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Prédica: 1 Pedro 4.13-19
Leituras: Atos 1.8-14 e João 17.1-11
Autor: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: 7º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 30/05/1993
Proclamar Libertação – Volume: XVIII


1. Temática

O texto em apreço, ainda não tratado nesta série de auxílios homiléticos, tem por tema central o sofrimento. Isto não em termos genéricos, mas específicos: está em pauta o sofrimento assumido pelo nome de Cristo (v. 14), respectivamente por causa da prática do bem (2.15) e da justiça (3.14). É um assunto que perpassa l Pedro do início ao fim, constituindo uma de suas peculiaridades e deixando entrever algo da situação das comunidades a que a carta se dirige.

Localizadas nas antigas províncias romanas ao sul do Mar Negro, na Ásia Menor, estas comunidades são alvo de hostilidades por parte da sociedade em que vivem. Seu credo, sua maneira de ser e de agir provocam conflitos. Embora dificilmente esteja ocorrendo uma perseguição em grande escala, aquelas pessoas cristãs, vivendo como forasteiras na dispersão (1.1), experimentam o sofrimento decorrente de sua identificação com o evangelho em meio a um mundo marcado por injustiça, corrupção e perversão. O evangelho produz reação. As forças do mal mobilizam a resistência e se jogam contra a comunidade de Jesus Cristo, uma experiência sempre confirmada no decurso da história eclesiástica.

O autor, escrevendo sob a autoridade e em nome do apóstolo Pedro, que, por razões diversas, dificilmente será o redator direto da carta, procura fortalecer as comunidades e trazer-lhes consolo nas aflições. Amplas partes da carta, redigida em Roma (cf. 5.13 — Babilônia é pseudónimo da capital romana), têm caráter parenético. É digno de nota que a exortação se empenha em que seja evitado o êxodo cristão das instituições sociais. A comunidade cristã é chamada a viver a fé inserida no mundo (cf. 5.9), não à parte dele. Isto, porém, acarreta sofrimento e cruz. Por estas razões, L. Goppelt conclui acertadamente: A teologia do sofrimento da l Pe refere-se expressamente ao sofrimento que tem por modelo Daniel e não Jó (Teol., p. 437).

l Pedro pertence aos escritos de maior profundidade teológica no Novo Testamento. Apresenta fortes afinidades com a teologia de Paulo. A temática, dizendo respeito à relação entre a comunidade cristã e a sociedade, bem como aos conflitos daí resultantes, confere à carta relevância aguda no contexto brasileiro.

2. Texto

Quanto à perícope em si, anotamos que ela se reporta a passagens anteriores (cf. 1.6; 2.20s.; 3.13s.; etc.). O tema do sofrimento, a essas alturas da carta, já não é novo, e há uma visível cesura entre 4.11 e 4.12. Mas a cesura não é ruptura. O trecho 4.12-19 se integra organicamente no todo. Não se trata de um adendo nem de uma repetição. O trecho mostra, muito antes, o quanto a opressão vivida pela comunidade preocupa o autor. É porque ele trata do assunto mais uma vez, sintetizando e acrescentando novos aspectos. Estrutura e conteúdo se resumem como segue:

V. 12: Embora seja como um fogo violento e submeta à dura provação, o sofrimento não é estranho à comunidade cristã. Não há por que se apavorar.

V. 13: Pelo contrário, há motivos para a alegria. Pois o sofrimento coloca na comunhão com Cristo. Quem agora participa do sofrimento de Cristo há de participar também da sua glória.

V. 14: Por isto, bem-aventurado é quem pelo nome de Cristo for injuriado. O Espírito Santo repousa sobre aquela pessoa.
Vv. 15-16: Naturalmente, a bem-aventurança é válida apenas em caso de sofrimento não-culposo. A pessoa cristã não deve misturar-se aos criminosos. Se, porém, o sofrimento decorre da conduta cristã, não há como dele se envergonhar. É oportunidade para glorificar a Deus através do nome cristão.

V. 17a: Esses sofrimentos já fazem parte do juízo final, que começa pela própria casa, a comunidade de Deus. Algo da consumação escatológica, pois, se anuncia. O sofrimento é visto como parte do castigo merecido também pelos cristãos, ainda que tenham a firme esperança de serem resgatados.

