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SEMANA DO EXCEPCIONAL
(23 a 30 de agosto de 1992)

Textos bíblicos abordados: Mc 10.46-52; Mc 1.40-45; Mc 7.31-37; Jo 9.1-41

Arno Glitz

1. Apresentação

Nossa filha Juliana, a terceira de nossos quatro filhos e única mulher, nascida em 1956, é mentalmente retardada em consequência de hipóxia (falta de oxigênio) perinatal que causou paralisia cerebral. Ela tem deficiência intelectual acentuada, de linguagem e de coordenação motora; é treinável para algumas funções, como: secar e guardar louça, pôr a mesa, colar, selar e postar envelopes e outras atividades equivalentes. Somos, portanto, afetados. Do que segue, muito é de nossa experiência pessoal e de reflexão bíblica sobre portadores de deficiência, sobretudo, mental.

2.O que tem a Igreja a ver com a pessoa portadora de deficiência (PPD)?

O Brasil é o único país que instituiu uma Semana Nacional do Excepcional, de 21 a 28 de agosto, por Decreto n° 34188, de 24/8/1964. A Semana tem por finalidade básica conscientizar para derrubar tabus, desmistificar a temática, transmitir alento aos afetados, aproximar as pessoas, visando a integração até onde for viável e possível, através de palestras, visitações, conquistar espaços na mídia para mostrar algo do muito que as PPDs realizam em empregos, nos esportes e em outras atividades.

Por que a preocupação com as PPDs? Já não chegam os problemas que a maioria das pessoas ditas normais enfrentam ao lutar desesperadamente para sobreviver? E a Igreja? E nossa IECLB, pequena e frágil diante dos enormes desafios da missão que Jesus nos confiou em Mt 25.40, em Mt 25.45? Há pequeninos mais característicos que as PPDs?

Há uma recomendação da ONU para que os países considerem em seus orçamentos o fato de que 10% (nos países subdesenvolvidos) da população são portadores de deficiência. A metade das PPDs, ou seja, 5% de uma população, é portadora de deficiência mental, incluindo desde os casos leves, com dificuldades de aprendizagem, até os severos e profundos. A experiência mostra que, dentre estes, 70% são educáveis para uma vida semidependente e mesmo independente; 20% são treináveis para uma vida dependente, e 10% serão totalmente dependentes. A deficiência mental não é a tragédia que parece à primeira vista. Dois por cento de uma população são portadores de deficiência física: o decréscimo vertiginoso de casos de pólio e compensado pelo crescimento de acidentes sobretudo automobilísticos. Aproximadamente 1,5% de uma população tem deficiência auditiva (surdez) e cerca de 0,5% é portador de deficiência visual (cegueira), e, por fim, 1% é portador de pseudo-deficiências (deficiências mal diagnosticadas), autistas, talassêmicos, epiléticos, ostomizados, acometidos pela Síndrome de Rett, etc.

3. Estar ao lado da PPD

Como lidar com a PPD? O que fazer com as famílias afetadas? Atentemos que a PPD é, em primeiro lugar, uma pessoa. Em segundo lugar, é uma pessoa com necessidades especiais. Em terceiro lugar, a PPD pode levar uma vida mais normal possível, respeitadas as limitações de sua deficiência. O que nos cabe? Conhecer tais necessidades especiais, para podermos atendê-las. O desconhecimento é uma fraque¬za; a deficiência é também uma fraqueza, mas nela há força (2 Co 12.9-10). Uma caminhada começa com o primeiro passo e o nosso será: aprender.

O óbvio para uma primeira aproximação será realizar um culto com e por, e não apenas para PPDs.

A maioria das pessoas sente algum receio e frequentemente também uma repulsa ao se defrontar com PPDs, sobretudo com as mentalmente deficientes, cujos rostos expressam, muitas vezes, idiotia; quem não se chocou ao se defrontar pela primeira vez com um portador da Síndrome de Down (mongolóide)? Não nos perturbe termos tido tal reação. Aceitemos nossa primeira impressão, mesmo quando desfavorável. Na realidade, o que nos chocou? No fundo é que isso poderia ou ainda poderá acontecer comigo ou com alguém a quem quero bem.

