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Prédica: Habacuque 1.2-3 (4); 2.1-4
Leituras2 Timóteo 1.3-8 (9-12) 13-14 e Lucas 17.1-10
Autor: Nelson Kilpp
Data Litúrgica: 20º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 25/10/1992
Proclamar Libertação – Volume: XVII

1. O tema do domingo

O Vigésimo Domingo após Pentecostes tematiza a fé e a persistência na fé em tempos de adversidade. O texto da epístola provém da Segunda Carta a Timóteo, 1.3-8(9-12)13-14, que Paulo escreveu quando estava encarcerado, abandonado e prestes a sofrer o martírio (4.6). O apóstolo recomenda a seu amado filho que permaneça firme na fé autêntica, que é também a fé da avó e da mãe de Timóteo. Esta fé impele ao testemunho e não tem medo nem vergonha diante de adversários e inimigos. Este testemunho pode levar ao sofrimento. O cristão, no entanto, não foge do sofrimento, pois tem a firme convicção de que está guardado por aquele que é mais poderoso do que a morte. Paulo fala com sobriedade das dificuldades e adversidades que os discípulos enfrentam em sua vida e que podem ameaçar a sua fé.

O Evangelho (Lucas 17.1-10 ou 17.5-10) também conhece crises e até fracassos da comunidade cristã. Há os que escandalizam os pequeninos e os que não querem perdoar (1-4). Há falta de fé e de disposição para o serviço gratuito entre os discípulos de Jesus. Também esta perícope está centrada na fé. As muitas dificuldades fazem arrefecer a fé da comunidade. E esta pequenez de fé leva ao desamor (vv. Is.), à im-piedade (vv. 3s.), à busca de lucro e privilégio (vv. 7ss.). A lei de Gérson — querer tirar vantagem de tudo — é o que está em vigor; disposição ao serviço abnegado e gratuito é o que Cristo espera de sua comunidade.

O texto do Evangelho acentua as dificuldades que a comunidade dos discípulos enfrenta. O Salmo do dia, 95, por outro lado, acentua a confiança no Deus que sustenta o povo. Javé é nosso Rochedo, Rei, Criador e Pastor. Como poderíamos deixar-nos dominar por eventuais adversidades? Assim, o Salmo e o Evangelho do dia se complementam, formando um sadio equilíbrio.

Também a fé do profeta Habacuque parece estar ameaçada por causa do silêncio de Deus diante da violência, injustiça e opressão reinantes (He 1.2-4; 2.1-4). É este texto do Antigo Testamento que expressa de forma mais contundente o problema: aquilo que se vê contradiz frontalmente o projeto de Deus, de modo a ridicularizar o povo de Deus. A realidade não prova que nossa fé é ilusão?

2. O texto

Nenhum texto de Habacuque foi tratado até agora em Proclamar Libertação. Na série de perícopes das Igrejas Luteranas da Alemanha um texto de Habacuque (3.1-6,18-19) está previsto para ser pregado por ocasião de catástrofes. Não tenho conhecimento sobre se alguém pregou sobre este texto por ocasião da catástrofe de Tchernobyl. Normalmente, não se pregará sobre este texto nestas Igrejas Luteranas. A série católico-ecumênica recupera, portanto, um dos profetas esquecidos em nossas comunidades.

A delimitação acima adotada é própria de Proclamar Libertação. Tanto a versão católica (He 1.2-3; 2.1-4) quanto a versão das Igrejas Luteranas da América do Norte (1.1-3; 2.1-4) excluem He 1.4 que, a meu ver, é a conclusão natural da primeira unidade de He l. Há, na pesquisa, dúvidas sobre onde termina a primeira unidade de He 2. Seria no v. 4 ou v. 5? A forma bastante corrompida e, portanto, pouco compreensível da primeira parte do v. 5 impossibilita, na prática, uma decisão a respeito. A segunda parte do v. 5, no entanto, parece indicar já a temática seguinte (os cinco ais), de modo que preferimos que o texto litúrgico finalize com He 2.4, que além do mais, oferece um bom clímax: O justo viverá por sua fidelidade.

