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Proclamar Libertação – Volume 12
Prédica: Gênesis 3.1-9
Autor: Martin Weingärtner
Data Litúrgica: 1º Domingo da Paixão
Data da Pregação: 08/03/1987

 

Introdução

– Papai, hoje discuti com a professora de religião! – disse minha filha de 11 anos, ao voltar da escola.

– Mas por que isto? – indaguei.

– Ela disse que o pecado de Adão e Eva foi o sexo, e eu disse que não!

– E o que disse que era? – continuei.

– Eu disse que seu pecado foi que desobedeceram a Deus!

Inicio a reflexão sobre este texto com este episódio para lembrar que toda pregação deve levar em conta que os ouvintes estão profundamente marcados pela equação: pecado de Adão e Eva = sexo. E este preconceito bloqueia o acesso à mensagem do texto!

Devo observar ainda outro preconceito muito mais sutil. A omissão da realidade do pecado. Não se omite o pecado dos outros (exploradores e opressores são denunciados com dureza), mas omite-se o pecado próprio. Aí há silêncio comprometedor, presente até na sutil delimitação de textos da ordem de perícopes. Por ex: tanto a perícope para o 19 Domingo de Advento de 85 (Rm 13.8-12) como a para o Natal 85 (Tt 3.4-7) foram delimitadas de tal maneira que o tema tão constrangedor ficasse de fora em dias tão festivos!

Outro dia um senhor veio ao meu gabinete e por quase meia hora me falou de sua mulher insuportável. Escutei com paciência. Depois lhe pedi: Amigo, fale agora mais 20 minutos sobre os seus próprios erros! O homem emudeceu. Cinco minutos de constrangedor silêncio, então pediu um copo de água. Fui buscar a água e ele a tomou. Depois, mais um período de silêncio. Por fim ele falou: Pastor, vamos falar de algo mais agradável! E ponto final.
pregação.

Também este preconceito (em sua variante teológica ou humana) barra a pregação.

 

1. Pistas de acesso

Estando o acesso direto à mensagem desta palavra tão bloqueado por preconceitos, devemos procurar, em primeiro lugar, por trilhos que nos facilitem o acesso. Lendo o capítulo todo, bem como comentários a seu respeito, observei que temos mais dificuldades com os primeiros 9 versículos do que com os 15 restantes. Nestes últimos encontramos muitas alusões a experiências cotidianas nossas. Por isto, comecemos aí, aproximando-nos ao nosso texto, por assim dizer, pela porta dos fundos!

Nos vv. 24 e 23 lemos: expulsou o homem e o lançou fora do jardim do Éden. Parece até manchete de jornal sobre mais um sem-terra. E não seria este casal o primeiro entre os sem-terra, mesmo estando só no mundo. Foram despejados e o caminho de volta está definitivamente interditado (v.24) – Perguntamos: Mas por quê? O texto responde com um lacónico: por isso.

Este argumento seco encontramos também no v. 19b: porque tu és pó e ao pó tornarás! Sim, a realidade da morte levanta a pergunta em nós. Lembro-me daquela senhora, cercada de todos os cuidados num hospital, dizendo: Pastor, já estou apodrecida por dentro!… Por quê?

Os vv. 17 a 19 apontam para outra realidade cheia de aflição: No suor do rosto comerás o teu pão. Não é esta a experiência de 90% da humanidade que, em fadigas mil, mal obtém o seu sustento? Do pai de família que levanta da mesa com fome e vai ao serviço, a fim de que os filhos tenham mais para comer? Do agricultor que trabalhou de sol a sol e vê sua safra frustrada? Da mulher, com 4 filhos, abandonada pelo marido?

Por falar em marido, o v.16 diz à mulher: ele reinará sobre ti. Que contraste com Gn 2.24! É indescritível: Antes do casamento se amavam como dois passarinhos. No início da primeira gravidez da esposa ele dizia: Se pudesse sentir por ti este mal-estar! Mas agora, qual déspota, domina a esposa que, em vez de auxiliadora (Gn 2.18), se transformou em escrava submissa. Seu desejo orientado para o marido não é satisfeito, mas tratado com esporas. E não há delegacia da mulher que resolva ou abrande este fato. Apenas pode constatá-lo.

Ainda não perguntas: por quê?

