onde uma senhora era ótima professora de escola dominical. Às vezes gemia pela sobrecarga e falhava. Mas, quando jovens foram a um retiro de treinamento e, depois, queriam ajudá-la, não aceitou, alegando que os jovens seriam instáveis, e assim por diante. Quem sabe nós, pastores e presbíteros, corremos justamente esse risco de abafar o Espírito. Se a descoberta e o emprego dos dons estiver orientada para o bem comum e para a missão de Cristo em sua igreja, certamente haverá mais alegria e mais eficiência em nossa atuação.

Não é por acaso que, na segunda parte de nosso texto, seguem-se sempre novas descrições da prática do amor. O amor praticado é expressão genuína da nova existência em Cristo, da vida de fé. Parece que esta prática não é possível, sem um constante entregar-se. Jesus mostrou e pede justamente isso de seus discípulos. Tal entrega não significa a perda da própria personalidade; significa, isso sim, que se desiste de ser senhor de si próprio, deixando Cristo dominar. A renúncia que isso implica libera forças que podem ser aplicadas no serviço ao próximo. A própria experiência mostra: enquanto estamos muito preocupados com a própria felicidade e com vantagens, tornamo-nos inoperantes para com a comunidade e a coletividade. Parece que é um mal do qual nós, brasileiros, sofremos bastante. Isso independe da quantidade de bens que alguém possui. É uma questão de mentalidade. Ou melhor: depende do sentido que vemos em nossa vida. A fé em Cristo dá um sentido que se cumpre quando se segue a ele, praticando o amor ao próximo. Esta prática do amor pode ter muitas facetas. Não necessita de muita definição e filosofia, basta que se abra os olhos para as necessidades dos outros, seja na comunidade eclesial, seja na sociedade como comunidade maior, seja na igreja nacional, no país ou no ecúmeno. O que não vale é ficar inerte por causa da vastidão da tarefa. É preciso começar no ponto que está à mão É importante o constante recurso a Deus (oração, v. 12; bênção, v.14), pois, do contrário, logo nos perdemos. Assim poderemos contribuir para uma nova ordem que dê lugar à paz.

III – Escopo homilético

A justificação pela fé compromete e capacita para uma participação eficiente na vida da comunidade, que se caracteriza como serviço e amor praticado.

IV – Indicações para a prédica

Poderá ser de valor colocar no início uma ilustração (poderão ser achados muitos exemplos de pessoas que se sentem extremamente gratas por um grande benefício que receberam de outras; por exemplo, defesa de perigo, salvação de afogamento, paciente operado por médico). Fica assim estabelecida uma relação de confiança e simpatia e, por que não dizer, de amor.

A seguir, mostrar que não é por acaso que, no começo de um capítulo de recomendações para a conduta, está a lembrança da misericórdia de Deus. (v.1) Discorrer sobre o que ela encerra, de acordo com esta carta aos Romanos. Procurar expor, em breves traços, o que vem a ser o presente da justificação pela fé e como ele abre a possibilidade de uma nova existência, que é necessariamente uma existência em comunhão (a comunhão com os fiéis). Para chegar à segunda parte, que vai tratar dos dons aplicados, poderia ser lançada a pergunta desafiante de como os ouvintes se sentem, quanto ao uso de dons, próprios e de outros. Existem, de vez em quando, problemas. Por quê? Não poderá faltar um confronto crítico do texto com as funções conhecidas e desconhecidas na comunidade.

Numa terceira e última parte, bastaria destacar três exemplos marcantes da prática do amor. Por exemplo: v.11, 14 e 15, concretizados para a nossa situação.

Poderia ser feito o encerramento com a citação do v.12, que nos lança sobre Deus, o qual nos envolve com sua misericórdia hoje e no futuro, evitando que nos atiremos num ativismo orgulhoso e Incapaz de promover a verdadeira paz. A justificação de Deus, porém, estabelece uma ordem mais justa desde agora.

V – Bibliografia

– ALTHAUS P. Der Brief an die Römer. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol. 6. Göttingen, 1949.
– BRUNNER, E. Der Römerbrief. In: Bibelhilfe fúr die Gemeinde. Vol. 6. Stuttgart, 1948.
– NAUCK, W. Meditação sobre Romanos 12.6b-16b. In: Herr, tue meine Lippen auf. Vol. 2. Wuppertal-Barmen, 1959.
– NYGREN, A. Der Römerbrief. Göttingen, 1954.