Prédica: Colossenses 2.3-10
Autor: Rodolfo Gaede Neto
Data Litúrgica: Dia de Natal
Data da Pregação: 25/12/1988
Proclamar Libertação – Volume: XIV
I – Introdução
Vila Macuco (nome fictício que será usado para descrever uma situação real) é um povoado no ES com cerca de 3 mil habitantes. Aí já rolou muito dinheiro na época áurea do café. O comércio se desenvolveu rapidamente. Hoje, a economia é a de sobrevivência; há alguns comerciantes que se mantêm numa situação razoável, porém, o resto é gente que faz biscates, bóias-frias, empregados, desempregados, velhos aposentados, etc. Essa vila conta com 9 Igrejas e seitas, que fazem concorrência entre si. Os moradores convivem diariamente com convites, visitas, evangelizações, alto-falantes, discussões, investidas de todos os lados em torno do que vem a ser a verdadeira religião, a verdadeira Igreja e a verdadeira fé. Não é de estranhar que os membros de nossa comunidade local fiquem confusos; constantemente aparecem com dúvidas e perguntas. Um certo número se deixa convencer (converter) e passa a seguir outra religião. Outros assistem a um culto aqui, a uma evangelização lá e concluem que todos têm algo de bom, afinal, todos falam de Deus. Ainda outros trocam, de vez em quando, de Igreja, de acordo com o que se oferece em cada uma delas. Os diálogos e prédicas do pastor luterano constantemente tem este assunto como tema. Ele precisa responder a perguntas e esclarecer dúvidas a respeito da fé cristã, do Evangelho, da Igreja. É uma tarefa muito difícil porque, querendo ou não, os outros pregadores não deixam de despertar curiosidade e interesse; eles falam de temas que cativam, mexem com os sentimentos. Eles ensinam com segurança questões, nas quais os ouvintes estão inseguros, sobre o futuro, sobre os mistérios do além, sobre a morte, inferno e juízo final, etc. Sobre assuntos que inspiram medo, eles apresentam respostas firmes! Não faz muito tempo que um membro de nossa comunidade local, pessoa influente e respeitada na localidade, influenciado por uma seita, iniciou um trabalho evangelístico paralelo à atividade do pastor; sua doutrina encontrava aceitação; além disso, negar seus convites ou questioná-lo criava um certo embaraço, dada a sua posição social.
Estava deflagrada uma situação de confusão. Como podemos dar uma mão ao nosso colega de Vila Macuco? Qual deveria ser sua argumentação para transmitir clareza? Ele poderia fazê-lo numa prédica de Natal sobre o nosso texto?
Colossos era uma cidade bem pequena, situada no Vale Licos, a uns 200 km de Éfeso, na margem da estrada que liga esta cidade ao Oriente. Era bem menos importante que as cidades vizinhas como Laodicéia e Hierápolis. Esta cidadezinha havia sido um centro importante de artesanato de lã. Mas, na época de Paulo, já era uma cidade decadente ao lado da próspera Laodicéia. Tanto em Colossos quanto nas cidades vizinhas havia uma importante colónia de judeus. Os moradores de Colossos estavam rodeados de inúmeras propostas de religião. O nome usado era filosofias. A jovem comunidade cristã de Colossos (provavelmente fundada por Epafras) também era alvo de constantes visitas, convites, discursos, investidas de filósofos, cuja missão era conquistar adeptos.
A filosofia pregada em Colossos tinha as seguintes características:
— referia-se a potências, seres celestes do mundo das alturas (às vezes associados aos astros);
— estas potências exerciam seu papel no nosso mundo, como o de dirigir todo o cosmo, a criação material;
— as potências estavam ligadas a sistemas de ritos, liturgias, preceitos ou observâncias religiosas; haviam criado, mantinham e orientavam os sistemas religiosos, graças aos quais se estabeleciam contatos entre eles e os homens; desse modo, as potências não dirigiam somente o mundo material, mas também o mundo religioso;
— no contato dessa filosofia com o judaísmo menos ortodoxo conciliou-se a ideia das potências com a dos anjos; onde os pagãos descobriam potências, esses judeus reconheciam a presença de anjos;
— um elemento muito importante nessa filosofia era o conhecimento; existia um fascínio pelos conhecimentos misteriosos de realidades escondidas;
— a filosofia dava a conhecer revelações sobre as potências (nomes de certas potências, suas qualidades, canais de comunicação com elas, etc.);
— esses conhecimentos não tinham utilidade prática; tinham o seu fim em si mesmos; constituíam um acesso a um mundo superior; respondiam a certas curiosidades sobre morte, futuro, etc.
