|

Prédica: João 6.66-69
Autor: Heinz Ehlert
Data Litúrgica: Culto de Confirmação
Data da Pregação: 23/11/1987
Proclamar Libertação – Volume: XII

l – O texto e seu contexto – considerações exegéticas

O trecho escolhido para a pregação no dia da confirmação é da parte final de um capítulo que contém o relato sobre um sinal (a multiplicação dos pães que tem paralela nos sinóticos) que por sua vez dá oportunidade para revelar Jesus como pão da vida (vv. 35 e 48).

O capítulo 6 marca o final da atividade de Jesus na Galiléia e faz parte de um bloco (o segundo) na estrutura do quarto evangelho, (cf. Brakemeier: Observações introdutórias referente ao evangelho de João, p. 2) que vai de cap. 2 ao cap. 12 e relata a atividade pública de Jesus.

Falando de discípulos além dos doze – que logo são especialmente destacados – fica caracterizado um terceiro grupo ao lado dos muitos (6.2) que assistem admirados o seu ensino e seus milagres, e dos judeus, com os quais Jesus se encontra em disputa nos caps. 5-11, sempre de novo, também neste contexto (vv. 41, 52).

Talvez a reação crítica dos judeus tenha influenciado os discípulos. O evangelista nos relata que eles acharam duro o discurso de Jesus (v. 60). Isto também foi, ao que tudo indica, o motivo final de eles tomarem a decisão de o abandonar e não mais andar com ele. Poderia ser muito comprometedor.

V. 66 – EK TOUTOU no original pode ser traduzido por: a partir disto (ou de então) ou por isto. De toda maneira parece que o afastamento é uma consequência do procedimento de Jesus. Muitos dentre os seguidores não quiseram ir mais longe, quem sabe com medo de se comprometer demais sob os olhos dos judeus influentes. Acham melhor distanciar-se. Seria mais seguro? E Jesus? Fica solitário? Sua obra sofreu um primeiro fracasso? Resta-lhe ainda o círculo dos doze. Ele não fica quieto – com medo de espantá-los também. Prefere desafiá-los também.

V. 67 – A pergunta é formulada assim que a resposta esperada é não. Isto é, que eles não vão querer ir embora também! Mesmo assim, esta possibilidade deve ficar aberta. Requer uma resposta sem evasivas. O escândalo que outros discípulos (talvez sob influência dos judeus) tomaram como motivo final para afastar-se, também seria motivo de tropeço para os doze que, desde o início, foram chamados? Em última análise esse motivo de tropeço era a cruz, o caminho da humilhação (Fp 2.5ss). Logo, os discípulos estariam também envolvidos nisso.

No seu procedimento até aqui Jesus se mostrou como exemplo da obediência, da renúncia, do sacrifício. Contra isso se rebela o homem em seu egoísmo. Ficar firme nas provações -quando fé traz desvantagens pessoais – só quando há entrega total a Deus, numa dedicação incondicional.

V. 68 – Neste caso conduz (a pergunta de Jesus) à confissão (cf. tb. Mt 16.13-16). A contra-pergunta consegue expressar muito bem o que na verdade está em jogo: Para quem iremos? Com outras palavras: há alguém melhor para ir? Que tenha coisa melhor para oferecer? Seria loucura afastar-se dele e tomar outro rumo! Assim fala Pedro em nome dos demais. Afinal é uma questão de vida e morte. As palavras de Jesus são palavras da vida eterna, por quê? Porque não só esclarecem sobre a vida eterna, nos dão apenas uma informação que tal existe, mas porque proporcionam a vida eterna (cf. Jo 10.27-30). Têm dentro de si a força para vencer o pecado, o sofrimento e a morte!

V. 69 – crido e conhecido, vêm juntos, expressam uma experiência. A fé não requer o sacrifício do intelecto, da razão. Por fé o conhecimento se aper¬feiçoa. A fé e o conhecimento são presentes de Deus.
Realmente por minha própria razão ou força não posso crer em Jesus Cristo (cf. expl. 39 Art. do Credo no Cat. Menor).

O título santo de Deus – Jesus não o usa para si – só aparece ainda em Mc 1.24 (Lc 4.34). Quer dizer que ele não provém do mundo, mas de Deus. Revela e representa Deus no mundo. Mas também é o santo de Deus, porque se oferece como sacrifício ao mundo. Não admira, pois, que posteriormente a comunidade cristã veio a formular que Jesus é o verdadeiro Deus (Deus de Deus -Credo Niceno).

Mas a confissão do discípulo pronunciada nestas circunstâncias não é só uma descoberta intelectual: encerra, nas circunstâncias, o claro compromisso de andar com ele, prosseguir no discipulado para o que der e vier.

