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Prédica: Isaías 35.3-10
Autor: Nelson Kirst
Data Litúrgica: 2º. Domingo de Advento
Data da Pregação: 09/12/1984
Proclamar Libertação – Volume X


l – O texto

Para melhor compreensão do texto, passo a fornecer uma tradução própria. Para a prédica, porém, a tradução de Almeida é aproveitável. No entanto, caso se optar por salientar os conteúdos dos vv. 6-8, é de se pensar em dar à comunidade uma tradução diferente, nos termos que seguem abaixo.

V. 3: Firmai mãos frouxas e joelhos trôpegos fortalecei!

V. 4: Dizei aos precipitados de coração: Sede firmes, não temais! Eis o vosso Deus. Vigança vem, a retribuição de Deus. Ele mesmo vem e vos salvará.

V. 5: Então serão abertos os olhos dos cegos e os ouvidos dos surdos serão desimpedidos.

V. 6: Então saltará como um cervo o coxo e jubilará a língua do mudo, pois romperam no deserto águas, e arroios, na estepe.

V. 7: E se transformará a areia esbraseada em banhado e a terra tórrida em fontes de água. No reduto (onde) chacais habitavam (surge) um lugar de cana e junco.

V. 8: E lá haverá caminho e estrada; e será chamada a Estrada Santa. Não passará por ela (qualquer) impuro. Ela será do seu povo, ao andar pela estrada. Nela, nem mesmo os loucos errarão.

V. 9: Não haverá lá leão, e animal feroz não subirá por ela (e) não será encontrado lá. Mas os libertados andarão (por ela).

V. 10: E os resgatados de Javé retornarão e virão a Sião com júbilo. Alegria eterna sobre a cabeça deles. Felicidade e alegria alcançarão, e (deles) fugirão tristeza e gemido.


A estrutura do texto é bastante clara:

Vv. 3-4 a conclamação
                      a fortalecer os que estão abalados

V.4b fundamentação
                      (da conclamação e do fortalecimento) : Deus mesmo vem para vingar e salvar.

Vv. 5-10 consequências:

5-6a cegos, surdos, coxo e mudo serão curados

6b-7 águas arrebentarão no deserto, a terra seca se transformará em banhado

8-10 a Estrada Santa

         8 será do seu povo / nela não haverá impuro / sobre ela nem o louco errará
         9 nela não haverá ameaças e perigos, só resgatados
       10 por ela, retorno a Sião, com júbilo e alegria.


O cap. 35 é todo ele (vv. 1-10) uma unidade inteira e coerente, que se encontra isolada dentro do contexto do Livro de lsaiaas. É lícito, portanto, tomar e analisá-la só para si. Para fins homiléticos, podemos aceitar a perícope como nos é indicada, vv. 3-10, ignorando os vv. 1 -2, já que os conteúdos deste bloco aparecem no restante do texto.

O cap. 35 não é de Isaías, por motivos que não precisam ser esmiuçados aqui. É algo como uma imitação de Dêutero-lsaías, manifestando uma esperança que deve ter sido muito difundida em Israel, talvez lá pelo séc. V (aparentemente, grande parte de Israel já vive na diáspora), e que se articula em ainda outras passagens secundárias do Livro de Isaías: 4.2-6; 11.11-16; 29.17-24; 30.18-26; 32.15-20; 33. 17-24. (cf. WILDBERGER, H. Jesaja. In: Biblischer Kommentar Altes Testament. v. X/16. Neukirchen-VIuyn, 1979, p. 1359.)

Vv. 3-4a: De quem fala este trecho? De pessoas que estão de mãos frouxas, joelhos trôpegos e coração precipitado, isto é, que estão física e psiquicamente exaustas (cf. 2 Sm 17.2 e Jó 4.3). Têm dificuldade de manter-se de pé e andar em frente, de realizar algo com as mãos. Estão com o coração disparando de medo (cf a segunda parte de 4a).

Por que estão neste estado? Aparentemente porque se encontram sob a opressão de inimigos, sobretudo no cativeiro. É o que se pode depreender dos vv. 4b e 9b-10.

