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Prédica: 1 Reis 17.17-24
Leituras: Gálatas 1.11-24 e Lucas 7.11-17
Autor: Carlos Musskopf
Data Litúrgica: 3º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 28/06/1992
Proclamar Libertação – Volume: XVII


1. Introdução

Devemos analisar o texto de l Rs 17.17-24 em três níveis, para então procurar seu significado teológico para nós:

1. O momento histórico em que os fatos foram vividos.

2. A sua redação fragmentária por seguidores da escola de Elias.

3. A situação em que o deuteronomista incluiu o texto no todo de sua obra.

1.1. De 17.1 sabemos que Elias era tesbita, dos moradores/colonizadores de Gileade. A discussão por localizar esse local, via de regra é estéril, pois não é determinante para sua utilização na prédica. Elias atua como profeta no Reino do Norte, Israel, nos anos do rei Acabe. Precisar estes anos não é tarefa fácil, mas podemos tomar como base o espaço entre 867 e 850 a.C.

Por seus hábitos e forma de viver, podemos deduzir que se tratava de uma pessoa muito forte e corajosa. Pelas consequências de sua atuação, podemos inferir que era plenamente identificado com um setor da população de Israel, a saber, as pessoas humildes, que sofriam com os desmandos do rei e da sua corte.

Acabe é o mais fraco e indigno ocupante do trono de Israel até o momento. Faz alianças humilhantes, casa com uma estrangeira e, pior de tudo, admite e até favorece o culto a Baal.

A parte do povo com a qual Elias se identifica opõe-se a Acabe não só por ser um mau rei, mas por causa da própria monarquia. Consideram-na uma apostasia, uma usurpação, um entrave para a atuação de Javé, revelada no êxodo e firmada na aliança do Sinai.

Baal é o deus da fertilidade, do sexo, da morte/ressurreição (morre e ressuscita conforme as estações do ano). Isto é profundamente ameaçador para a fé em Javé, pois o baalismo propagandeado pela monarquia pretende abranger as pessoas em sua totalidade: a produção de alimentos, a preservação da espécie e o sentido para a vida e morte. Os símbolos do baalismo fornecem material ideológico para as intenções do rei e sua corte. A monarquia fora criada pela elite agro-pastoril e comerciante que emergia em Israel para defender seus interesses. Um culto controlado pela classe dominante também significa controle sobre seus seguidores. Do outro lado está o culto a Javé, que não se limita a formas ou lugares, que se revela tanto no deserto como na cidade, que tem poder sobre as secas e enchentes, sobre a vida e morte. Elias, na expressão de Croatto, o grande campeão do javismo do século IX, o protótipo do profeta militante, lembra que Javé é incomensuravelmente maior do que Baal, seu poder criador não tem limites. Toda a sua história, sua atuação, está voltada para defender a fé independente e libertadora de Javé, esquecida providencialmente pela monarquia, mas muito presente na religião do povo humilde e sofredor.

A primeira consequência à sua pregação é a perseguição. Em 18.4 lemos que Jezabel exterminava os profetas. Seus métodos de combate aos seus adversários também são conhecidos da história de Nabote. Elias se esconde e vai parar na casa de uma viúva numa terra estrangeira. Só volta quando Acabe se predispõe ao diálogo, pressionado pela fome que resulta da seca.

1.2. Pouco sabemos a respeito do grupo de seguidores de Elias. Os exegetas falam numa escola de Elias e Eliseu, que teria guardado os ditos e feitos destes dois grandes profetas como tesouros de resistência e fé autêntica. Sabemos que Elias mês mo não deixou nada por escrito. Portanto, os fragmentos de sua atuação devem lei sido coletados nas histórias contadas pelo povo. Estas histórias podem ter adquiri do, às vezes, o caráter de lendas, tamanho impacto e entusiasmo que ele causou entre as pessoas que o viram e ouviram. Homburg dá razões para se crer que, por volta do ano de 800 a.C., as tradições a respeito de Elias estavam redigidas. Original mente eram histórias isoladas, sendo, de início, transmitidas oralmente e posterior mente, colecionadas por discípulos do profeta. (P. 100.)

1.3. O trabalho teológico e redacional registrado na Obra Historiográfica Deuteronomística é de um tamanho e de uma importância que não podemos detalhai neste estudo. Contudo, é importante que seja salientado, em primeiro, lugar, a situa cão em que os autores deuteronomistas se encontram quando escrevem e, em segundo do lugar, um pouco de suas intenções com sua obra.

A época do trabalho dos deuteronomistas é a do exílio. A destruição de Jerusalém é pressuposta, mas não há indicações de que haja o crescimento de Ciro no noite. Portanto, o trabalho foi realizado ao redor do ano 550 a.C. Por local, podemos aceitar que tenha sido em Betel ou Mizpa , entre aquelas pessoas que permaneceram na terra natal.