Numa madrugada de segunda-feira uma mulher já está lavando roupa, quando o filho chega em casa, voltando do prostíbulo onde passara a noite com amigos. Diz a mãe: Meu filho, quando você nasceu eu pensei que as dores de parto fossem a maior dor que passaria por você. Mas esta noite descobri que não o foi. Por que, meu filho, preciso passar tanta dor? (v.16).

E, por fim, a desilusão do dia depois expressa nos vv. 12 e 13 A serpente me enganou, e A mulher que me deste. Ela acusa outros. Aponta com o dedo, denunciando o outro como responsável último. E apontando para o outro não assume, tentando desfazer-se assim do medo de ser flagrado, tive medo e me escondi (v.10). Este medo é inegável. Está presente onde quer que seja e também nos leva a perguntar pela sua causa.

 

2. Análise

A porta dos fundos realmente está entreaberta. As dolorosas experiências relatadas na parte final do capítulo nos são por demais conhecidas e também nos aflige a pergunta pela sua causa e raiz. E justamente é esta pergunta que os primeiros versículos querem responder. Olhemo-los, agora, em detalhe.

2.1 – Tradução

V.1 Mas a serpente era mais sagaz do que os demais animais selvagens que Javé, Deus, fizera.

Disse ela à mulher:

É verdade? Deus disse [mesmo] que não devem comer de nenhuma árvore do jardim?

V.2 Afã mulher respondeu para a serpente:

Dos frutos das árvores do jardim podemos comer. V.3 Porém, dos frutos da árvore que está no meio do jardim Deus disse: Não comam deles, nem toquem neles, para que não morram.

V.4 Contudo a serpente confidenciou à mulher:

Morrer?… Não morrerão! V.5 Pois Deus sabe [muito bem] que na hora em que vocês comerem deles, seus olhos se abrirão e vocês serão como Deus, , conhecendo o bem e o mal!

V.6 Então viu a mulher que a árvore era boa para se comer dela e que era atraente aos olhos.

Cobiçando a árvore para ter conhecimento, tomou do seu fruto e comeu. Depois também deu para o marido ao seu lado e este comeu.

V.7 (Imediatamente) se abriram os olhos de ambos e conheceram que eles estavam nus.

Então amarraram folhas de figueiras, fazendo aventais para si.

V.8 Quando ouviram os passos de Javé, Deus, que caminhava no jardim na brisa da tarde, o homem e sua mulher esconderam-se da face de Javé, Deus, no meio das árvores do jardim.

V.9 Por fim Javé, Deus, chamou o homem e lhe perguntou: – Onde estás?

NOTAS: 1 – No hebraico o v.6 traz a mesma expressão CHaMaT como em Ex 20.17. Por isto traduzo cobiçando.

2 – Para entender a tradução de “KoL” (=voz) por passos v.8 cf. 2 Sm. 5.24.

2.2 – Enfoque detalhado

Observemos primeiro as nuanças do diálogo da serpente com a mulher. Há quatro tópicos paralelos nesta conversa. 1 – A proibição de comer (vv. 1 e 3); 2 – A morte (vv. 3 e 4); 3 – Os olhos (vv. 5 e 7) e 4 – O conhecimento (vv. 5, 6, 7). Tudo soa tão semelhante, mas é tão adverso. Na boca da serpente tudo é distorcido. Esta malícia já está presente na primeira palavra que sai da boca da serpente: “AF QUI” em hebraico. Expressão da qual Lutero disse que não sabia traduzi-la bem nem para o alemão nem para o latim, pois ela indica que alguém torce o nariz, goza e debocha de outrem1. Neste embrulho de descomunicação babilônica a serpente vende o seu peixe: vocês serão como Deus (v.5). Ela induz à rebelião contra Deus e, depois, se retira para assistir ao desenrolar dos fatos, à distância.

Se folhear algumas páginas adiante em sua Bíblia, você encontrará este mesmo personagem enigmático, habilidoso em distorcer as palavras, até mesmo as do próprio Deus: Mt 4.1-11. A Bíblia não desvenda este enigma, mas o constata: O diabo, o adversário de Deus está aí, queiramos ou não. E ele continua a oferecer: Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares (Mt 4.9).

A mulher nem se dá conta do que sucede: A primeira insinuação da serpente, ela responde com uma resposta ortodoxa. Ela corrige a serpente, repetindo o que Deus de fato dissera. Comparando os vv. 2-3 com Gn 2.16-17, notamos o pequeno mas significativo acréscimo nem toquem neles. Nele transparece o desesperado (krampfhaft) apego à lei que ensina retamente, mas não auxilia; instrui acerca do que é preciso fazer, mas não fornece a força necessária para realizá-lo, como diz Lutero2 (cf. Rm 7.15-24).