Em meio à diversidade de ofertas, os habitantes do mundo grego já não tinham compromissos com religião nenhuma. Cada um podia escolher à vontade entre tantas religiões procedentes de todas as regiões do Império Romano. Muitos não escolhem uma religião, mas várias. Experimentam um pouco de tudo. Ligam-se àquela religião que em cada momento da vida lhes oferece mais consolo, mais satisfação espiritual.
A jovem comunidade cristã de Colossos foi assaltada por um filósofo que ensinava as coisas do alto. Certas reações no texto da epístola dão a entender que o intruso era uma pessoa que usufruía de respeito, admiração e reconhecimento na comunidade. Podemos imaginar um intelectual da elite dos dirigentes do Império Romano, formado na cultura grega, que veio a penetrar no meio da comunidade. Esta era formada por maioria de pessoas pobres e humildes. Também Epafras, o fundador da comunidade, era um homem simples. Diante do intruso todos se sentiam desarmados.
Busca-se alguém com autoridade para restabelecer a clareza na caminhada da comunidade. Paulo (ou alguém muito próximo a ele) assume esta tarefa, enviando uma carta aos colossenses. Nosso texto é uma parte central desta missão.
Tanto Vila Macuco (decadente do café) quanto Vila Colossos (decadente da lã) era um chão fértil para ensinamentos que valorizam o mistério. De concreto e real bastava a miséria do dia-a-dia. A religião que eleva o espírito às alturas, que apresenta doutrinas sobre o invisível, que se mostra capaz de revelar os segredos do além, que consegue transferir todos os problemas e soluções para a esfera espiritual, sem dúvida, é fantástica e cativante. Os colossenses ficavam fascinados em poder tomar parte no conhecimento de situações misteriosas do mundo celestial. Não menos entusiasmo demonstram os moradores de Vila Macuco quando se tornam instruídos sobre dados a respeito do inferno, do céu, do juízo, etc. Apesar da vida insegura que levam, sentem-se fortes porque dominam um campo misterioso/espiritual.
II – O texto
V. 3: O autor se refere à questão da sabedoria e do conhecimento. O intruso de Colossos estava criando a fascinação dos membros pela aquisição de conhecimentos sobre as potências do mundo celeste e prometendo revelações a respeito de seus mistérios. Com a missão de restabelecer a clareza para a comunidade, o apóstolo fala de Cristo como sendo aquele que abrange toda a sabedoria e todo o conhecimento. Em outras palavras, nada existe, até os últimos confins do cosmo, que não esteja sob Cristo. Em consequência, nenhum suposto mistério, nenhuma suposta potência cósmica nos pode assustar ou amedrontar. Em Cristo, todos os mistérios são desmascarados. Se temos Cristo, temos com ele toda a sabedoria e conhecimento que procuramos. Fora dessa fé, qualquer procura é especulação e leva à ilusão. Assim sendo, as propostas do filósofo intruso não constituem nenhum tesouro para a comunidade cristã; são vazias e inúteis.
V. 4: O autor não menciona nominalmente o adversário (seria precaução por se tratar de pessoa influente na comunidade?). Mas adverte contra alguém que possa enganar a comunidade. O termo usado é enganar mesmo. Pregar doutrinas inúteis, que especulam o vazio, é enganar o povo. Talvez seja este um atentado mais grave contra o povo do quê muitos outros crimes conhecidos. Enganar, iludir, desviar a atenção de pessoas dos problemas reais para especulações inúteis, este é o problema em Colossos, onde a maioria da comunidade tem dificuldades com o pão de cada dia.