Poderia causar estranheza o fato de terem sido escolhidos versículos não corridos, mas separados por um capítulo inteiro. Isto, no entanto, tem a ver com o gênero literário da primeira parte do livro, ou seja, de He 1.2-2.4. Trata-se aí de uma liturgia profética, na qual por duas vezes um lamento é respondido por uma palavra divina. Temos, então, a seguinte estrutura:

Primeira parte: 1.2-11

a) lamento: 1.2-4

b) resposta de Deus: 1.5-11

Segunda parte: 1.12-2.4

a) lamento: 1.12-17

b) resposta de Deus: 2.1-4.

O texto litúrgico toma, pois, o lamento da primeira e a resposta divina da segunda parte. Isso ocorre por motivos teológicos: a resposta de Deus em 1.5-11 revela-se como não satisfatória para o profeta, pois promete substituir uma opressão autóctone por outra estrangeira. Somente a segunda resposta — a mais genérica — é que é a teologicamente definitiva.

3. Em busca da mensagem e de sua atualidade

3.1. O lamento

As perguntas do profeta, em 1.2-4 (Até quando?, Por quê?), são características da lamentação. Elas expressam inconformidade com a situação existente de desrespeito à lei, à vida e às normas ainda em vigor de decência e justiça. Desta forma, as perguntas são também um questionamento de Deus: do Deus que não reage, nada faz (não ouve, não salva); do Deus que se omite, deixando acontecer a iniquidade e a opressão; quem sabe, do Deus impotente para mudar as coisas e, portanto, do Deus que não existe. O profeta — e com ele grande parte do povo ou da comunidade — experimenta o abandono de Deus.

Não é somente o indivíduo Habacuque que experimenta em sua vida pessoal a ausência de Deus. Ele vê o que ocorre à sua volta com as pessoas com quem convive. Na sociedade em que vive ele testemunha violência. O termo exprime a violência ilegal que fere o corpo e destrói a vida e que não raramente é acompanhada de derramamento de sangue. Esta violência, sofrida por uma parte de seu povo, o profeta traz diante de Javé. Habacuque é provavelmente um profeta do culto; ele representa a comunidade e expressa a angústia da mesma diante de Deus, no culto. Além de violência, o profeta é obrigado a ver iniquidade e opressão (v. 3). São dois termos genéricos. Iniquidade é uma ação má que traz desgraça para alguém. A opressão é entendida aqui como tudo aquilo que causa desgaste físico insuportável e, portanto, também dor. É sinônimo de judiação. O que Almeida traduz por destruição poderia ser entendido como um outro tipo de violência, aquela praticada em relação à propriedade, ou seja, algo como rapina (Bíblia de Jerusalém) ou usurpação violenta. A última parte do v. 3 espelha o ambiente jurídico. As contendas ou disputas não raramente se desenvolvem em processos judiciais nos quais o mais forte tem mais direitos que o mais fraco e, portanto, melhores chances de ganhar a causa. É o que pressupõe o v. 4: a total corrupção do sistema jurídico. O que é direito e certo, a sentença justa, não mais se vê. Ou melhor, direito e legalidade aparecem distorcidos, como fachada. Na verdade, porém, o ímpio cerca o justo: o poder decide, na prática, sobre o que é lei ou direito. Há, dentro do seio do povo de Deus, uma grande ruptura.

Os problemas mencionados no texto podem facilmente ser relacionados com a realidade do pregador e de sua comunidade (civil e religiosa). O gênero do texto nos leva a refletir sobre uma dimensão menos conhecida em textos proféticos: a relação entre injustiçados, violentados e comunidade cúltica. Qual é a reação de pessoas da comunidade que foram maltratadas, violentadas, impedidas de terem seus direitos reconhecidos, tratadas ou julgadas injustamente, esmagadas? Elas ainda vêm para a comunidade? Ou elas já não vêm mais, porque sabem que também na comunidade religiosa não serão ouvidas? Elas desaparecem, porque com a perda da confiança nas instituições humanas também perderam a confiança em Deus — pelo menos no Deus adorado pela comunidade? Na maioria das vezes, a comunidade provavelmente nem chega a conhecer estas pessoas. Não por maldade ou falta de disposição, mas simplesmente pelo fato de as pessoas que experimentaram violência, injustiça e maus tratos normalmente não mais se dirigem à comunidade cristã. Antes ocorre o contrário: afastam-se ainda mais da comunidade. Os conflitos não entram no culto. Por quê? Será que há uma contradição entre pessoas arrasadas e comunidade cúltica? Será que nossas comunidades não são por demais uma comunhão de bem-sucedidos? Alguém mal-sucedido pode sentir-se bem na comunidade cúltica? Os esmagados não são antes um escândalo (que mostra nosso próprio fracasso), muito difícil de digerir?