Um culto seria, assim, um primeiro passo para tentar um conviver natural. No culto você verá mães e pais com lágrimas no rosto. Isso lhes faz bem (Mt 5.4). Estão revivendo momentos dolorosos por que passaram ou ainda estão passando. É uma catarse necessária para fechar feridas da alma. Talvez uma mãe esteja pensando na filha que num acidente quebrou a coluna na altura da nuca e ficou tetraplégica. Como a filha irá administrar sua profissão, seu lar, educar seus três filhos pequenos, segurar o casamento? São perguntas angustiantes, existenciais. Nem nós nem os pastores fomos preparados para nos defrontar com problemas de tanta intensidade.

Pastores gostariam de consolar as pessoas afetadas, sobretudo as recentemente afetadas. Como fazer? A agressão é, em geral, o elemento mais necessário para repor equilíbrio na pessoa afetada: perfaz a função da válvula de escape na panela de pressão. E de todas agressões a mais natural, a mais sadia, a que menos estragos causa, é a revolta contra Deus. Quem nos diz isso é o livro de Jó. Deus compreende a revolta de Jó, mas não explica a Jó o porquê de seu sofrimento; sem compreender o porquê, Jó aceita seu destino.

A Prof. Dra. Erika Schuchardt, da Universidade de Hannover, Alemanha, cita o testemunho de Pearl S. Buck, missionária norte-americana na China, Prémio Nobel de Literatura. Ela teve uma filha com Síndrome de Down. Pearl, em constante contato com a Bíblia e sua igreja, conta:

Superar uma crise destas não é uma questão cerebral; é problema de coração… olhando para trás, reconheço os degraus que tive que superar: cada um parecia insuperável; eu acreditava nas palavras encorajadoras de amigos, até que reconheci a cruel verdade do retardo mental; aprendi que não se deve bagatelizar o peso do fardo; a primeira fase me foi horrivelmente destruidora; eu não sentia mais alegria em nada; mas a gente aprende a conviver com uma dor que não dá para afastar; levei dez anos para superar o processo e não sei quando aconteceu a mudança dentro de mim, ela surgiu de algum lugar do meu ser; aprendi a distinguir que há duas categorias de pessoas no mundo: aquelas que conheceram uma dor inescapável, e as que não conheceram tal preocupação. Falo como uma pessoa que sabe.

Acho que o retardo mental num filho causa sofrimento tão grande porque significa uma quebra no elo pais-fïlhos, que de certa maneira representa a única imorta¬lidade que nos é possibilitada: que um pedacinho de nós continue a viver através dos nossos filhos. Schuchardt também cita Luise Habel, paraplégica, pólio, que em seu livro Deus, suma com as escadas (Herrgott, schaff die Treppen ab), descreve sua luta com a Igreja, de como queria ser aceita, mas não encontrava ambiente com pastores sempre ocupados, e convidando-a somente para iniciativas onde eles, pastores, iriam aparecer. Desesperada, em conflito com a mãe que nunca se queixava nem comentava nada, mas era fria com Luise, esta telefonou à paróquia. Um pastor novo a atendeu e veio visitá-la para conhecê-la. Ela descarregou tudo o que nela vinha se acumulando durante anos e, no final, perguntou: O que pode a Igreja fazer por mim? Ao invés das usuais consolações que só irritam, o pastor humildemente confesssou: Não sei. Juntos vamos ter que descobrir o que a Igreja deve fazer. Ela voltou à Igreja, e testemunha: Em Jesus eu posso confiar. Ele não é um super-ho-mem acima de minhas possibilidades. Ele sofreu com angústias (Lc 22.44) como eu, teve desesperos (Mc 15.34) como eu. Lembra-me o pastor Genthner, da paróquia Boqueirão, Curitiba, que diante da mãe de um autista disse: Eu não sei o que poderemos fazer, como poderemos ajudar. O que eu sei é que estaremos ao seu lado.
Estar ao lado: acho que esta frase é a chave. Vamos ver como Jesus está do nosso lado.