II – Meditação

1. Afastamento: A própria formação desta palavra indica um processo. Não acontece de um momento para o outro nem de um dia para o outro. Vai se processando aos poucos. Nós temos essa experiência em nosso meio, nas comunidades.

Mesmo no seio de uma família, os motivos podem ser muitos. Um motivo, uma razão mais forte pode, então, conduzir ao rompimento definitivo. Sempre que acontece tal distanciamento, isto é doloroso. O próprio Jesus não foi poupado disso. Muitos que por um período razoável o acompanharam, indo de um lugar para outro, ouvindo com interesse os seus ensinamentos, presenciando com admiração seus milagres e acompanhando com entusiasmo sua maneira de responder aos adversários (líderes religiosos dentre os judeus), a partir de dado momento o abandonam. É muito compreensível que a gente pergunte: mas como é possível isso? Qualquer outro ser humano, imperfeito, falho, egoísta, prepotente, poderia desgastar-se e cansar os seus seguidores e admiradores: ídolos de futebol, do teatro, do cinema, da música, da TV, têm o seu tempo. Fascinam temporariamente os seus fãs. Mas isso passa. São esquecidos. Mas Jesus? Ele que pregou com autoridade e não como os escribas (Mt 7.29; Mc 1.22), como os próprios contemporâneos o reconheceram, que tais sinais fazia que ninguém se podia medir com ele (Jo 3.2): ele também teria decepcionado? Como se explicaria o fato de se ter processado o afastamento de seus discípulos? Aparentemente depende das expectativas que tiveram a respeito de Jesus e que não foi ou não foi totalmente satisfeita. É muito comum notar-se entre nós que um líder político, um ídolo de futebol ou das artes não corresponde mais à fama que tem, que antes grangeou por suas façanhas, por seu desempenho, por suas capacidades. Perdeu o brilho de herói. Então simplesmente é colocado de lado. Devemos reconhecer que, em todos estes casos, foi assumido por parte dos fãs, dos admiradores, dos seguidores o papel de expectadores, de consumidores ou beneficiários. Vem de uma mentalidade de consumo, isto é, tem valor o que alimenta, o que me diverte, me excita, preenche (mesmo que momentaneamente) os meus vazios, me favorece em minha vida particular, me tira das dificuldades, favorece-me a carreira. Se Jesus quisesse apenas aplausos, admiração, apoio para seus objetivos políticos, poder – ele poderia ter aceito a proposta de Satanás (cf. Mt 4.1-11).

Acontece, porém, que a missão dele era outra.

Que será que os discípulos de hoje, o povo cristão em nossas comunidades espera de Jesus? Como o vê? Que imagem formaram dele a partir do ensino que tiveram, a partir das pregações que os pastores fizeram, do exemplo que observaram em seus pais, nos demais membros de uma comunidade cristã? Será que foi possível transmitir-lhes exatamente o propósito da missão de Jesus? Uma ideia clara sobre o papel que quer para os seus discípulos?

É claro para nós qual é a missão de Cristo hoje e qual o papel que quer para os seus discípulos? E como se poderia descobrir isto? Sem dúvida só é possível através daquilo que o Senhor legou à comunidade dos discípulos e que oferece a ela todos os dias até a consumação dos séculos.

O testemunho do evangelista João é de que Jesus confrontou seus discípulos com mensagens que eles acharam duras (V. 60). E isto com referência à santa ceia (comer sua carne e beber o seu sangue) (V. 54). Há, pois, muito na mensagem de Cristo que não entra fácil. Além disso não importa em primeiro lugar o que podemos esperar dele dentro de nossa própria filosofia de vida (mesmo que fruto de uma educação com influência cristã), mas importa, sobretudo, o que ele espera de nós. Jesus, poderíamos dizer, não espera que sejamos admiradores, fãs, mas seguidores participantes, dispostos a assumir um papel na proclamação de seu reino, na concretização de seus objetivos para a humanidade. Ele veio para buscar e salvar o que se havia perdido (Mt 18.11; Lc 19.10), veio para servir e quer servidores desinteressados.

Antes, porém de exigir e esperar, Jesus ofereceu e continua oferecendo. Quem compreendeu isso foram, no trecho em estudo, os doze. Pelo menos na palavra rápida de Pedro.

2. Confissão: O relato de João dá a impressão que Jesus ficou entristecido com o afastamento. Não há pormenores, se nesta tristeza está incluído um sentimento de frustração por não poder segurá-los junto de si. Parece antes que é a tristeza pelo fato que eles não querem reconhecer o que é para a sua salvação (cf. Lc 19.41-42: Jesus chorando à vista de Jerusalém).