Quem fala aqui? O profeta — ou alguém que se dá como tal. Com que intenção? Quer dar ânimo, empurrar para a frente, estimular, dar esperança para que possam sair da exaustão e do abatimento em que se encontram.

A quem se dirige o profeta, com seus imperativos? Se não menciona um destinatário específico, é porque, decerto, não o tinha em mente. Seria perda de tempo procurarmos por um intermediário entre o profeta e os destinatários de sua mensagem. Podemos tomar os imperativos como mera figura retórica, ou então imaginar que o profeta os dirigia a qualquer que ouvisse sua conclamação.

V. 4b: Aqui está o centro do texto. Esta é a fundamentação para as conclamações de 34a; e os vv. 5-10 não farão mais do que arrolar as consequências deste 4b.

Eis o vosso Deus! Isso expressa que o vosso Deus vem, é claro. Olha, o vosso Deus taí! Se está chegando, deve ser para fazer alguma coisa. Sua vinda só pode ter algo a ver com a situação dos destinatários. Deve ser algo como o atendimento às suas súplicas e anseios.

Se o vosso Deus está chegando, é porque não estava a f. A situação em que se encontravam era tida, então, como de ausência de Deus. Deus os tinha largado à própria sorte — pelo menos, esta deve ter sido a sensação imperante — e agora retoma relações.

Não é dito Eis Javé! ou Eis Deus!, mas Eis o vosso (!) Deus!. Vosso Deus traz consigo a ideia da história pregressa comum, da experiência já vivida, da fidelidade e do cuidado já experimentados e agora vislumbrados. O vosso Deus não é um desconhecido. O vosso Deus é o que libertou do Egito e fez aliança e deu a terra e cumpriu promessas. E não poderia fazê-lo de novo? Vosso Deus — esta expressão só já basta para desencadear lembranças, associações e esperanças sem fim.

O resto de 4b vai explicar o que significa esta chegada de Deus. O vosso Deus taí! já era em si carregado de promessas, e agora vai articular-se o que essa chegada significa especificamente na situação dos destinatários.

Significa vingança e retribuição de Deus. Queiramos ou não, é isso o que está aí. Não há como emendar ou enfeitar estas palavras, como tentam alguns exegetas. Os termos hebraicos significam isso mesmo. Trata-se de represália, pagamento, castigo contra alguém, por uma ofensa sofrida. Aqui, não há dúvida: é vingança de Deus contra os povos que seguram Israel no cativeiro.

Continuando com 4b, vosso Deus taí! significa mais: ele mesmo vem e vos salvará. O termo hebraico para salvar tem sempre Javé como sujeito e o seu povo ou um membro deste povo, como objeto. Geralmente significa livrar da ameaça ou da opressão de inimigos, para uma existência de bem-estar: tranquilidade, paz, saúde, abundância. (É o que nos mostra uma pesquisa concordancial que não temos espaço para reproduzir.)

Nas três partes de 4b se expressa a mesma coisa. Cada uma delas já contém em si o significado do conjunto: vosso Deus vem para intervir contra as nações que oprimem seu povo; e isto, visando o bem-estar deste. Esta ação de Javé está no futuro. Vai acontecer. O papel de Israel é passivo. Javé é o único agente. Não há o menor vestígio de espiritualização: vislumbra-se um acontecimento real dentro da história.

Por causa dessa intervenção iminente de Javé não há mais motivo para o medo e a exaustão dos israelitas. E a chegada do vosso Deus tem ainda outras consequências (vv. 5-10).

Vv. 5-6a: O primeiro conjunto de consequências fala de saúde total. O trecho é repetido, de certa forma, em Mt 11.5.

Não há por que espiritualizar o conteúdo que temos pela frente. Em quatro frases, o texto fala de cegos, surdos, coxos e mudos reais. Fala de deficiências físicas concretas, e certamente não é por acaso que menciona exatamente estas quatro. Trata-se, decerto, das doenças mais em evidência, que mais afligiam a sociedade. A eliminação dessas doenças, esta dimensão de saúde total é parte da realidade boa que se espera da intervenção de Javé. Cf. 29.18; 32.3-4.