Seja como for, a reflexão quer apontar para uma lacuna na vida da maioria das comunidades: não existe, no encontro da comunidade,.um espaço apropriado para o lamento do povo. Confissão de pecados e oração de intercessão não conseguem preencher esta lacuna. As mais diversas experiências, também a violência e a perseguição, eram, em Israel, trazidas ao culto e expressas pelos próprios atingidos ou, então, por um representante — aqui pelo profeta cúltico, Habacuque. Esta função profética tem sido relegada a um segundo e terceiro plano diante da tarefa maior da denúncia. Mas ela não deixa de ser uma função importante também da comunidade profética atual.

Na verdade, é bastante difícil trazer para dentro do culto os testemunhos de mulheres e homens violentados, pessoas agredidas, assaltadas, espancadas, esfalfadas, porque no fundo não parece lógico. Justamente aquelas experiências que parecem indicar que Deus não existe, ou que, se existe, não quer saber de nós ou, então — o que não é melhor — que se trata de um Deus injusto e cruel tal qual o mundo — justamente estas experiências seriam trazidas diante de Deus? Um absurdo!? Para este absurdo a comunidade deveria convidar com insistência. Quem sabe se poderia reeditar o lamento do povo no culto comunitário?

3.2. A resposta de Deus

A primeira resposta ao lamento popular (1.5-11) é basicamente a seguinte: o exército babilónico virá e destruirá os que (dentre o povo de Israel) esmagam, oprimem, roubam, assassinam, violentam. Isto será a salvação para os esmagados, oprimidos, roubados, violentados. No entanto, o profeta descreve de tal maneira estes invasores que não resta dúvida de que a situação sob estes salvadores não será melhor. Um tirano substitui outro tirano, e nada muda. O governo estrangeiro po¬de até ser pior, pois é ateu; sua força é seu deus (v. 11). O profeta sabe que a verdadeira salvação não vem do poder imperial. Por isto, o pretenso oráculo de salvação desemboca em novo lamento (1.12-17).

Nada mudou. Ou será que a esperança se tornou mais realista? Será que se sabe agora que a libertação, a nova ordem das coisas, a justiça não vem de um poder político de fora? Nem vem de um decreto de cima? Os que esperam fatalística ou despreocupadamente por esta salvação parece que não esperam do jeito certo. Espera não é esperança. As nossas comunidades têm muito desta espera, talvez por terem interpretado mal a doutrina da justificação pela fé. Muitos entenderam que depois desta justificação, recebida gratuitamente, nada mais restava fazer senão esperar pelo que o futuro trará. Este descompromisso parece que tem algo a ver com a incapacidade de enxergar Deus nas linhas tortas da história humana. Quem não vê necessidade dificilmente vê Deus. Para quem só olha para o futuro, o Deus do presente pode passar desapercebido.

Não quero aprofundar esta ideia. Para a liturgia profética o que interessa é a pergunta pela justiça de Deus no transcurso da história — a velha questão da teodicéia que já ocupou tanta gente. O que o texto de Habacuque contribui para acharmos uma pista dentro desta contradição entre a lei do mundo e a justiça de Deus? Creio que há uma pequena pista em Hc 2.1-4.

Hc 2.1-4 é composto de duas partes. A primeira consiste numa fala do profeta dizendo o que vai fazer (v. 1). A segunda parte é uma palavra de Deus com uma ordem ao profeta e um anúncio (w. 2ss.). O v. l mostra a disposição do profeta de esperar pela resposta de Deus à sua queixa (e à do povo). Para tanto pretende colocar-se num posto de vigia ou observação. Os termos usados parecem ser emprestados da cultura assíria, onde indicam o lugar de onde os astrólogos observam os astros e os observadores de aves tentam ver nos voos dos pássaros prenúncios do futuro. É claro que Habacuque não fazia nem uma nem outra coisa. Mas, talvez pudesse ter havido no templo um lugar especial onde o profeta do culto pudesse esperar pela revelação divina. Seja como for, Javé responde ao profeta. Sobre o como desta revelação não somos informados.