V. 5: Para dirigir-se a uma comunidade que não o conhece pessoalmente e para tratar de um assunto tão sério, o autor não o faz de qualquer jeito. Sua metodologia de trabalho inclui o respeito pelas pessoas em sua situação específica. Por isso não chega atropelando todo mundo, como quem usa a fraqueza dos outros para a auto-confiança. Antes procura motivar a comunidade à autoconfiança, ressaltando com elogios suas qualidades. Um parabéns pelas pequenas vitórias, pelos momentos de firmeza, certamente tem seus efeitos animadores numa caminhada difícil. É diferente do que só cair em cima da comunidade para criticar seus fracassos e criar um clima de total pessimismo.
V. 6: Importa agora, apesar de tentações e ameaças, andar em Cristo, cujo caminho não é misterioso; antes, é muito claro e concreto, como o aprendemos da sua própria caminhada aqui na terra, incluindo manjedoura; cruz e ressurreição.
V. 7: Neste Cristo a comunidade tem suas raízes; ele é o chão no qual vale a pena lançar raízes; é profundo e concreto, por isso dá segurança; garante suporte e sustento à comunidade em sua caminhada. A comunidade não se nutre através de ligações com as alturas vazias, mas através das raízes lançadas no chão do Evangelho de Cristo, assim como o edifício não é pendurado nas nuvens, mas sustentado pelo fundamento.
V. 8: Quem afirma coisa diferente, quer enredar. Este termo usado por Almeida tem na sua raiz rede; significa colher ou prender na rede (Aurélio). Esta era exatamente a intenção do intruso na comunidade de Colossos. Costumamos usar entre nós a expressão pescar membros. Em Colossos, os que pescavam em tanque alheio intencionavam desenraizar os membros, arrancá-los do chão evangélico e pendurá-los no ar das filosofias (religiões) vazias.
V. 9: O alerta do autor dizendo cuidado com as religiões vazias se fundamenta no fato de que quem recebeu o Evangelho de Cristo, sabe que ele é concreto; não se trata de potências imaginárias, mas da totalidade da divindade tornada corporal. Em Cristo, Deus se torna corpo (ou carne, cf. Jo 1.14, ou servo, figura humana cf. Fp 2.7). A caminhada da manjedoura à cruz o atesta. A Ceia do Senhor é toda esta materialidade da divindade; a partir dela nasce comunhão que cria o corpo da comunidade.
V. 10: O corpo da comunidade tem em Cristo o cabeça (2.19). No entanto, o seu domínio ultrapassa os limites da comunidade. Ele está acima de qualquer poder que se possa imaginar no céu e na terra. Na cruz despojou potestades e principados (2.15). A cruz é um aconteci¬mento que envolve todo o cosmo (cf. Lc 23.44-45). Por isso, todo o cosmo está sujeito a Cristo (cf. Fp 2.9-11), devendo dobrar os joelhos diante dele e reconhecê-lo como Senhor.
III – Meditação
O problema em Vila Macuco e no Brasil é a fome, não a religião. É o desemprego, a doença, o salário, o custo de vida, a terra. Desviar a atenção do povo desses problemas reais do dia-a-dia para a confusão religiosa alienante é a intenção dos intrusos no Brasil. Substituir o problema do pão de cada dia pelo problema da satisfação espiritual é uma engenharia infernal promovida pelos demônios do norte. A proliferação de seitas nos países do 3; Mundo atestam o investimento das potências (não celestes, mas com endereços bem definidos aqui na terra) na missão de enganar o povo com raciocínios falazes, filosofias e vãs sutilezas. O objetivo é desenraizar as pessoas do chão da consciência evangélica e pendurá-las no ar das ilusões.