Por isto o segundo intento da serpente é bem sucedido. A mulher aceita cogitar a proposta. Isto lhe basta, pois o restante será mera decorrência. Os olhos veem, o coração cobiça e a mão toma. Depois, procura e encontra um sócio pronto para envolver-se na conspiração. Porém, o fato de terem sido induzidos à rebelião contra Deus, não os isenta da sua responsabilidade. Isto eles pressentem quando fazem aventais para si e se escondem no jardim, e fica bem claro na pergunta de Deus ao homem: Onde estás?

Deus pergunta. Mas o homem não responde, não assume a responsabilidade. Não diz: Estou aqui. Sou culpado. E nesta fuga do homem da pergunta do Deus misericordioso reside a raiz de toda a miséria que aflige a humanidade que, como vimos, está descrita na segunda parte do nosso capítulo. Jesus o confirma em sua parábola dos dois filhos rebeldes em Lc 15.11ss: Tanto nas orgias despreocupadas (v.13), na miserável fome (v.16), como no arrogante orgulho (vv. 29-30) está presente este teimoso esquivar-se da pergunta: ‘Onde estás?’.

E, por que Deus insiste em perguntar?

Ele o faz, ele sai ao encontro do homem rebelde, não para destruí-lo, mas sim para ajudar-lhe (Lc 15.20b, 28b). Deus insiste movido unicamente pelo seu infinito amor, revelado plenamente a nós no Calvário.

Até quando, ó homem, te esquivarás?

2.3 – Dicas

Ninguém se atreva a pregar sobre esta palavra, sem antes aquietar-se na presença deste Deus que nos pergunta pessoalmente e responder-lhe com vorda-de como o filho mais moço o tem feito na parábola de Jesus (Lc 15.17-21).

Como leitura bíblica recomendo o Salmo 32.

Para a oração final sugiro a oração de Lutero que você encontra na primeira página do apêndice de HINOS DO POVO DE DEUS (2° texto).

 

3. Subsídios litúrgicos

1. Confissão de pecados: Senhor, nós sempre de novo procuramos responsabilizar os outros por nossa culpa. Erramos e nos desviamos dos teus caminhos e culpamos pessoas e estruturas porque o fizemos. Neste momento, motivados por teu amor, queremos confessar a nossa própria culpa: a culpa que nos faz inimigos uns dos outros, que nos separa, que nos torna egoístas. Senhor, perdoa o nosso pecado e tem piedade de nós.

2. Oração de coleta: Nós te agradecemos, nosso Deus, pela oportunidade de nós nos reunirmos em torno de tua palavra e em comunhão com os irmãos. Ajuda-nos, Senhor, para que enxerguemos o outro com amor e para que não queiramos ser melhores do que ele. Abre os nossos corações à tua palavra. Por Jesus Cristo, Senhor nosso. Amém.

3. Assuntos para intercessão: Interceder pelos povos do mundo, especialmente para os que têm poder político e financeiro para que reconheçam sua responsabilidade pela situação do mundo; interceder pelas igrejas para que também elas, em humildade diante de Deus e dos homens, reconheçam a sua responsabilidade pelas divisões entre igrejas e pessoas; interceder por comunidades e grupos para que tenham olhos abertos para enxergar a sua responsabilidade e culpa pela omissão; interceder por cada pessoa, por cada um, a fim de que também assumamos a nossa responsabilidade e culpa pelas divisões, separações, ódios e desprezos entre as pessoas, entre membros da mesma família, da comunidade, da vizinhança.

 

Notas:

1. cf. citação em v. Rad, p. 69.
2. Lutero, Da Liberdade Cristã, p. 15.

 

4. Bibliografia

BUCHWEITZ, W. Meditação sobre Gn 3.1-24. In: Kirst, N., coord. Proclamar Libertação, v.6, São Leopoldo, 1980;
KIDNER, D. Gênesis. São Paulo, 1980;
LUTERO, M. Da Liberdade Cristã. 4ª ed. São Leopoldo, 1983;
RAD, G. v. Das erste Buch Mose. In: WEISER, A., ed. Das Alte Testament Deutsch, 8ª ed. Göttingen, 1967.

 

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Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).

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