4. Contexto do templo

Jesus era judeu. Era um judeu crente: orava muito, citava seguidamente o AT. Era mais um no povo, numa sociedade moldada pelo contexto do templo. O templo espelhava uma sociedade discriminatória, opressora e marginalizadora, estruturada em torno de leis religiosas. Somente os homens tinham acesso ao templo; só eles constituíam o povo de Israel. As mulheres ficavam no ante-pátio das mulheres, faziam parte dos excluídos como os infiéis, os pagãos, os estrangeiros, que ficavam no ante-pátio dos gentios. A herança milenar da exclusão das mulheres é tão fortemente arraigada que há comunidades na IECLB onde as mulheres sentam separadas de seus maridos durante o culto. Inacreditável! O acesso ao templo estava reservado a homens perfeitos (Lv 21.16-23). Judeus com defeitos tinham que ficar no pátio dos gentios para não contagiarem ninguém. Homem em quem houver algum defeito' não poderá oferecer o pão de seu Deus (w. 17-20); e menos ainda poderá ser sacerdote: (…) ele tem defeito; não se chegará para oferecer o pão do seu Deus; (…) nem se chegará ao altar, porque tem defeito, para que não profane os meus santuários (vv. 21-23).

Esta discriminação está tão arraigada que até hoje os cristãos ortodoxos não admitem que uma PPD possa se tornar sacerdote. Lutero que, sem dúvida, foi um grande libertador de mentes, considerava os retardados mentais como não sendo gen¬te, e isso apesar de seu comprovado amor a Jesus, a Deus, à Bíblia!

Há poucos anos um paraplégico foi ordenado padre. Ainda bem, pois nos fins dos anos 70, José Carlos Barbosa, seminarista, ao saltar num rio durante um piquenique, quebrou uma vértebra cervical, ficou tetraplégico (com grande esforço hoje é paraplégico), e em consequência foi desligado do seminário: não havia então na Igreja lugar para um padre com defeito. A pastora Iara Mueller é a única pastora PPD. Ela é paraplégica e trabalha como pastora no Colégio Sinodal. Não sei se antes de Iara, a IECLB não aceitava PPDs na Escola Superior de Teologia ou se as PPDs se sentiam inibidas, sob o tremendo peso da discriminação bíblica (Lv 21.16-23), e nem ousavam aspirar ao pastorado.

O que impressiona é que Deus no AT não delxa dúvida quanto à sua preferência pelas PPD. Deus assume a responsabilidade da existência de PPD (Êx 4.10-12), pois nada acontece sem o seu consentimento (Mt 10.29-31). Quando Deus diz eu faço o surdo, o mudo, o cego (Êx 4.11). Ele afirma que também as PPDs têm a dignidade que Deus concede a todos. Deus também concede sua proteção às PPDs (Lv 19.14). Ele mesmo guiará as PPDs de volta do exílio babilônico (Jr 31.8-9); garante que nunca desamparará as PPDs (Is 42.16) e anuncia-lhes a redenção (Is 61.1-2) que se concretizará com Jesus (Lc 4.18-19). Davi, o grande político, cativa a descendência de Saul ao conceder a Mefibosete, filho de Jônatas (2 Sm 9.1-13), que, apesar de coxo de ambos os pés (vv. 3 e 13), comesse sempre à mesa do rei Davi (v. 13). Ao receber Mefibosete, Davi sabia com quem estava falando; ele até desobede¬cia às leis discriminatórias, mas cumpria a Palavra de Deus.

5. Curas de PPD

Uma frequentadora de uma igreja pentecostal teve um filho mentalmente retardado. O pastor, comovido, convocou a comunidade para imporem as mãos e rezarem sobre a mãe e a criança; isso foi feito durante um ano. A criança não ficou curada. O pastor, então, sentindo-se fracassado, disse à mãe: Jesus disse que fé move montanhas (Mc 11.23), que nós podemos fazer o que ele fez (Jo 14.12); basta termos fé. Tua criança não ficou boa porque tu não tens suficiente fé; e sem a tua fé não posso ajudar na cura. A mãe, que já estava com o moral arrasado, ficou demolida. Só mais tarde compreendeu que seu filho não estava doente; tinha, e tem, a condição de ser mentalmente retardado. O retardo mental, tal como a cegueira, a surdez, a paralisia, pode resultar de uma doença, mas, em si, não é uma doença; é uma condição de ser, muitas vezes uma nova condição de ser. O que precisava esta mãe? A nossa solidariedade, e não a promessa irresponsável de uma cura impossível.

Não é fácil para o afetado, em sua aflição, se dar conta de que Deus, ao olhar para sua criação, para tudo quanto fizera (Gn 1.31), não achou que era perfeito, mas, sim, que era muito bom; uma diferença de que raramente nos damos conta. De acordo com o pastor Werner Fuchs, perfeito é só o amor de Deus por toda a sua criação, toda sua humanidade, por cada um de nós, inclusive as PPDs (Proclamar Libertação, vol. XVI, pp. 42-48).