Dirige esta pergunta desafiante aos doze, os primeiros, os mais antigos discípulos, especialmente chamados, escolhidos (João 15.16). Embora não esperada, fica aberta a possibilidade de uma resposta que confirmaria o afastamento deles também. Ninguém está isento de dar ouvidos a vozes e promessas mais fortes e provocativas, quiçá atraentes pelo imediatismo, do que à voz do Bom Pastor (Jo 10.27-30). Ninguém, nem mesmo os mais próximos. No momento de crise a pergunta crítica: vós não quereis, acaso, ir-vos embora também?

A resposta em forma de contra-pergunta reflete a convicção que parece fruto de maior reflexão, de um processo mais longo também que, porém, não conduz ao afastamento, muito antes firma cada vez mais a impressão inicial. É a confissão de que a opção já foi feita, a decisão já foi tomada. Por enquanto não está abalada. E não será pelo fato de que muitos (talvez gente de influência, gente im-portante, gente intelectualmente destacada, gente respeitada por sua opinião) se afastaram.

Sabe apontar justamente para o cerne da mensagem de Jesus: Vida eterna. Vida é a busca incessante de todos, consciente ou inconscientemente.

As palavras de Jesus – sua mensagem central — proporcionam vida. Uma vida que merece este nome. Uma vida em paz com Deus e o próximo, uma vida que não passa logo, que não passa nunca. Vida não quer nunca passar, acabar.

É, pois, uma confissão que sabe o que diz. Não é da boca para fora. É uma confissão comprometida e disposta a novos compromissos disposta a novas provas (e provações).

No momento, porém, é a confissão de fé no mestre como santo de Deus. Ele que afirmou numa auto-avaliação que é o pão da vida (vv. 35 e 48) é proclamado por esta confissão como santo de Deus. A comunidade cristã interpretou este título não muito comum como filho de Deus ou representante de Deus. Seria o Deus conosco (Mt 1.23).

O crido e reconhecido põe fim a especulações descomprometidas, independentes da fé, a respeito de Deus ou do divino. Não pode haver para o cristão supremacia da razão sobre a fé, nem da fé sobre a razão. Por mais aperfeiçoado que possa ser o intelecto, por mais que possa avançar o conhecimento humano, adquirido por pesquisa cada vez mais sofisticada, o discípulo por sua experiência de Deus em fé tem como suprema sabedoria poder exclamar: Tu Senhor és o santo de Deus! O Deus que chegou até mim. Que me leva a sério, que me faz seu discípulo.

3. Perspectiva: Perspectiva tem a ver com o que está pela frente. Seria de perguntar o que resulta da constatação: A pessoa de Cristo requer decisão.Pode acontecer o afastamento, quando não se chega a aceitar o Deus conosco tal como se apresenta como salvador. Mas desde a confissão de Pedro continua a experiência da fé que conduz à confissão feliz e sem restrições: Tu és o santo de Deus! Isto dá nova perspectiva aos mortais: ele tem autoridade e poder para conferir aos seus a vida eterna. Justamente o que todo vivente almeja no fundo de seu ser. Isto num plano individual vem a dar sentido à minha vida e trabalho. Pois fica agora estreitamente vinculado ao santo de Deus, Cristo.

Num plano coletivo dá nova perspectiva para a humanidade e sua histó-«. ria. Não é um somatório de acidentes em que ora eu sou a vítima (na maioria dos casos), ora eu sou o agente. A história humana no aspecto da eternidade adquire um alvo. Nesta História eu sou também objeto e vítima, mas posso prosseguir, sabendo que a História tem um Senhor. Isto inclui o compromisso de me inserir dentro dela, dentro de uma comunidade do povo de Deus, para lutar a favor do Reino que ele promete. Por isso a oração: Venha o teu reino não leva a uma passividade, mas relembra a incessante tarefa de buscar o reino de Deus e sua justiça (Mt 6.23).

No dia-a-dia de uma vivência cristã isto não vai acontecer de maneira espetacular, mas numa vida muito comum de cristão e cidadão vigilante que procura traduzir para o seu ambiente a confissão de Pedro. O Santo de Deus inspira confiança. Vale a pena enfrentar a adversidade, expor-se à ridicularizações, proclamando o seu senhorio, pois ele tem palavras de vida eterna.

Ill – Escopo homilético

Graças a Deus fui confrontado com o Santo de Deus. Permite-me viver sob sua liderança e servir, buscando o Reino que ele prometeu.

