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Prédica: Deuteronômio 7.6-12
Autor: Lindolfo Weingärtner
Data Litúrgica: 6º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 26/07/1981
Proclamar Libertação – Volume VI


l – O texto

V.6: Pois és um povo santificado a Javé, teu Deus. Javé, teu Deus, te escolheu entre todos os povos da terra para si, como povo de sua propriedade.

V.7: Não porque tivésseis superado em número a todos os demais povos, Deus se inclinou para vós e vos escolheu – pois sois pequena parcela (miudeza) entre a totalidade dos povos,

V.8: mas porque Javé vos tem amor e quis guardar o juramento que fez a vossos pais, ele vos conduziu para fora com mão forte, libertando-te da escravidão, do poder de Faraó, o rei do Egito,

V.9: para que conhecesses que Javé, teu Deus, é o Deus verdadeiro, o Deus fiel que por mil gerações guarda a aliança e a graça para com aqueles que o amam e que guardam os seus mandamentos,

V.10: mas que dá a recompensa, em sua própria pessoa (cara), a todos os que o odeiam, exterminando-os. Ao que o odeia ele não concede paz, mas fá-lo experimentar em sua própria pessoa (cara) a retribuição.

V. 11: Por isso seguirás os mandamentos, as leis e os preceitos que hoje te dou, agindo de acordo com eles.

V. 12: Se, obedientes, seguirdes e guardardes este preceitos, em compensação, Javé, teu Deus, guardará a aliança e a graça que jurou a teus pais.

II — O contexto

Nossa perícope é um recorte (é bom lembrar que perícope significa recorte – fato que sempre é de relevância exegética e teológica) de uma prédica dirigida ao povo de Israel como todo, bem como aos membros individuais. Não será acaso que a admoestação salte continuamente do vós ao tu e vice-versa: O indivíduo se funde com o povo; o próprio povo é singular e simultaneamente é plural. Dt 7 ressalta a situação peculiar e única de Israel entre os demais povos, delimitando-o dos mesmos.

Se bem que no recorte específico que temos em mira não constem prescrições quanto ao relacionamento (ou, melhor, quanto ao não-relacionamento) de Israel com os povos vizinhos, o contexto deixa claro que esta é uma preocupação preponderante do pregador.

Em 7.1-5 é deixado claro que Israel, em virtude de sua escolha por parte de Deus, terá por obrigação realizar o HEREM em todos os povos que vier a expulsar; HEREM significa dedicação ou consagração: o povo de Deus não poderá fazer nenhuma aliança com eles. Não deverá haver relações biológicas (conúbio — casamentos) nem religiosas. A palavra de ordem é de extermínio tanto dos povos como de seus símbolos religiosos – seus santuários, seus altares, suas estátuas. Não que Israel tivesse de lutar por seu espaço vital ( o famigerado Lebensraum). HEREM é um termo genuinamente sacral: os povos são propriedade de Deus e a ele devem ser consagrados – mediante a aniquilação física e a destruição de seus símbolos de culto.

Em uma época caracterizada por genocídios (judeus, vietnamitas, cambodjanos e outros) não será fácil abordarmos este contexto de nossa perícope. Ignorá-lo, porém, ainda será menos indicado. É que a efetividade e a concreticidade do fato da escolha de Israel por parte de Deus faz surgir necessariamente a pergunta da convivência concreta com os povos que não participam da aliança de Deus com Israel. A resposta do Deuteronômio, como da maior parte das vozes do Antigo Testamento, foi o HEREM -a dedicação sacral dos pagãos e de seu culto idólatra a Javé – através do extermínio.

Embora constatemos que o HEREM nunca foi praticado na radicalidade que o termo implica, queremos deixar claro, já de partida, que, frente a tal radicalismo veterotestamentário referente ao relacionamento do povo de Deus com os demais povos, a prédica cristã deverá partir da radicalidade da pregação de Jesus: Aos antigos foi dito… eu porém vos digo. Deverá ser de significação fundamental para nossa prédica uma sondagem do HEREM, da dedicação total dos povos a Deus ao qual pertencem — sob as perspectivas do evangelho destinado a todos os povos.