Jesus, em sua caminhada, curou. Por que nós não podemos curar? Jesus prometeu que é através das PPDs que se realizam as obras de Deus (Jo 9.3).

6. Curas de Jesus

6.1. A cura do cego de Jericó (Mc 10.46-52)

Bartimeu é uma pessoa bem definida, filho de Timeu, morando em Jericó. O texto diz que ele se pôs a clamar (v. 47), e cada vez gritava mais (v. 48); queria se libertar do cativeiro de ser cego: além de não poder entrar no templo, nada mais podia do que esmolar. Vamos nos colocar no seu lugar: ele não podia deixar o bonde passar; para ele, aquele era como que o instante em que a água se agitava no tanque de Betesda (Jo 5.1-7); ou ele aproveitava aquela oportunidade ou nunca mais sairia do seu cativeiro. E o verdadeiro cativeiro não era a cegueira, a condição de ser cego, mas, sim, a opressão causada pelas leis discriminatórias contra os cegos. Quando Jesus chamou (v. 49), Bartimeu, lançando de si a capa, levantou-se de um salto, e foi ter com Jesus. Impressionante: ele, Bartimeu, tomou a vida em suas próprias mãos, teve a iniciativa de libertar-se da cegueira. Quantas vezes nos é bem mais cômodo continuarmos cegos para não ver as injustiças sociais, os enormes e pecaminosos desníveis de renda que causam tanta miséria, que literalmente produzem as PPDs em nosso país! Jesus, porém, não foi paternalista como o são os técnicos que trabalham com PPDs, que sabem tudo melhor. Nada fez sem antes perguntar a Bartimeu: Que queres que eu te faça? (V. 51.)

Há duas lições, ao meu ver: a iniciativa da PPD e o respeito de Jesus para com a PPD; é a PPD que sabe melhor o que quer e o que lhe convém. Aí há fé, e é esta que salva (v. 52).

6.2. A cura de um leproso (Mc 1.40-45)

Ao contrário de todo mundo, Jesus não discriminava os leprosos. Em Betânia foi à casa de Simão, o leproso (Mt 26.6). Neste texto, o hanseniano, de joelhos, roga: Se quiseres, podes purificar-me (v. 40); ele se sujeita à vontade de Jesus. O que impressiona aqui é que ele não pediu para ser curado, mas para ser purificado. Jesus responde: Quero — um sim válido para toda pessoa que decide lidar com suas crises, para toda PPD que se decide a lutar para adequar-se em sua condição. Jesus acrescenta: Fica limpo (v. 41). Jesus não purificou o hanseniano, mas curou-o; pois o hanseniano ficou limpo (v. 42). Mais: Jesus manda: Vai, mostra-te ao sacerdote e oferece pela tua purificação o que Moisés determinou, para servir de testemunho ao povo (v. 44; cf. Lv 14.1-32). Para que esta purificação? Afinal, o leproso já estava limpo. O ritual da purificação significava para o leproso como que um passaporte para voltar a frequentar o templo, a sentar-se no lugar -reservado ao povo de Israel. O ex-hanseniano readquiria assim todos os seus direitos de filho de Abraão. Para tal, tinha que ocorrer a mais importante das purificações: a ressurreição (Jo 11.25) da mente do ex-leproso do estigma de leproso.

Quem já lidou com hansenianos sabe que a hanseníase é pouco contagiante: dos cinco tipos de doença, somente duas são contagiosas. E mesmo estas, após semanas de tratamento com medicamentos, não mais contagiam. Mas, o estigma é tão forte que o maior problema do ex-hanseniano ou do hanseniano em tratamento é o de misturar-se livremente com as pessoas não-doentes: em cada olhar dos outros ele enxerga uma censura, uma discriminação. Por isso, o leproso pediu a Jesus para ser purificado, ou seja, para readquirir os direitos de cidadania plena. Sabendo que o ex-leproso continuaria a viver numa sociedade regida pelas leis institucionalizadas, Jesus mandou que ele se mostrasse ao sacerdote. Só a purificação feita por um sacerdote devolveria ao ex-leproso a possiblidade de viver normalmente.