Os deuteronomistas combatem claramente dois adversários: a monarquia e a idolatria. Na verdade, são dois lados da mesma moeda. A monarquia precisa da idolatria para se manter. E o resultado é bem visível: o exílio, a deportação, a vergonha e o vexame total e absoluto. Não há como defender um sistema de governo que se nutre da injustiça e busca apoio em divindades criadas, inventadas, que não tem poder, que não têm história nem se podem mostrar perenes.

Os deuteronomistas olham para trás, a fim de chamar a atenção para o que vem pela frente. Lembram que a modernidade de Baal é ideológica, interesseira, enquanto que o velho Javé do deserto é o Deus da libertação, da justiça, da vi da. Pode-se dizer que não é por ser novo que algo é moderno, nem por ser velho que algo é ultrapassado. Em todos os tempos a propaganda procura confundir a ca beça, os valores das pessoas. Mas a fé lança suspeita sobre a propaganda, desvenda, revela a verdade escamoteada. A fé retroage para projetar. Busca na aliança a seiva de vida. A aliança vincula Javé a uma experiência histórica que, por ser histó-rica, não se limita a ela. Javé é o Deus dos Pais, portanto, vive sempre, não está preso a ciclos, a estações do ano. Aliás, os deuteronomistas deixam claro que os ciclos de Baal foram interrompidos. A natureza continuou com seus ciclos, mas o poder de Baal não funcionou. Schwantes afirma:

Um dos maiores problemas da idolatria é que os ídolos não existem. A força do ídolo é sua inexistência. A idolatria nada mais é do que a névoa, o charme, o palavreado que encobre o que existe. É a ilusão que encobre os objetos. (P. 123.)

2. O texto

O texto de l Rs 17.17-24 é claramente material que os deuteronomistas recolheram da tradição criada pela escola profética que segue a Elias e Eliseu.

O cap. 17 é inserido abruptamente na narrativa de l Rs, o que não surpreende, pois os deuteronomistas não tinham a preocupação de acomodar os textos disponíveis à sua narrativa. Pelo contrário, procuravam preservar ao máximo o texto original, com suas peculiaridades.

De Vries classifica nosso texto da seguinte forma:

Narrativa para a legitimação de um profeta: uma história maravilhosa demonstrando a natureza e os escopo do fortalecimento de um profeta, identificando este profeta como genuíno. (P. 207.)

Já Long o chama de narrativa profética, uma história que busca identificar um profeta retratando atributos maravilhosos e/ou ações magníficas. Esta classificação pode ser melhor aceita por ser mais ampla e mais abrangente.

2.1. Por partes

Por causa da seca e da consequente fome causada por Javé para mostrar que tem poder sobre a vida cíclica de Baal, Elias busca refúgio na casa de uma viúva em Sarepta (ao norte de Israel). Lá realiza uma multiplicação de pães com um resto de farinha e azeite que ela tinha.

V. 17: Adoece o filho da hospedeira de forma que não havia mais hálito (neshma) nele. Em lugar algum é mencionada a idade do filho.

V. 18: Reconhecendo a Elias como homem de Deus, a mulher entende o problema do filho como consequência de sua própria iniquidade. Ela pensa em Deus como quem vinga, como quem pune. Não sabe ainda que o Deus de Elias é amor e vida.

Vv. 19-20: Num impulso, Elias toma o filho dos braços da mãe e o leva para seu quarto, onde tem uma conversa com Deus. Admite que Javé tem poder e direito de afligir, de falar rudemente, mas não se conforma com esta explicação. Quer mais de Javé.

V. 21: Num gesto simbólico, como que querendo, por osmose, passar de sua vida ao corpo inerte do menino, Elias se estende por três vezes sobre ele. Mas isto não é suficiente: o milagre não se dá só por vontade humana, mas por graça imerecida de Deus. Então ele clama ao Senhor que faça anefesh do menino tornar a entrar nele.

V. 22: A determinação e a fé de Elias são recompensadas por Javé, que devolve ao menino o hálito, a respiração. (Se discute se o menino realmente estava morto ou se não se tratava de um caso de morte aparente. É certo, que ainda era cedo para confirmar sua morte, mas também não há dúvidas de que, os sinais aparentes de vida não eram mais perceptíveis. Decisivo, no entanto, é que não só os sinais de vida são recuperados, mas que onde havia um processo regressivo do estado de saúde, agora há um processo progressivo.)