III – Considerações exegéticas

V.6 – É uma referência a Ex 19.5-6: Israel é um MAMLEKET KOHANYM, um reino sacerdotal, um GOY QADOS (também Israel é um GOY, termo comumente desprezivo para os povos pagãos!), um povo santo, apartado dos demais povos. Como Israel pertence a Deus, assim Deus pertence a Israel: Javé, teu Deus. (Este teu não é pronome possessivo – é antes pronome de relacionamento afetivo!). Note-se que Javé teu Deus é o sujeito exclusivo do ato de escolha. A eleição não produz nenhuma elite auto-suficiente (etimologicamente o termo elite provém de eleitos). Deus escolheu Israel para si – para que sirva a seus propósitos divinos. No momento em que Deus deixar de ser o sujeito e o Senhor da eleição, a elite se tornará auto-eleita e, portanto, usurpadora.

Vv.7-8 — Os motivos da eleição não podem ser derivados de quaisquer condições quantitativas ou mesmo qualitativas próprias de Israel -já que o exame sóbrio da realidade estatística e histórica desfaz qualquer pretensão nacionalista ou elitista em potencial. Os motivos da escolha são inerentes à vontade inescrutável de Deus, a seu raciocínio soberano, a seu coração amoroso, a sua fidelidade. Deus não voltará atrás em seu propósito de conduzir para fora o povo, com mão forte, libertando-o da escravidão, já que continua e continuará amando e cumprindo com fieldade o juramento feito aos patriarcas.

V. 9 – Em última análise trata-se de um desdobramento do primeiro mandamento, ou, antes, do preâmbulo de todos os mandamentos: Eu sou o Senhor teu Deus. O Deus verdadeiro é realidade confiável, através dos tempos e das gerações. As circunstâncias, as reações humanas, a infidelidade das criaturas – não interferem com sua fidelidade e com sua graça, concretizadas na Aliança.

Vv.10-12 – A recompensa na cara, isto é, a experiência pessoa] a ser feita tanto pelo desobediente ( o que odeia a Javé!) quanto pelo obediente (o que o ama!): haverá retribuição. Não entendamos sob o termo qualquer tipo de eco divino aos atos do povo ou do indivíduo, sob perspectivas moralistas. Recompensa e retribuição são antes efeitos como que inerentes à Aliança — são, por assim dizer, sua ratificação no dia a dia do povo de Deus. Não se trata de recompensa punitiva ou meritória no sentido moralista. É simplesmente consequência da santidade e da seriedade da Aliança estabelecida pelo Deus da verdade com o povo de sua escolha. Implica em todas as interações e em todos os efeitos concretos da vivência do povo. A Aliança não é nenhum pacto ideal ou hipotético. Ele é real, material e eficiente – é para valer.

IV — Escopo da prédica e situação dos ouvintes

A quem vamos dirigir a nossa mensagem — já que não será mais o povo de Israel, visado pelo Deuteronomista? Será ao povo brasileiro? à cristandade? à nossa igreja? — ou à congregação específica que nos está escutando? Não pode haver dúvida: nós falaremos ao povo da Nova Aliança. E este povo não é nenhuma grandeza étnica. É um povo santo que Deus vai escolhendo por entre todos os povos da terra – um povo que, no dizer de Lutero, é criatura do evangelho, que vai sendo permanentemente criado, alimentado e mantido através da pregação do evangelho. O ato da escolha, assim, se vai processando neste instante mesmo em que esta mensagem vai sendo anunciada — em uma situação concreta que o pregador não poderá ignorar – mas que é simultaneamente independente de condicionamentos de qualquer natureza — já que é o evangelho que cria uma nova situação. Não é a situação que interpreta e ilumina a mensagem: é a mensagem que ilumina e interpreta a situação.