O que surpreende é que a restauração da saúde vai muito além da medida que normalmente se poderia esperar: o coxo não caminhará, mas saltará como um cervo, e a língua do mudo não falará, mas jubilará. Há um excedente, uma boa margem de exagero, na implantação da saúde total.

O que tem tudo isso a ver com a libertação dos inimigos e o retorno do cativeiro? Vejo a seguinte relação: a partir do que sabe do vosso Deus, o profeta projeta a esperança de uma libertação dos inimigos no âmbito real da história (vv. 3-4), e aproveita para jogar, então, sobre esta esperada intervenção de Javé, a expectativa de uma restauração total da realidade humana. A esta pertence a restauração total da saúde.

VV. 6b-7: O segundo conjunto de consequências: profusão de água (e fertilidade). Este trecho vem formulado como uma fundamentação da parte anterior (Kl, pois, com perfeito profético), o que deve ser mero artifício estilístico, já que não faz qualquer sentido lógico, pois 6b-7 não diz nada, como fundamentação de 5-6a ou mesmo de 3-6a.

Esta parte movimenta-se em cinco frases. Como no caso do trecho anterior, também aqui há a extrapolação, o exagero; e isto, em cada uma das frases. Bastaria dizer que haverá água para beber e que do solo brotará qualquer coisa de comestível. No entanto, o que temos é a imagem de um mundo desesperada mente tórrido transformando-se em fontes, rios e banhados. Um exagero. O chacal é animal típico de regiões desérticas. Se o seu habitat se transformar em lugar de cana e junco, isso quer dizer que se tornará fértil como o delta do Nilo.

A ideia da fertilidade não está expressamente articulada, mas é, sem dúvida, subentendida quando se pensa em profusão de água.

Vv. 8-10: Nos dois blocos anteriores tínhamos, como consequência da chegada de Javé, a inversão de duas das mais dramáticas calamidades públicas do antigo Israel: doenças/deficiências físicas e seca/fome. O terceiro bloco de consequências, nos vv. 8-10, refere-se àquela que é, talvez, a maior calamidade pública: opressão de inimigos/cativeiro. E, como nos dois casos anteriores, a esperança extrapola o normal. Não se trata de um simples retorno. É retorno à pátria pela Estrada Santa, em completa segurança, em harmonia com Javé, em júbilo, alegria e felicidade.

V. 8: É a Estrada Santa. Santa, no Antigo Testamento, é uma pessoa ou coisa que é apartada do cotidiano, da existência corriqueira e normal, para ser dedicada a Javé. Assim é esta estrada. Não é uma estrada normal. É uma estrada para o uso exclusivo dedicado a Javé.

O que significa a santidade desta estrada? Isso será desenvolvido em quatro colocações, do v. 8 ao 10.

a) Primeiro, por ela não passará impuro. Impuro é o que está impedido, por razões cultuais, de ter um relacionamento íntegro com Javé. Dentro do espírito geral do texto, entendo esta frase não num sentido excludente. Não quer dizer: por esta estrada só transitará gente boa; os impuros não poderão passar, estão excluídos do retorno à pátria. Quer dizer, isto sim: todos os que retornarem por esta estrada estarão de relações desimpedidas com Javé. Nada obstruirá tais relações. Este é, pois, um elemento da nova realidade a ser criada pela intervenção do vosso Deus: relação desimpedida com Javé. (Neste ponto, nosso texto aproxima-se muito de Jr 31.31-34.)

b) Segundo, ninguém correrá o risco de se perder, de se extraviar, de se desviar, nesta estrada. E, de novo, o exagero: nem o louco errará.

V. 9:
c) Terceiro, a estrada será segura, livre das ameaças que normalmente amedrontam caminhantes: leões e outros animais ferozes. Desaparecerá o medo. (Este elemento, da ausência de medo, está presente tanto aqui, quanto ern a) e na acentuação da alegria, no v. 10.)