6.3. A cura de um surdo e gago (Mc 7.31-37)

Jesus deu uma atenção pessoal ao surdo (v. 33), tirando-o da multidão, à parte. É esta atenção pessoal que a PPD espera de todos nós e da Igreja. Erguendo os- olhos ao céu, Jesus pediu a bênção e agradeceu a Deus pelo que fez. Disse ao surdo: Efata — que quer dizer: Abre-te. Abriram-se-lhe os ouvidos, e logo se lhe soltou o empecilho da língua, e falava desembaraçadamente (vv. 34-35). Isso é o que pedimos a Deus: que ele faça abrir nossos ouvidos para ouvirmos os clamores (Êx 3.7) dos discriminados, dos que estão sofrendo, dos que estão com feridas na alma. E que nos solte a língua para proclamarmos o reino dos céus: justiça e paz, verdade e decência, uma vida digna, alegria de viver, educação e saúde, bem-estar íntimo. Que extirpemos de nossas mentes racismo, discriminações, preconceitos. Este é o Efata proclamado por Jesus, atestado pelo cego de nascença. Abre-te é ser colocado ao lado dos que estão sofrendo.

6.4. A cura do cego de nascença (Jo 9.1-41)

Caminhando, Jesus viu um homem cego de nascença. (V. 1.) A cegueira era um castigo. Onde há castigo houve pecado (Jo 9.34). Daí a pergunta dos discípulos: se ele já nasceu cego, quem pecou? O cego ou seus pais? (V. 2.) É uma pergunta normal dos afetados ou seus pais. Procurar alguém culpado, empurrar a culpa para outrem, é natural em nós, filhos de Adão. Jesus, porém, descarta totalmente qualquer culpa. Através da PPD se manifestam as obras de Deus. Ele nos exorta que é necessário que façamos (tais) obras (…) enquanto é dia(v. 4). A cura do cego de nascença indica-nos, acho, a libertação dos sentimentos de culpa diante da crise: melhor é estar informado, conhecer causas, do que martirizar-se com culpas. A cura do cego de nascença ensina também a libertação de costumes, codificados em leis que servem apenas para consolidar a dominação.

7. O que entendemos hoje por cura?

Eu penso que a cura começa a acontecer quando, em nós, acontece o Efata, o Abre-te, primeiro em nossa mente e depois envolvendo todo nosso ser. Abre-te para um cego é quando ele aprende Braille, quando alguém bolou a bengala branca e quando o cego aprendeu a caminhar com a bengala, ou com um cachorro-guia, podendo formar-se na profissão de sua escolha e locomover-se como deseja; claro, sempre respeitadas as limitações de sua cegueira. Esta é a normalização das PPDs, legislada por primeiro na Dinamarca, nos fins dos anos 50, e agora, timidamente, chegando ao Brasil. A normalização, porém, só é possível depois que aconteceu a libertação dos grilhões que mantém as PPDs em regime de dependência.

Sim, a normalização é cura que acontece. E seria bom se acontecesse também na Igreja, sobretudo nas igrejas que cultivam (espero que não cultuem) os dons de curar (l Co 12.9). Cura para surdo é aprender a ler lábios, a poder comunicar-se através da riquíssima linguagem de sinais, abrindo-se ao mundo depois que a comunicação lhe permitiu abrir a mente. Curas são os avanços tecnológicos que permitem treinar os resquícios de audição. Curas são os aparelhos de audição crescentemente aperfeiçoados para permitir um ouvir melhor e mais nítido.

Cura para uma PPD física é aprender a se locomover com auxílio de prótese, muletas ou cadelras de rodas; ou a manusear objetos com auxílio de instrumentos que lhe substituam a mão. Da cura faz parte a invenção de tais instrumentos, cada vez mais sofisticados e úteis. Cura é a fisioterapia que treina outros músculos a fazer, mesmo que parcialmente, o trabalho que era feito pelos músculos que paralisaram.

Acontece cura quando um físico da estatura de Stephen Hawking, tetraplégico com deficiência de fala, se locomove com uma cadelra de rodas ultra-mecaniza-da, com controles elétricos, dedica seu cérebro para explorar os mais longínquos limites do conhecimento físico, abrindo picadas que serão as grandes estradas pelas quais transitará a ciêcia no próximo século.

Acontece cura quando um homem como Guenther Becker, de Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, também tetraplégico com dificuldade de linguagem, pela sua paciência e perseverança, consegue ser a centelha que deflagra o envolvimento da IECLB na causa da PPD.