É, pois, o povo de Cristo, a igreja cristã (inclusive a que está sendo criada agora e aqui mesmo) que o pregador haverá de enfocar — tanto no sentido geral – a cristandade – quanto no sentido restrito – as igrejas cristãs, a congregação reunida, o cristão individual ('Vós e tu – vide parte II). Mas já que a comunidade cristã se acha entrelaçada (biologicamente, socialmente, culturalmente, economicamente — hamartiologicamente, HAMARTIA é pecado) com a grandeza étnica da qual se originou, será justamente neste terreno fronteiriço que se deverá situar a mensagem. O povo de Deus no mundo, no Brasil, aqui em nossa localidade: como é que ele se entende a si mesmo, como é possível identificá-lo e reconhecê-lo, como se distingue de seu ambiente descrente, como se relaciona com o mesmo? Ou não se relaciona dentro da perspectiva da fé? Foi empurrado para um gueto religioso? Mantém apenas relações em terreno neutro – conúbio, comércio, futebol…? Mas estas perguntas embora não sejam secundárias, serão segundas. A pergunta primeira é a do relacionamento do próprio povo de Cristo com seu Senhor. Deste relacionamento primeiro evoluirá o relacionamento segundo (segundo, entendido em sua etimologia original — derivado de seguir). Ao constatar.um relacionamento humano falho, por seu turno, o pregador será levado à falha do relacionamento primeiro e primário, o relacionamento com Deus, dado em Cristo.

Entendemos que nossa prédica deverá situar-se na fronteira do povo de Deus, deverá ser dirigida para dentro e para fora. Embora não tenha sido esta a situação de Israel, a queda, a intenção inerente do próprio texto nos leva a esta consequência: a eleição do povo santo vai acontecendo, hoje e aqui mesmo. A prédica, assim, terá um cunho evangelístico, convidando, apontando as falhas e as mesquinhezas do povo cristão em comparação com o povo que Deus tem em mente — mas, antes de tudo, ressaltando o amor e a fidelidade de Deus nesta nossa situação, que seria desesperadora, se não houvesse a Aliança inalterável estabelecida por Deus e Cristo.

V – Da meditação à prédica

Deus é brasileiro! – O dito é jocoso, é uma das muitas brincadeiras que costumamos fazer para, quiçá, escondermos cousas bem mais sérias. Mas, quem sabe, muitos realmente, bem no fundo do coração, assim pensem: Deus tem um fraco pêlos brasileiros. Ele sorri, complacente, ao pensar em nossas pequenas e grandes fraquezas: o jeitinho, a corrupção, a verbosidade, o apadrinhamento político, a vida despreocupada (e despreocupada também com a miséria de outros brasileiros, menos felizes) e, quem sabe, Deus se impressiona por nossa grandeza…

Aos que assim pensam, vamos dizer com clareza: Deus não é brasileiro. O Deus de Israel também não foi israelita. Não se deixou encampar por um povo que ele chamava seu povo. Um Deus encampado é um ídolo. Deus não é ídolo. Ele é Senhor. Mas se Deus não é brasileiro, ele é o Deus dos brasileiros, assim como ele é o Deus dos argentinos e dos alemães e dos cubanos e de todos que aceitam ser seus filhos. Assim que o saibamos hoje, nós, cristãos brasileiros aqui reunidos: Deus é nosso Deus, ele nos quer, ele nos ama, ele nos convida, nos aceita assim como somos – para sermos membros de seu povo santo que ele vai reunindo de todas as terras. Passou o tempo em que uma certa nação era o povo de Deus. O povo de Deus, hoje, é o povo do evangelho. Povo que vai sendo criado dia a dia — onde a fé nasce pela mensagem de Jesus Cristo, no qual Deus fez uma Nova Aliança, para que houvesse um povo a ele santificado, um povo de sacerdotes prontos para servir e carregar os fardos dos seus semelhantes perante Deus, como irmãos do Cordeiro, do Sumo Sacerdote que se sacrificou por seu povo em Gólgota.