Não haverá ameaças na Estrada Santa, mas apenas libertos. O termo hebraico empregado aqui para libertar, GA'AL, é o mesmo que designa a ação salvadora de Javé no Êxodo. Ele tem sua origem no direito de família e possui o sentido de libertar uma pessoa através de pagamento, de resgate. Isto pode acontecer, por exemplo, quando alguém se torna legalmente escravo de outro por não poder pagar uma dívida. Espera-se, então, dos parentes mais próximos que entrem em ação para resgatá-lo. Assim, Javé há de resgatar os cativos no exílio, dos seus opressores.

V. 10:
d) Quarto, retornam do cativeiro os resgatados de Javé. O verbo empregado aqui para resgatar, PADAH, é menos frequente que GA'AL, mas também tem o sentido de libertar através de compra.).

De onde retornam os resgatados? Impossível precisá-lo, com um texto de autoria tão indefinida.

O local para o qual retornam é o da morada de Javé, Sião, a colina onde se localiza o templo em Jerusalém. Se exilados voltam para radicar-se no lugar da morada de Javé, mostra-se também aqui que o bom relacionamento com Deus é elemento essencial da nova realidade.

Como nos vv. 6 e 7, há, outra vez, uma extrapolação para muito além do normal e esperado, há um exagero vestido em linguagem esfuziante, principalmente no v. 10: júbilo, alegria eterna, felicidade e alegria, fugirão tristeza e gemido. O profeta não poupa palavras para descrever o extravasamento de felicidade.

Para fins homiléticos –e em vez de um escopo – vale segurar ainda o seguinte:

a) Ante a indefinição quanto à autoria, só podemos depreender a situação dos ouvintes/leitores originais a partir do próprio texto: Eles estão abalados, física e psiquicamente. Há que se contar com paupérrimas condições de saúde, manifestas particularmente no grande número de pessoas com deficiências físicas: cegos, surdos, coxos, mudos. Uma seca imensa faz desertos, estepes, terra esbraseada, falta d'água e, portanto, também de alimentos. O povo está padecendo no cativeiro, em terra distante. É grande o medo e a insegurança. Existe a noção de que tudo isso está ligado a um afastamento de Javé. Esse afastamento deve ter algo a ver com a impureza que não mais existirá sobre a Estrada Santa.

b) A intenção do profeta, diante de tal situação, é a de: fortalecer, dar ânimo e estimulá-los a uma esperança numa nova situação de saúde total, de água (e alimento) em abundância e num retorno alegre e livre de ameaças à pátria e ao convívio com Deus; tudo isso, como fruto da intervenção vingadora e salvífica de Javé.

c) Uma pergunta crucial, que deve interessar ao pregador: De onde tira o profeta a razão para esperança tão extravagante? O que o faz arriscar-se a tanto, apostar tão alto em Javé? Como pista para uma resposta só vejo, no texto, o vosso Deus, a noção da fidelidade de Javé, demonstrada numa história pregressa comum, na qual já houve perdão e libertação de Javé para o seu povo.

II — Entre o texto e a prédica

1. O texto é sugerido para o 2º. Domingo de Advento. É tempo de espera pela vinda de Jesus. O texto combina muito bem com o sentido e a atmosfera dessa época do Ano Eclesiástico e o início da prédica poderia bem aproveitar essa circunstância. A audácia e imaginação expressas na projeção de esperança em nosso texto, podem ser um bom auxílio para nós — que estamos tão lerdos e embotados, neste sentido — projetarmos sobre este Jesus, que vai nascer, uma esperança audaciosamente criativa.

Poderia ser feita uma ligação, também, com o tema da IECLB para 1984, Jesus Cristo – Esperança para o mundo, oferecendo-se, assim, uma das últimas oportunidades para abordá-lo.

2. O profeta alimenta esperança por uma intervenção de Javé para a solução de um problema imediato: libertação da opressão no cativeiro. Tem-se a impressão, porém, de que essa esperança mais imediata, calcada no que o profeta sabe do vosso Deus, contagia e motiva-o para ir mais adiante. E, indo mais adiante, não conhece limites (vv. 5-10).