A ordem é de escrever a visão sobre tábuas. A comunicação ao público não será por via oral, como o profeta costumeiramente se comunica, mas de forma escrita. Talvez houvesse, no recinto do templo, um tipo de mural, onde os transeuntes pudessem ler comunicados relacionados com o culto. Ou, então, o profeta teve que escolher um lugar destacado para colocar aí suas tabuletas. Por que a preocupação com a transcrição da revelação? Será que o povo já estava cansado de ouvir, de mo do que se fazia necessária uma comunicação mais eficaz? Provavelmente o motivo principal tenha sido outro: a palavra escrita está mais sujeita à crítica, à verificação e ao controle (cf. Is 8.1). Ao colocar sua visão por escrito, o profeta corre, portanto, o risco de expor-se ao ridículo, o risco de não ver realizada a visão. Escrever a visão significa, portanto, certeza absoluta da concretização da mesma, uma fé contra todos os indícios. Não sabemos qual o conteúdo desta visão. Talvez ela se encontre no capítulo 3. Em todo caso, o v. 4 — se não for o conteúdo da visão — parece ser pelo menos a essência, a interpretação ou o centro da visão.

A primeira parte do v. 4 é de difícil interpretação. Obviamente há uma contraposição entre as duas partes do v. 4. Ao justo é contraposto o inflado, orgulhoso, soberbo, arrogante (assim Almeida). O destino do arrogante é, pois, contraposto ao destino do justo. Este viverá; sobre aquele vale: minha (= de Deus) alma (= eu) não se agrada dele. (Esta possibilidade de traduzir a primeira parte do v. 4 se baseia numa pequena alteração do texto hebraico inspirada na versão grega). Conforme a sugestão adotada, o v. 4 lê: O arrogante — não tenho prazer ne-le; mas o justo viverá por sua fidelidade.

Esta última palavra foi muito importante para o apóstolo Paulo, que viu aqui uma prova escriturística da justificação do pecador pela fé, sem a necessidade de obras (Rm 1.17; Gl 3.11; cf. também Hb 10.38). O termo hebraico — que a versão grega reproduziu por fé — é melhor traduzido por firmeza, perseverança, fidelidade ou mesmo confiança. Não é, em todo caso, fé sem obras. Fidelidade à palavra de Deus pode ser fé, confiança quando esta palavra for preponderantemente promessa. Quando a palavra divina for preponderantemente exigência de justiça, o termo significa a firmeza na prática comprometida com esta exigência.

Que é que nós podemos fazer com esta visão? A promessa O justo viverá não contradiz a nossa experiência? Na realidade, vive somente aquele que tem poder, que é esperto, que sabe tirar vantagem, que não se importa com a coletividade!? Esta experiência também é a do profeta. Conforme o profeta, não é por um milagre que a violência, a injustiça e a opressão serão exterminadas da face da terra. Deus age milagrosamente. Deus quer que as pessoas se decidam livremente pelo seu projeto. Também não é pela destruição de um grupo de pessoas más, violentas e opressoras, levada a efeito por um poder político de fora que as coisas vão mudar. A opressão não termina com a substituição dos tiranos (cf. Hc 1.5ss.). Se estas duas vias não estão de acordo com o projeto de Deus, só resta o caminho através dos discípulos justos e comprometidos, que perseveram fielmente na prática da justiça na comunidade.

Poderíamos até polarizar esta afirmação, identificando os justos de Hc 2.4 com os injustiçados de Hc 1.2-4. Isto não está expressamente no texto, mas dentro do espírito do texto. Desta forma se poderia representar também a mensagem de Hc 2.1-4 liturgicamente no culto. As pessoas que representam as diversas violências sofridas, mencionadas no lamento He 1.2ss. e que testemunham de suas experiências de injustiça, poderiam receber um sinal de vida (uma flor?, uma planta?) por sua perseverança. Além disso, poderia ser acrescentada uma dimensão nova (também não presente no texto): as mesmas pessoas distribuem os símbolos de vida recebidos a toda a comunidade presente. Assim, os justos não recebem vida apenas para si, mas a transmitem para toda a comunidade.

4. A prédica

A pregação consistiria, então, de três ou quatro partes: a) testemunho de pessoas violentadas; b) breve reflexão ou explicação a partir do texto de Hc 1.2-4; 2.1-4; c) um símbolo de vida aos justos que viverão por sua fidelidade; e eventualmente d) distribuição de símbolos a toda a comunidade (também os ímpios vivem da fidelidade dos justos).