Cura acontece quando pais e familiares de PPD mental juntam esforços fun¬dando APAEs, num enorme mutirão de solidariedade, proporcionando estimulação precoce a excepcionais, mesmo recém-nascidos, estimulando a educação especial, o aprofundamento de aspectos psicológicos ligados à excepcionalidade, novas técnicas de fisioterapia, o desenvolvimento da psicomotricidade.

Cura acontece quando, através da prevenção, conseguimos evitar que alguém nasça com alguma deficiência, ou se torne uma PPD. Cura acontece quando pesquisadores, depois de pacientes anos de labor, chegam a um novo medicamento ou nova vacina. Quem já assistiu a um epilético ter um ataque, ou uma ausência, pode avaliar o que, como cura, significa o remédio; há casos em que um epilético passa anos e anos sem sofrer um ataque.

Cura acontece quando todos envolvidos juntam esforços, como aconteceu antes e durante a Constituinte, para a garantia dos direitos de cidadania também das PPDs. Foi uma inesquecível experiência vivida por aqueles que tiveram a ventura de ativamente participar de tal mutirão.
Cura acontece quando profundas feridas de alma são cicatrizadas. Cura acontece quando um casal, chorando, junto ao berço do filho excepcional, consolida seu matrimónio. Um filho excepcional transforma famílias.

Acontece cura quando uma PPD consegue achar seu lugar na comunidade, tem sua profissão, consegue um emprego, casa, constitui família, estabelece seu lar, vive em paz e harmonia consigo e com o mundo, apesar das limitações de sua deficiência.

Cura acontece quando uma sociedade, depois de relutar, aceita e contrata a PPD como trabalhadora, tal como os trabalhadores que ninguém contratou e que tiveram que esperar até a última hora (Mt 20.1-16). Quando, então, finalmente, as PPDs têm oportunidade para mostrar e desenvolver seus talentos (Mt 25.14-30) — talentos geralmente inimaginados e inesperados — grande será sua alegria e seu agradecimento pela oportunidade que lhes foi dada (w. 21 e 23).,Isso não é utopia. Muitas empresas já contrataram PPDs e reservam agora, depois do primeiro experimento temeroso, vagas para PPDs, claro que para certos serviços.

Cura é quando acontece a aceitação, muitas vezes após uma longa e árdua luta no mais recôndito de nosso ser. Isso é o que se entende por normalização. E quando esta acontece, mesmo com as limitações devidas à própria deficiência, aconteceu a cura.

8. A proposta de Jesus para as PPD

Apesar de que Jesus, em geral, nos é apresentado como bondoso, tolerante e caridoso, o Jesus da Bíblia é radical. Ele veio para cumprir a lei (Mt 5.17), a lei do amor (Mt 7.12 e Mt 22.37-40), e não as leis que as pessoas fazem para garantir seus direitos adquiridos e suas estruturas de dominação. Jesus teve seus maiores confrontos com homens religiosos, pessoas que levavam sua religião a sério, mas não se davam conta da podridão (Mt 23.27) de suas posições.

Interessante é observar que Jesus nunca se confrontou com um ateu! Ao procurar homens religiosos, Jesus foi num sábado na casa de um dos principais fariseus para comer pão (Lc 14.1). Na casa deste religioso ele apresentou sua proposta para as PPDs e todas as demais pessoas discriminadas, que também são gente. Contou a parábola da grande ceia (Lc 14.15-24). Todos os convidados, gente de bem, amigos do dono da casa, desculparam-se, pois já tinham outros compromissos (w. 18-20). O Senhor suspendeu o banquete? Não! Ao contrário! Rompendo com todos os costumes e leis, mandou depressa trazer (note bem: não convidou) os pobres, os aleijados, os cegos e os coxos (v. 21), ou seja, os marginalizados, as PPD. Para encher a casa (v. 23) ainda mandou arrebanhar os que haviam ficado pelos caminhos e atalhos (v. 23), onde ficavam os excluídos, os que não podiam entrar no templo. E por fim, o Senhor obrigou todos a entrar em sua casa (v. 23).

Aqui entendo que o obrigar se deve ao fato que todos os excluídos, sobretudo PPD, tinham gravado a exclusão em suas mentes (Jr 31.33), tinham impresso as leis de exclusão em todo o seu viver, e compreensivelmente tinham medo, tal como a mulher do corrimento (Mc 5.33), de infringir as leis. Eles haviam inscrito em seus corações e em suas vidas que eles eram impuros! Havia necessidade de energia, obrigando-os a acreditar na boa fé do dono da festa. O radicalismo de Jesus é total: nenhum dos homens que foram convidados — os amigos do dono da casa, o povo escolhido por Deus, a menina dos olhos do Senhor (Dt 32.10) — provará a ceia (Lc 14.24). E isso foi contado na casa de um dos principais religiosos do lugar durante a comida e num sábado! Não há dúvidas: este Jesus tinha que sumir do mapa.