Para transmitir clareza para dentro de uma situação tão complexa é necessário falar de Cristo. Não do Cristo espiritualizado colocado na boca dos pregadores das seitas (teologia da glória), mas do Cristo encarnado (a divindade que se tornou corpo), que habitou entre nós, mergulhou na miséria da manjedoura, experimentou já como recém-nascido a perseguição dos principados e potestades; colocou como primeiro valor a vida das pessoas, enfrentando todos que praticassem a inversão de valores (a exemplo dos fariseus que colocavam os preceitos religiosos acima das necessidades básicas da vida). Sem mencionar todos os fatos que testemunham o Cristo como aquele que caminha na margem com os marginalizados, lembramos a cruz como prova definitiva da descida de Deus para a extrema profundidade do sofrimento. O Cristo da manjedoura e da cruz confunde os poderosos. Mais do que isto: desmascara os que usam a religião para iludir o povo e mante-lo numa situação de exploração. A pregação natalina sobre o Cristo encarnado desmascara os que fazem da religião ópio para o povo. A proclamação do Cristo encarnado traz clareza, porque fala do Cristo que despoja principados e potestades e dispersa os que no coração alimentam pensamentos soberbos, derruba dos seus tronos os poderosos e exalta os humildes; enche de bens os famintos e despede vazios os ricos. . . (Lc 1.51-53).
IV – Pontos para a prédica
a) Descrever de forma sucinta e objetiva a realidade em que se encontrava a comunidade de Colossos: pregador intruso, representante das religiões que confundem, iludem e desviam as atenções dos membros de seus compromissos concretos para questões religiosas abstratas, vazias e inúteis.
b) Descrever a realidade de hoje, na comunidade e no país, no que se refere ao uso da religião para manter o povo numa situação de ilusão e miséria decorrente da exploração. A intenção aqui não é atropelar pessoas e congregações que têm outra confissão religiosa, mas de mostrar a realidade e apontar os que se escondem atrás desta realidade.
c) Anunciar a clareza evangélica para dentro da realidade confusa: no Natal a boa nova é a encarnação de Deus em Cristo (a divindade se torna corporal). Deus não fica nas alturas inalcançáveis, mas desce à realidade humana (da manjedoura à cruz). Este Cristo é o Senhor sobre o universo e despoja os falsos poderes. Neste Cristo a comunidade lança suas raízes; terá suporte e sustento para a caminhada.
V — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: O Deus misericordioso, através da história tens revelado sempre de novo o teu amor para com o teu povo; no Natal, porém, o fazes de forma absolutamente clara e definitiva, através do nascimento de teu Filho em forma de homem. Mesmo assim, precisamos reconhecer que tantas vezes somos cegos, mudos e surdos diante deste amor. Deixamo-nos confundir e iludir por outras propostas, que são vazias e inúteis. Hoje queremos implorar com humildade que teu amor se transforme em perdão para com a tua comunidade. Por isso pedimos: Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Deus, nosso Senhor, pedimos-te firmeza na fé. Para a nossa missão aqui na terra precisamos de raízes firmes e profundas, que nos segurem no chão de teu Evangelho. Por isso, concede que a mensagem da encarnação de teu filho nos cative, fortaleça e anime!
3. Assuntos para a oração de intercessão: Louvor pela descida de Deus das alturas abstratas para a mais profunda realidade de sofrimento humano. Agradecimento pela clareza que esta mensagem traz para dentro do nosso mundo confuso e desumano. Intercessão em favor da comunidade e da Igreja, para que esta clareza evangélica seja o chão que nutra, sustente e carregue o povo de Deus na caminhada pela transformação do mundo. Intercessão por todos os que estão sendo enganados e iludidos; pelos que são vítimas de uma religião programada pelos explorados. Apelo para que os que usam e abusam da religiosidade do povo sejam desmascarados.
VI – Bibliografia
– COMBLIN, J. Epístola aos Colossenses e Epístola a Filemon. Petrópolis 1986.
– SCHMIDT, E. Meditação sobre Cl 3.1-4. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo. 1978. V. 3.
– WEB ER, O. Meditação sobre Cl 2.2-10. In: Göttinger Predigtmeditationen, Göttingen,