Vv. 17b-8: O juízo há de atingir também os ímpios e será incomparavelmente mais duro. Poderá haver salvação para eles? É digno de nota que a pergunta permanece aberta.

V. 19: Concluindo, o texto encoraja quem deve aguentar sofrimento para que confie sua vida ao Deus Criador e persista na prática do bem. Deus não vai permitir que sucumba quem nele confia.

3. Contexto

O contexto brasileiro é diferente daquele da Ásia Menor no primeiro século. Entre nós, o cristianismo goza de certa aceitação. Somos um país cristão. É o que se ouve. Ainda assim, jamais houve no Brasil tantos mártires em nome de Cristo como neste século e nos últimos decénios. O testemunho cristão e a prática da justiça continuam a provocar conflitos e acarretam sofrimento.

Isto nem sempre está em evidência e há que se tomar cuidados: autenticidade cristã provoca sofrimento, mas sofrimento como tal não comprova necessariamente autenticidade. Não há nenhum motivo para buscar o sofrimento, como se por ele pudéssemos nos justificar. A fé cristã não é masoquista. Teme o sofrimento qual queimada devastadora (v. 12). A preferência pelo papel de vítima é tentação a ser evitada.

A despeito disso, a fé é capaz de assumir sofrimento. São várias as razões. Uma consiste na convicção de Deus ser maior do que o mal. Há de conceder forças para superar (v. 19). Aliás, de certa forma, o sofrimento é natural. Tem algo a ver com o nosso pecado. É juízo (v. 17). Sofremos em razão de nossas próprias burradas e maldades. É um alerta oportuno. Sempre sofremos na qualidade de pecadores, jamais na de justos, cabendo-nos, por isso, a humildade. Ainda assim, recomenda-se cuidado no manejo deste aspecto. Pois não compete a nós o julgamento. Somente Deus vai revelar o quanto nosso sofrimento tem sido merecido. Enquanto isso, é verdade também que muito sofrimento não tem a sua raiz em culpa própria, mas sim nos crimes do mundo, da sociedade, de pessoas alheias.

Para tanto, é fundamental o recurso a Jesus Cristo, que não buscou o sofrimento, mas dele também não fugiu. A causa de sua cruz foi o incondicional amor a Deus e à criatura. Jesus amou a verdade e a vida. Quem ama assim se dispõe a sofrer. Atrai sobre si a fúria do pecado e se expõe ao ataque de quem se vê ferido em seus interesses egoístas. E todos sobre os quais repousa este mesmo Espírito vão fazer experiência igual (v. 14). Tornar-se-ão co-participantes dos sofrimentos de Jesus. Da mesma forma, porém, vão experimentar a alegria, já agora e no futuro, quando Deus há de revelar a sua glória e o mal estiver vencido.

Existência cristã, pois, contém um elemento escandaloso. Caracteriza-se pela inconformidade com o mal e pelo compromisso com os direitos de Deus. Defende o bem, insiste na justiça, coloca-se ao lado dos roubados por ganância e prepotência. O escândalo cristão, como podemos chamá-lo, é manifestado legitimamente por ambos, o discurso e a prática alternativa, devendo-se cuidar da coerência.

Faz parte da estratégia do mal qualificar o escândalo cristão como atentado à sociedade. Cristãos perseguidos costumam ser enquadrados na categoria de criminosos comuns. Tanto mais importante é que os próprios cristãos tenham clara consciência da diferença (vv. 15-16). Importa-lhes o permanente exame de sua atuação, a fim de que a boa intenção não redunde em ação injusta e condenável. Da mesma forma, porém, importa examinar se o sal da fé não se tornou insípido (Mt 5.13). Somos ainda o que como discípulos de Jesus devemos ser?

Quanto maior o mal, tanto maiores serão os sofrimentos de Cristo. São provocados pela fé, que se recusa a adorar os ídolos da época e confia em Deus somente, pelo amor que atenta às vítimas de assaltos de toda espécie, pela esperança que resiste às seduções e se apega à promessa divina. Desse tipo de escândalo o mundo tem necessidade para sua sobrevivência e salvação. É um escândalo que não destrói, mas tem a paz e o bem-estar por fruto. Por isso, sofrimento decorrente de tal postura recebe a bem-aventurança (v. 14).