IV – Indicações para a prédica

Tratando-se de um texto recomendado para um dia de confirmação é preciso levar, desde logo, em consideração as possibilidades e as limitações que o evento oferece. É preciso fazer jus ao momento histórico na vida dos jovens (como de seus pais) que a confirmação em nossa igreja ainda representa.

Se o ensino confirmatório foi uma oportunidade para despertar nos jovens o desejo de saber mais sobre o Deus gracioso que os chamou no batismo; se conseguiu transmitir-lhes o sentimento que é uma honra pertencer ao povo chamado segundo o nome de Cristo, podemos contar com uma relativa abertura ao dar ouvidos a esta mensagem e uma disposição de deixar envolver-se por uma meditação (não muito longa) sobre o drama que o texto descreve. A limitação é dada pela circunstância do solene e novo que a confirmação traz consigo (inclusive das roupas, alvo de atenções, cumprimentos e festa posterior). Poderíamos introduzir a pregação com a menção de fatos conhecidos sobre futebol, cinema, TV e seus protagonistas (os ídolos, heróis), como eles são embalados por uma onda de aplausos e como dependem disso. Em nosso tempo a glória deles é passageira. Poderíamos referir-nos ao craque Garrincha, seu esquecimento em vida e seu fim triste. Políticos poderosos que caíram. Sem, no entanto, condenar ou diabolizar o fenômeno. Apenas constatar o que sucede. Fazer então a ligação com Jesus que na plenitude do tempo, entrou na história da humanidade. Seguir a estruturação temática delineada na meditação acima:

1. Afastamento – Um fato intrigante quando estudamos o ministério de Cristo na terra. Também ele conheceu sucesso e insucesso?

Quais são as expectativas que jovens têm para o seu futuro – com que sonham e que sonhos tiveram ou tem os pais que os levaram ao batismo? Que esperam de Deus e Cristo neste contexto?

Em que se orientam, segundo nossa observação os esforços de nossos contemporâneos? Seriam semelhantes a dos discípulos que se afastaram?

2. Confissão – Que confessa a comunidade cristã? Que confessarão vocês de todo coração hoje? Feliz descoberta aquela de Pedro que fala pelos doze primeiros discípulos, chamados por Jesus: encontramos o santo de Deus. Qual a vida que aspiramos e podemos esperar em companhia deste Cristo?

3. Perspectiva – Não pudemos fazer nada para nascer; tornar-nos membros da família que somos, nem quando fomos batizados, tornando-nos membros da família de Deus. Mas isto teve e terá consequências.

A pergunta feita aos doze vale para vocês: Vocês, por acaso, não que¬rem afastar-se de Jesus, não é? Ficar com ele e o povo de Deus tem perspectiva: uma vida em comunhão e dignidade no futuro em qualquer profissão ou curso que estiverem. Muito mais: uma vida eterna no reino bendito de Deus!

V – Subsídios litúrgicos

1. Confissão de pecados: Senhor, tu olhas o coração. Assustamo-nos com os pensamentos que brotam dali. Tu sabes que estamos longe da pureza. Gostaríamos de ser purificados e ver a Deus. Perdoa-nos e santifica-nos por Jesus Cristo. Tem piedade de nós. Amém.

2. Oração de coleta: Querido Pai do céu: coloca-nos em verdadeira comunhão com o Senhor Jesus e o Espírito Santo. Faze-nos sentir que somos aqui uma comunidade de irmãos. Obrigado que nos chamaste. Permite-nos expressar com entusiasmo e sinceridade o que sentimos por ti. Instrui-nos com tua mensagem neste dia especial. Amém.

3. Assuntos para oração final: Agradecimento pela vida, pelos pais e padrinhos e todo o ensino proporcionado pela Igreja que Cristo fundou. Pelos jovens que hoje se inseriram conscientemente na confissão dos discípulos. Pedir por orientação para o povo de Deus. Pelo trabalho missionário e diaconal em todo mundo. Por um discipulado mais fiel e corajoso em nosso meio.

VI – Bibliografia

– BRAKEMEIER G Observações introdutórias ref. ao evangelho de João (polígrafo)
– BÜCHSEL, Fr. Das Evangelium nach Johannes. In: Das Neue Tesfament Deutsch. v. 4. 5. ed. Göttingen, 1949.
– BUELCK W Das Johannes evangelium und die Gegenwart. 2. ed. Hamburg – Altona 1948.
– SCHNEIDER, J. Das Evangelium nach Johannes. In: Theologischer Handkomrnentar zum Neuen Testament. 2. ed. Berlin, 1978.
– VOIGT, G. Meditação sobre Jo 6.64b-69. In-___. Der Weinstock. 2. ed. Berlin, 1974.