Esperança sempre espera do futuro aquilo que não existe no presente. No presente não há saúde, não há água e alimento, não há paz, segurança e tranquilidade, não há alegria e felicidade, não há relação desimpedida com Javé, não há o assentar-se na própria terra. No presente há o oposto. A partir daí, o profeta se atreve a jogar sobre o vosso Deus a esperança da realização de tudo isso – e não, como remendo, como progressão lenta e segura, como melhoramentos, mas como algo total, definitivo, absoluto, transbordante, excedendo em muito os limites do normal.

O que o profeta projetou não aconteceu. Ocorreu em parte, com o retorno eventual de alguns exilados. Mas não se realizou, nem sequer aproximadamente, o esperado. O que não desmerece a esperança formulada. Mas deixa-a no ar, como um anseio, uma súplica, um clamor, e sobretudo um voto de confiança dirigido ao vosso Deus.

3. A comunidade do Novo Testamento recolhe esta esperança, numa citação parcial do texto, em Mt 11.5, e afirma com isso: o que o profeta esperou cumpriu-se em Jesus. Poderíamos dizer mais: em Jesus a esperança descomunal do profeta vai ainda além, ultrapassa todos os limites e vem ser promessa de ressurreição dos mortos, válida também para os gentios.

As dimensões de esperança do nosso texto reaparecem na concepção do Reino de Deus, inaugurado com a pregação e a ação de Jesus. Se aquela esperança já se realiza em Jesus, também é verdade, segundo o Novo Testamento, que o Reino de Deus ainda não veio em definitivo. Por isso oramos por sua vinda (Mt 6.10).

A espera pelo Reino implica ação pelo Reino, como se lê em Mt 6.33. É uma ação que faz parte da espera e à qual o profeta se refere, quando conclama firmai mãos frouxas, fortalecei joelhos trôpegos, dizei aos de coração precipitado….

4. O recurso ao Novo Testamento também se torna obrigatório a partir do vosso Deus, que é o pivô do texto e razão de ser da audaciosa esperança do profeta. O nosso Deus, razão de ser da nossa esperança, o Deus com o qual temos uma história pregressa comum, não é mais simplesmente o Deus do Antigo Testamento, mas é o Deus que veio a nós na vida, morte e ressurreição de seu Filho. Para nós, a esperança só pode nascer dessa história pregressa que nos une a ele. Inconcebível uma prédica cristã sobre este texto, sem esta base.

5. Os itens 3 e 4, acima, não significam que acabaremos pregando sobre o NT, tendo o texto do AT a mera função de gancho. O AT é fundamental para entendermos Jesus Cristo. Assim, nosso texto é uma ajuda para conseguirmos imaginar e formular e alimentar, nessas fantásticas dimensões (cf. item 2), tudo o que nos é permitido esperar do Deus de Jesus Cristo. Para isso o texto do AT abre os nossos olhos e escancara nossa imaginação e criatividade.

6. É bom dar-se conta de que o texto dificilmente será compreendido pela comunidade numa primeira leitura, sem preparo algum. Ele não é difícil como uma perícope paulina, mas é muito estranho, distante. Portanto, convém lê-lo apenas depois de certo preparo. O melhor seria antecipar alguma coisa sobre: situação dos ouvintes, intenção do profeta e uma pequena ideia do conteúdo do seu recado.

É possível prever ou adivinhar uma série de associações que podem ser desencadeadas no ouvinte, ao ouvir o texto. Não podemos, aqui, persegui-las todas. É bom atentar, porém, para a questão da vingança de Javé. Por razão de honestidade, não podemos ajeitar o texto. Ele diz isso mesmo. Ficamos num impasse, porque depois de Jesus Cristo não podemos falar bem assim da vingança de Deus. A minha sugestão é de que a prédica nem toque no assunto, porque se tocar, vai ter que investir muito do seu tempo nesta questão para explicá-la bem — tempo precioso que deveria ser utilizado para assuntos mais centrais do texto. Se, após o culto, alguém questionar o pregador quanto ao assunto da vingança de Deus, aí sim esta pessoa es-tará preparada e haverá condições para se entrar em detalhes sobre o tema, numa boa conversa.