Como se conhece este povo de Jesus na terra? Como se identifica o povo escolhido, o povo santo da Nova Aliança? — Não será por sua grandeza impressionante, por sua organização, por sua tradição veneranda. Deus não olha etiquetas. Deus quer um povo santo que lhe pertença de coração. Santidade não é etiqueta. Santidade é vida permeada pela graça de Deus. Assim, em realidade só Deus conhece e identifica o seu povo, pois sé ele sabe quem é que o ama. Mas Deus não nos deixa na incerteza. Deus também não pergunta: vamos ver quem é santo para que o possa escolher. Deus não nos escolheu porque fomos santos, mas sim, para que sejamos santos. Acontece alguma cousa concreta, quando Deus nos escolhe. O Deus dos brasileiros muda os seus filhos, de fundo, quando eles passam a viver em sua presença. Ele mexe com o seu íntimo, seu coração, com o centro de sua vontade, de suas decisões, de seus sentimentos. Ele os molda pela imagem de seu Filho Jesus Cristo. Assim, quem conhece Jesus Cristo, também saberá conhecer e identificar o seu povo e os membros individuais de seu povo. E os descrentes? Eles nos saberão identificar também? Ou eles nem estão notando que há uma diferença fundamental entre crentes e descrentes? Será que eles estão cegos? Ou será que nós não nos tornamos transparentes para Deus? Será que nós conseguimos transmitir-lhes o recado de que eles são propriedade de Deus também, embora ainda não o saibam — que Jesus Cristo também morreu por eles, em seu lugar — que eles já foram dedicados, consagrados e aceitos – só faltando que de sua parte ouçam, aceitem, sigam o Filho de Deus?

Ë um título de honra, um título nobiliárquico sermos chamados de povo de Deus. Somos filhos de um Pai rico, destinados a participarmos da herança. Queremos lembrar-nos deste Deus amoroso e fiel, que nos escolheu apesar de nossa fraqueza e miséria, que ficou fiel apesar de nossa infidelidade e de nosso desamor. Mas queremos lembrar-nos também que com sua santa vontade não se brinca. Queremos lembrar-nos que com a sua Aliança em Jesus Cristo não se brinca. Que é uma Aliança para valer. Que esta Aliança nos conduz para fora da escravidão, nos livra de qualquer Faraó – de qualquer poder que escraviza e paralisa nossas ações e nossa obediência filial. Aos olhos de Deus não vale a etiqueta — vale o conteúdo. E o conteúdo é o amor que temos a Deus — resposta a seu amor — que se traduz em atos de obediência — que se traduz em preocupação pelo irmão que sofre, também pelo irmão descrente, irmão ainda por nascer. Assim, deixemos que o evangelho de Jesus Cristo hoje renove a Aliança que Deus fez conosco. Sejamos o que somos: o povo santificado do Senhor. Faremos a experiência de que Deus responde, de que ele age, de que sua presença envolve nossas experiências e nossa vivência.

E os outros? Os brasileiros e os estrangeiros descrentes ou indiferentes? Os inimigos de Deus? Serão nossos inimigos também? — O povo de Deus antigo recebeu a incumbência de destruir os santuários, de quebrar os altares dos povos idólatras, de exterminar os próprios povos, fazendo-os ser presa consagrada a Deus. — Ouvistes que foi dito aos antigos… eu porém vos digo… – O povo de Jesus Cristo também destrói santuários, também quebra altares idólatras. Também dedica e consagra povos ao Senhor. Mas já não é pela destruição violenta. É pela palavra que o povo de Deus age. Ide, fazei discípulos de todas as nações… Aos brasileiros e aos estrangeiros, portanto. Este será nosso modo de combater os descrentes, assim eles nos saberão identificar: a mensagem do evangelho que partirá de nós, os fará ser presa de Deus. A espada do Espírito os fará sentir o juízo e o amor de Deus. Assim o povo santo do Senhor crescerá — novos filhos e novas filhas lhe nascerão. Da casa de Deus irradiará justiça, verdade e graça.

De sua parte, Deus guardará a Aliança que conosco fez em Jesus Cristo. Ele permanecerá fiel a si mesmo. Ele tem o propósito de salvar, de libertar da escravidão, de criar condições de justiça e paz. Guardaremos nós, de nossa parte, a Aliança?

VI – Bibliografia

– PÁGOZDY, L. M. Meditação sobre Deuteronômio 7.6-12. In Gottinger Predigtmeditationen. Ano 56. Caderno 5. Göttingen, 1967.
– RAD, G. von. Das fünfte Buch Moses. In: Das Alte Testament Deutsch. Vol.8. Göttingen, 1968.
– STÄHLIN, W. Meditação sobre Deuteronômio 7.6-12. In: Predigthilfen. Vol.3. Kassel, 1963.