V. 23: O milagre do restabelecimento da vida plena se dá num local à parte para logo depois voltar ao local de convívio. O menino é devolvido à mãe, à casa, à vida

V. 24: A reação da mulher é o reconhecimento da autoridade do profeta e da autenticidade das palavras que ele proferia.

2.2. O termo nefesh

H. W. Wolff afirma que a pessoa humana não tem uma nefesh, mas é nefesh. Diz isto para contrapor o conceito hebraico desta palavra ao conceito comum que se tem da palavra alma, que é usada para traduzir nefesh. A compreensão atual de alma é influenciada pela cosmovisão grega, para a qual a alma é algo separável do corpo e até em oposição a ele: o corpo é o cárcere da alma Para Wollf, nefesh deve ser olhada em conjunto com a figura total do ser humano e especialmente com a sua respiração (p. 22).

Não cabe aqui resumir as teses de Wolff, mas de tê-las em conta quando se medita sobre o texto. Pois, se.não mostrarmos com clareza a unicidade e a indivisibilidade da criatura humana, abrimos espaço para o espiritismo e outras seitas que confundem as pessoas cristãs. A linguagem, na tradução de Almeida e também na da Bíblia de Jerusalém, dá-margem à compreensão de que a alma saiu do corpo do menino, vagou no espaço e voltou a incorporar.

Devemos mostrar com clareza que Javé re-criou vida no corpo do menino usando Elias como intermediário de sua obra. Não é, portanto, a alma que dá a vida, mas é Deus quem cria o fenómeno da respiração e dos sentimentos. Quando o cor pó morreu, a alma também morreu. Quando o corpo tornou a viver, a alma tornou a viver. Quando os vv. 21 e 22 falam em tornou a entrar no menino, se deveria pensar em tornou a estar presente, como obra e graça de Javé. A tradução em A Bíblia na Linguagem de Hoje acerta melhor neste particular.

3. Meditação

A nossa vida está cheia de riscos. Estamos em risco quando nos defrontamos com uma situação limítrofe incómoda, inquietante, perigosa. Isso se dá em todos os níveis, desde o familiar até o social e político. Que tipo de educação dar aos filhos/as; mudar ou não da monocultura para a policultura; usar ou não adubos químicos e defensivos agrícolas; participar ou não do sindicato, votar ou não em tal candidato. Neste tipo de casos, temos que tomar uma decisão, fazer uma opção. O resultado não é conhecido, pode dar certo, pode dar errado. Mas é preciso optar, seguir um caminho e assumir as consequências.

Antes de fazer a opção, no entanto, é preciso ponderar, balancear, discernir. Às vezes, o tempo para isso é pouco, quando vai contar, antes de mais nada, a experiência. Em muitos casos é necessário confiar em outra pessoa para superar o risco. Aí, acima de tudo, vai contar a credibilidade, a confiabilidade desta pessoa.

Elias granjeou confiabilidade e credibilidade, ou seja, sua identidade profética através de acontecimentos, como estes narrados no capítulo 17 de l Reis. Para aceitar o hóspede, a viúva tinha que optar: confiar neste homem de Deus ou não. Acreditar ou não no poder de Javé. Dar ou não o resto de farinha e de azeite. Permitir ou não que Elias levasse seu filho morto para o quarto de cima. Crer ou não que as palavras de sua boca eram verdade. A todas estas perguntas Elias deu resposta positiva, até chegar ao ponto da confissão no v. 24.

Em primeiro lugar Elias mostra que não há relação de causa e efeito entre doença/morte e pecado/iniquidade. Javé está acima disso com seu poder. (Também os amigos de Jó queriam estabelecer tal relação, mas Jó não se deixou dobrar.) A fome, a doença e a morte não são o resultado do pecado individual, mas dos equívocos coletivos cometidos pelo povo e, em especial, por seus governantes. No entanto, não deveríamos olvidar que, na época dos juízes, ao pecado coletivo seguia-se o arrependimento coletivo e tudo mudava, era transformado. Com o advento do reinado, o povo paga o custo dos erros da monarquia, mas a estrutura de poder não se altera, perpetuando o mal que causara a desgraça.

Por isso, nosso texto é usado no contexto da luta que se desenvolve para desmascarar a monarquia. Esta é identificada com a idolatria, e não tem poder para trazer comida, para suscitar vida. Mas Javé se mostra completamente imprevisível, incontrolável, em oposição a Baal, que é controlado por leis previsíveis e submissas à vontade de Javé.