III – Sugestões para a prédica

Indo mais concretamente em direção à prédica, sugiro que se retome os pontos a) até c), elaborados no final do capítulo l, procurando atualizá-los. Aqui não temos espaço para entrar em detalhes. O que segue são apenas pistas e ideias. Elas, evidentemente, não poderão ser aproveitadas todas numa prédica. O pregador que as considerar de utilidade terá o trabalho de selecionar algumas e aprofundá-las com dados concretos e exemplos da vida.

a) Há situações hoje, entre os ouvintes de nossa prédica, que se assemelham à situação dos ouvintes originais do profeta? Sem dúvida: opressão de inimigos (de países ricos sobre os pobres, sobretudo toda a questão da dívida externa/F M l; de grupos sobre grupos, dentro do país, levando a problemas como a situação do pequeno agricultor, do meeiro, do bóia-fria, do migrante, como a miséria geral, o salário baixíssimo e o custo de vida exorbitante);saúde (as deficiências provocadas pela subnutrição e outras; a precariedade da assistência médica, particularmente a catástrofe do INPS; as doenças que mais matam e às quais estamos entregues: cardiopatias, câncer, stress e outras; as doenças evitáveis e que não são evitadas); seca, enchentes, falta de alimento, a fome que se alastra pelo país e pelo mundo; insegurança e medo (de não conseguir dar sustento à família, do desemprego, da violência generalizada, de loucuras nas ruas e estradas, da catástrofe ambiental e nuclear); distanciamento de Deus e consequente medo diante dele ou de supostos deuses.

b) Posso abordar hoje essas questões, e outras semelhantes, com a mesma intenção que o profeta demonstra no texto? Sem dúvida. Que dizer aos que, de uma ou outra maneira, se encontram em situação de sofrimento semelhante à dos ouvintes do profeta? Dizer que Deus é contra o sofrimento em que se encontram, seja qual for; que o projeto de Deus é o mundo descrito nos vv. 5 a 10; que nosso Deus vem, já veio e virá para mudar essa situação, invertendo-a extrapoladamente. A partir daqui pode-se dizer e fundamentar que, antes de mais nada, o nosso Deus quer ser companhia e apoio e encorajamento aos que estais cansados e sobrecarregados, dentro e no meio do seu sofrimento. Isto é fundamental para aqueles sofrimentos que não podem ser mudados — como a perda de uma pessoa querida ou o padecimento de uma doença incurável.

Também se pode e deve estimular quem sofre à ação, a combater o sofrimento evitável e corrigível — próprio e alheio. O texto oferece pistas para este apelo à ação: 1º.) antes de mais nada, a esperança por uma nova realidade só é legítima se ligada a uma ação que corresponda à nova realidade esperada; ter esperança significa agir no sentido dessa esperança; 2º. o próprio texto chama à ação: firmai, fortalecei, dizei. (O apelo do profeta pode ser entendido como dirigido também aos próprios sofredores, para que se apoiem mutuamente.)

O apelo à ação, na nossa predica, também pode ser derivado da concepção de Reino de Deus, como foi apontado no item 3 do capítulo anterior.

Entre os ouvintes da prédica também haverá pessoas que não se encontram em qualquer das situações de sofrimento esboçadas pelo pregador. Estas terão imensa dificuldade de acompanhar o discurso da prédica sobre a esperança. Esperança só entende quem sofre — não há como escapar disso. Quem está bem não precisa nem consegue alimentar esperança. Consegue, talvez, entender o apelo à ação, desta prédica. Então, que seja convidado a firmar, fortalecer, dizer!

É muito importante que o apelo à ação fale do que é factível. Igualmente importante é mostrar que já acontece Reino de Deus ao nosso redor. Ao propormos ação, apontemos modelos. As senhoras da OASE que vão fazer companhia a velhos e doentes estão realizando esperança, semeando Reino de Deus. Assim, também, aquela vizinha que sempre está aí quando alguém precisa de ajuda, o líder de bairro ou sindicato que dá seu tempo e energia para o bem comum, o médico que olha mais para o paciente do que para o dinheiro. Esses sinais do Reino existem — nós é que tão dificilmente os vemos. Mós tremos esses sinais, ao convidarmos nossos ouvintes à ação.

c) Posso fundamentar a esperança proposta da mesma maneira como o profeta? Posso, porém de modo transformado e mais radical. Entra aqui o que já foi exposto acima, nos itens 3 e 4 do capítulo anterior.