Estamos acostumados — e não só no Brasil — a que o discurso dos homens públicos é um e depois a práxis é outra! O discurso de Jesus é muito bom. O dos fariseus também era bom (Mt 23.2-3). A proposta de Jesus era convidar os excluídos a vir à casa do Senhor e participar do banquete. Em Jerusalém, a casa do Senhor era o templo. Na última semana de sua vida terrena, vieram a ele, no templo, cegos e coxos, e ele os curou (Mt 21.14). Aí os excluídos entraram no templo, e lá dentro Jesus os curou! Jesus não ficou no discurso.

Tava na cara. Este Jesus tinha que morrer!

É a proposta deste Jesus, que se compadecia das pessoas (Mc 6.34), que nos indica o que, como Igreja e como cristãos, devemos fazer diante de e com uma PPD. A proposta de Jesus é a integração da PPD, a plena participação da PPD, o nosso estar ao lado da PPD. Acho que fundamentalmente é isso que pretende o GA — Grupo de Assessoramento — à PPD. Algo como: Não sabemos bem como lidar contigo. Sabemos que és um dos pequeninos que Jesus nos recomendou (Mt 25.40,45) com muita ênfase. Sabemos que pretendemos estar ao teu lado, fazer a caminhada junto contigo. Ajuda-nos a compreender tuas necessidades especiais para que possamos ajudar-te como um cirineu (Lc 23.26), a lidar com a tua condição de ser. Compreendemos que…

… a PPD não quer caridade — quer compreensão para a sua condição especial de ser; … a PPD não quer piedade — quer atenção e atendimento para as suas necessidades especiais;

… a PPD não quer paternalismo — quer que lhe sejam dadas oportunidades de participação da qual resultará a integração;

… a PPD quer ser levada a sério como o tetraplégico Stephan Hawking é levado a sério; … a PPD quer ser respeitada como uma pessoa dotada de toda dignidade inerente a todo ser humano.

A PPD e sua família precisam da mão da Igreja, tal como Jesus precisou do cirineu para carregar sua cruz (Lc 23.26), nem que seja obrigado (Mc 15.21 e Lc 14.23) como Simão, o cirineu, o foi.

A imagem de Deus e o corpo de Cristo (l Co 12.1-31) não estão completos se neles faltarem as PPD ou os idosos, todos marginalizados e discriminados. São justamente estes, os excluídos, que completam a imagem de Deus e o corpo de Cristo.

9. O que significa, na prática, estar ao lado?

Tomar a iniciativa de ir ao encontro das PPD e de seus familiares. Eles vão se sentir muito bem. A visitação e a clínica pastoral são extraordinários instrumentos para que os afetados sintam coragem de se aproximar.

Grupos da Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas (OASE) estão aprendendo a lidar com PPD. As mulheres da OASE foram as primeiras a participar e a se envolver com o GA. Dependendo das condições e circunstâncias locais, as mulheres poderiam programar folgas para pais de excepcionais profundos, severos, ou de tetraplégicos. Será que com o tempo se poderia ousar fazer um programa de férias? Acompanhar os pais, sobretudo as mães, para que aos poucos se desliguem mais de seus filhos com deficiências. Há esta necessidade de libertação mútua. Mas, como você vai tentar isso, se não tem onde deixar seu filho durante suas horas de folga? A Juventude Evangélica (JE) está ensaiando os primeiros passos para adotar PPD, abrindo espaços para que a PPD possa participar de todos eventos da JE, inclusive acampamentos. O exemplo da JE da Região Eclesiástica 2, adotando Maria Edite Lederer, inclusive na viagem à Alemanha, constitui valioso exemplo a ser amplamente difundido dentro da Juventude Evangélica. Quanto mais cedo a adoção, mais ampla será a integração mútua entre o grupo e a PPD.

Uma preocupação de todos os setores da Igreja deve ser a derrubada de barreiras não somente arquitetônicas e não só nos templos, mas também nas escolas, creches e ancionatos. Cabe à Igreja dar o exemplo no cumprimento das disposições constitucionais.