Em segundo lugar, Elias mostra que representa um Deus de vida. A morte está dando os seus sinais por toda a parte. Já no v. 12 a viúva diz: (…) come-lo-e-mos e morreremos. Mesmo com comida farta (v. 16), a morte espreita e acaba levando o filho da viúva. É assim que o mal se revela pela morte. Os arautos da morte estão pregando em pele de cordeiros, pois não podem cumprir o que prometem. Confundem as consciências das pessoas, ameaçam com o castigo, apresentam o certo como errado e vice-versa. Elias revela Javé como Deus de vida. Seu nome é invocado, e a vida é restabelecida. Em quem confiar? Por quem optar? A resposta parece fácil e óbvia, mas não é. Investir no profeta que anuncia a vida significa abrir mão de algo estabelecido, de uma racionalidade, da versão oficial, da religiosidade do rei. E esta diz que fazer-lhe oposição é uma coisa irracional. Nem todas as pessoas estão dispostas a arriscar uma outra racionalidade. A propaganda, o engodo ainda são mais cómodos que o risco de engajar-se numa aventura que exige participação e comprometimento.

A racionalidade oficial ainda hoje está matando. Matando meninos (como o da viúva) e meninas, bebés, jovens, adultos e idosos. Ela não se arrepende, não mu¬da, não é capaz de criar outra coisa senão tristeza e morte. Ela não é construtora da história e, sim, destruidora. A profecia, sim, é construtora de história, de mo¬mentos novos, de realidades que sinalizam o caminho certo, o caminho da verdade, o caminho da vida.

Assim chegamos ao terceiro elemento: a viúva já chegou lá. Ela compreendeu que a palavra do Senhor na tua boca é verdade (v. 24). Verdade que se opõe à mentira, vida que se opõe à morte, Javé que se opõe a Baal, arrependimento que se opõe à esclerose. A palavra da verdade re-criou a vida. Dispõe dela, não lhe é submissa. Não pelo poder de um homem, Elias; não por seu poder, seu carisma ou sua força. Javé o confirmou, fez dele seu instrumento, sua epifania. A viúva reconheceu que a palavra da verdade é a palavra da vida. Então ela confessa. Ela está segura de sua opção. Sabe que é algo consistente, para a vida toda. Não só professa a fé num impulso imediatista, superficial, mas consegue olhar para o horizonte com olhos novos.

A viúva de Sarepta, uma estrangeira, alguém de fora é modelo de fé para o povo escolhido/esquecido. Javé fez e faz maravilhas. Seus profetas autênticos são dignos de confiança e credibilidade.

Será que nossas comunidades/paróquias estão abertas para ouvir os profetas dos nossos tempos? Será que as pessoas que pregam estão livres para mostrar que vale a pena correr riscos quando se tem Javé por guia? Será que ainda distinguimos a vontade de Javé no universo de opções e alternativas que o mundo atual nos propõe?

4. Prédica

Três são os caminhos que a prédica pode tomar; dois são temáticos e o outro é o tradicional.

1. Abordar o fato real e sempre verdadeiro de que a história oficial é contada sob o ponto de vista dos vencedores, dos poderosos, dos que dominam a sociedade. Mas também há uma versão da história que é paralela: a dos derrotados, normalmente a maioria, deixada de lado nos livros oficiais, mas presente nas canções, poe¬sias e lendas do povo. Esta duplicidade também pode ser observada na Bíblia, que contempla ambas as versões.

2. Tanto o contexto urbano quanto o rural estão sendo bombardeados por informações que, implícita ou explicitamente propagam, defendem, encorajam o espiritismo. Uma boa explicação do que o Antigo Testamento e a antropologia judaica pensam sobre a unicidade entre corpo e alma na pessoa humana cabe para uma prédica temática. As versões de Almeida e da Bíblia de Jerusalém podem ser usadas como ponto de partida. Elas com certeza criam confusão na cabeça de pessoas menos esclarecidas.

3. O caminho tradicional pode seguir os passos da meditação, falando de riscos, opções e confiança/credibilidade.

5. Subsídios litúrgicos

1. Coleta: Oh, Deus de justiça e verdade, concede-nos a tua palavra. Ela transforma e dá coragem. Por elas vivemos em paz e confiança. Por Jesus Cristo, Teu Filho, nosso Senhor. Amém.

2. Intercessão: Pelas pessoas que já se deixaram enganar pela propaganda oficial; pelas que ainda não se deixaram enganar; pelas pessoas que pregam a mentira que mata; pelas pessoas que pregam a verdade que traz vida e que colocam a sua vida em risco por ela.

6. Bibliografia

WOLFF, H. W. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo, Loyola, 1975.
SCHWANTES, M. Teologia do Antigo Testamento — Anotações. São Leopoldo Setor de Publicações — EST, 1986.
HOMBURG, K. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo, Sinodal, 1975.
LONG, B. O. I Kings. Grand Rapids, W. B. Eerdmans Publishing Co., 1984.
De VRIES, S. J. World Biblical Commentary — I Kings. Waco, Word Books Publisher, 1985.
BRUEGGEMANN, W. I Kings. Atlanta, John Knox Press, 1982.
CROATTO, J. S. História de la Salvación. México D. F., Ediciones Paulinas, 1974.