Uma prédica sobre nosso texto pode ter a seguinte estrutura:

Introdução (muito breve) alusão à época do Ano Eclesiástico
I a situação presente, com seus sofrimentos
II a situação dos ouvintes/leitores originais do texto
III leitura do texto
IV a esperança do profeta e sua fundamentação
V a esperança que a nós é dado alimentar e sua fundamentação
VI apelo à ação.

Para finalizar, três observações:

a) Numa prédica como a que está sendo proposta, a situação presente pode envolver tanto o pregador e aparecer com tal força na prédica, que a proposta do texto tem dificuldade de sobressair com o devido peso. Por isso, vale o alerta: dar chance ao texto e à sua proposta, não deixar que submerjam ante o impacto da realidade presente.

b) Ao falar da realidade atual, não ficar em generalidades. É importante dar dados concretos, particularizar, dar nome aos bois, mencionar lugares, tempos e nomes, para que fique claro que as questões mencionadas são reais e existem bem ali, ao nosso lado.

c) Como sugestão, passo adiante três boas metáforas que apareceram em prédicas do Seminário de Homilética do CTB, onde trabalhamos este texto: Jesus Cristo é como a câmara de ar ou a bóia de salvamento que é atirada a quem se debate' desesperadamente nas águas; a pessoa sem esperança é como uma bola murcha, vazia, que fica estatelada e inerte lá onde se a joga, enquanto a pessoa com esperança (isto é, a pessoa que é abastecida por Deus com esperança) é como a bola que recebeu ar, está cheia e salta, corre, tem vida, vence obstáculos; a pessoa que é abastecida por Deus com esperança, e age a partir dai', é como a sanga que é alimentada pelo lençol d'água e, a partir de lá, corre e vai irrigar a terra.

As três metáforas podem ser utilizadas para uma unidade menor da prédica. Sobretudo a primeira e a terceira também se prestam como matriz ou molde para a prédica toda ou uma parte maior dela.

IV — Subsídios litúrgicos

1. Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus e nosso Pai. Hoje de manhã deixamos as nossas casas e pusemo-nos a caminho para vir aqui à tua presença, ouvir o teu recado e falar contigo. E, para início de conversa, Senhor, queremos dizer-te que nesta época de Advento, nesta época de espera pela vinda do teu Filho, a nossa espera tem sido muito fraca. Nós nos entregamos diante das tantas preocupações que nos afligem: o emprego incerto, o desemprego, o custo de vida, o dinheiro curto, a doença, a falta de segurança. Tudo isso, e muita coisa mais, Senhor, ocupa a nossa mente e o nosso coração e faz com que a nossa esperança na tua vinda seja tão pequena e tão fraca. Pela fraqueza da nossa esperança nós te suplicamos: perdoa-nos e tem piedade de nós. Senhor!

2. Oração de coleta: Deus de toda fidelidade, tu que vieste e virás, tira de nós, agora, toda inquietação, ajuda-nos a ficarmos calmos e atentos, para que possamos compreender a tua mensagem de hoje — mensagem que fala da tua vinda, da chegada do teu Reino, que está próximo. Por Jesus Cristo, que contigo e com o Espírito Santo vive e reina de eternidade a eternidade. Amém.

3. Assuntos para a oração final: gratidão pela possibilidade de se reunir, como comunidade, e de ouvir a palavra de esperança, a promessa da vinda do nosso Deus, com todas as suas consequências; gratidão pelos que semeiam Reino de Deus ao nosso redor (se possível mencioná-los, sem, necessariamente, citar nomes); intercessão pelos que sofrem a tal ponto (por problemas de saúde, de opressão, de falta do necessário para viver, de insegurança e medo, de afastamento de Deus) que não conseguem mais ter esperança; súplica para que possamos ser, como comunidade e individualmente, semeadores do Reino, para que, por nossas palavras e ações, as pessoas possam ter esperança na vinda do nosso Deus e ganhar forças para lutar e subsistir nos sofrimentos em que se encontram.