4. Prédica

Sugiro que a prédica tematize a dificuldade de ser cristão no dia-a-dia (profissional e social de nosso país. Ë frequente ouvir-se dizer que os princípios cristãos devem ser esquecidos, quando se quer sobreviver no comércio, na política, na agricultura, nos relacionamentos sociais. As leis aí são outras, e escrúpulos morais produzem prejuízo. Quem se propõe a remar contra a correnteza, a opor-se às mentalidades propagadas pelos meios de comunicação e a questionar os valores em voga arrisca sofrimento, bem assim como no primeiro século.

O pregador e a pregadora fazem bem em levar essas dificuldades muito a sério. Não têm o direito de simplesmente serrar de cima, castigando a ausência de comprometimento cristão. Em muitos sentidos, pastores estão em situação privilegiada, quando a comparamos com a de membros leigos. Proponho que, antes da elaboração da prédica, sejam consultados alguns membros de diferentes categorias profissionais a esse respeito.

Ainda assim, o objetivo da prédica deveria consistir em fortalecer a resistência contra o mal. Não como uma lei, nem com exigências máximas, mas como chance a partir do evangelho. É um privilégio saber defender o bem contra o mal, a fé contra a descrença e a superstição, a justiça contra o crime, o amor contra a ação desumana. E temos muita necessidade disso. Para sair do fundo do poço a sociedade brasileira, precisa urgentemente de pessoas comprometidas com a verdade e a vida. Ao colocar em pauta o tema do sofrimento cristão, a prédica evidentemente não pode calar a respeito de Jesus Cristo e sua cruz. Pode (e deve) abordar, também, outros aspectos do texto, conforme exposto acima. De qualquer maneira, a preocupação deve ser pastoral, assim como a vemos no autor de l Pedro. Trata-se de encorajar a comunidade a cumprir a sua missão na sociedade e assumir o sofrimento que nisso está implícito. Este sofrimento tem promessa.

5. Subsídios litúrgicos

1. Confissão de pecados: Senhor! Ao comparecermos diante de ti, somos lembrados dos nossos pecados. Nem sempre falamos o que devíamos falar. Nem sempre agimos conforme a tua vontade. Temos sido omissos, coniventes com a injustça, ficamos devendo o amor aos nossos irmãos e irmãs. Perdoa-nos as fraquezas, ajuda-nos a corrigirmos os nossos erros, aceita-nos, apesar das nossas falhas. Invocamos a tua misericórdia. Queiras fazer-nos fortes na fé, no amor e na esperança. Tem compaixão de nós, Senhor!

2. Oração de coleta: Senhor, tu nos envias com o teu evangelho às pessoas. Nós te agradecemos por missão tão nobre. Dá que sejamos boas testemunhas, capazes de inclusive sofrer por causa de teu nome. Mostra-nos as pessoas a nosso lado para que não as atropelemos e, sim, lhes sejamos uma bênção. Dá-nos a graça de realmente sermos sal da terra e luz do mundo. Amém.

3. Intercessão: Na oração final, cabe lembrar, em especial, as pessoas que vivem sem rumo, para que encontrem a luz do evangelho, as pessoas que choram, para que sejam consoladas, as pessoas que têm fome e sede, para que sejam supridas as suas necessidades, as pessoas que vivem em angústia, para que sejam fortalecidas pela fé e esperança. Intercedemos também pela Igreja de Jesus Cristo, para que divulgue a palavra de Deus e seja sinal visível do Reino, por todas as pessoas que carregam responsabilidade especial, para que se empenhem pela paz e pela justiça, por este pobre mundo, ameaçado em sua existência, para que encontre o caminho da salvação.

6. Bibliografia

GERSTENBERGER, E. SCHRAGE, W. Por que sofrer? Ed. Sinodal, São Leopoldo, 1979
GOPPELT, L. Teologia do Novo Testamento. Vol. II, Ed. Sinodal/Vozes, São Leopoldo/ Petrópolis, 1982, pp. 426 s.
GOPPELT, L. Der erste Petrusbrief. KEK XII/1, Göttingen, 1978, 8a ed.

SCHRAGE, W. Der erste Petrusbrief. In: NTD 10, Gõttingen, 1973, 11. ed., p. 59 s.