O maior desafio para a Igreja é a construção e o gerenciamento de lares para adultos portadores de deficiência mental, órfãos ou ainda não, e com retardo dos mais variados graus. Sei bem! Como em tantos outros trabalhos diaconais da Igreja, como em tantas obras de Deus (Jo 9.3), também aqui a seara é grande, mas os trabalhadores são poucos (Mt 9.37).

10. Subsídios litúrgicos

Já sugeri realizar um culto com e por PPD. Seria ou uma primeira tentativa de aproximação ou, se esta já aconteceu, uma oportunidade para fomentar a plena participação da PPD. Durante quase vinte anos me foi concedido o privilégio de ou falar no culto, ou dirigir o culto e proferir a prédica, ou apenas coordenar a participação vde PPD. É rara a paróquia onde não haja pessoas afetadas. Se as há, convide-as, insista, chegando mesmo a obrigá-las a entrar na casa do Senhor (Lc 14.23). Se não podem fazer outra coisa, podem pelo menos ler trechos bíblicos pertinentes. Todo culto pode ser feito em torno de trechos bíblicos que tratam de PPD.

Acima comentei quatro das numerosas curas de Jesus em PPD. Cada cura pode ser tema de prédica. Assim como as PPD estão no centro do evangelho, e Jesus sempre as encontrou em todos lugares pelos quais andou, também podem as PPD vir a ser o instrumento da descentralização do one man show, eventualmente também do one woman show, que muitos de nossos cultos são. Se você tiver só uma pessoa afetada em sua paróquia, já dá para organizar um culto em torno da PPD, quem sabe com testemunhos da PPD ou de seus pais.

Quando Juliana participa num culto, ela que é PPD mental severa, ela acende as velas no começo do culto e as apaga no final. O acender e apagar as velas torna-se uma cerimônia tal como é na Igreja Episcopal: a vela torna-se parte integrante do culto, significando a luz (Jo 9.5).

Devemos confessar nosso pecado como Igreja e como pessoas. Temos compreensão para obras diaconais como creches e ancionatos. Esquecemos as PPD. Nossa IECLB esqueceu as PPD, em muitos casos, se omitiu. A urbanização da Igreja está forçando a IECLB a adentrar a problemática.

Jesus também se compadece de nós e nos perdoa, como perdoou os pecados a todas PPD (Mc 2.5,10), libertando-nos de culpa (Jo 9.2). Que Deus nos perdoe que, em nosso sofrer, não conseguimos nos abrir (Mc 8.34; Jo 9.30), enxergar e ou¬vir e entender que tudo o que nos acontece é para o nosso bem (Rm 8.28).

Nas orações, agradecer ao Senhor da seara que como Igreja e como pessoas estamos no processo de nos abrir, no processo do nosso Efatá: que a IECLB instituiu o Grupo de Assessoramento; que no Concílio, em Três de Maio, PPD foi uma presença e uma preocupação dos conciliares, assim como na Oitava Assembleia da FLM, em Curitiba, e na Sétima Assembleia do CMI, em Canberra. Procurar inspiração para a oração nos cânticos de Maria (Lc 1.46-55), ou no de Ana (l Sm 2.1-10).

Que o Senhor nos dê forças para, como cirineus, podermos trabalhar nesta se¬ara. Que encontremos tempo para visitar PPD, para conhecer o trabalho de APA-Es próximas, que ajudemos no clamor das PPD, junto com e ao lado das PPD. Que nosso envolvimento não se limite ao culto, mas que o culto seja um primeiro passo, mesmo que tímido, numa longa caminhada (Mt 5.41).

11. Bibliografia

SCHUCHARDT, E. Warum gerade ich…? — Leiden und Glaube. Offenbach, Burckhardthaus Laetere Verlag.
Proclamar Libertação. Vol. XVI, São Leopoldo, Editora Sinodal.

FEDERAÇÃO NACIONAL DAS APAES. Mensagem da APAE, julho a setembro de 1989. (Federação Nacional das APAEs. Edifício Venâncio IV. Cobertura. SDS. 70303 Brasília.)
CECA. Parceiros na luta. Informação, Formação e Experiência n° 7, julho/setembro 1990. (Caixa Postal 471, 90001 São Leopoldo.)
CONSELHO NACIONAL DA OASE. Boletim, n° 7, junho 1990.