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Prédica: João 15.9-17
Leituras: Atos 2.4-10 e 1 João 4.1-11
Autor: Nestor Paulo Friedrich
Data Litúrgica: 6º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 18/05/1994
Proclamar Libertação – Volume: XIX
Tema: Páscoa

 

1. Introdução

O capítulo 15 do Evangelho de João tem como pano de fundo a expulsão da sinagoga. Esse tema tem um lugar de destaque naquele Evangelho. Historicamente essa expulsão aconteceu entre os anos 80 e 94 d.C., por ocasião do concílio do judaísmo, dirigido pelos fariseus, em Jamnia, sob a direção de Gamaliel II. A academia de Jamnia ocuparia o lugar que antes era do sinédrio. Naquela ocasião, o sinédrio de Jamnia acrescentou às 18 bênçãos, oração oficial de cada dia, uma maldição contra os hereges cristãos, que afirmavam que Jesus Cristo era o messias. A repercussão dessa decisão foi terrível para os cristãos. Paulatinamente, eles foram expulsos de todas as sinagogas em todos os países. A partir do momento em que o cristão era expulso da sinagoga, tornava-se ilegal, podia ser denunciado e preso. Até então os cristãos viviam sob o guarda-chuva dos judeus. Quando eram expulsos, perdiam o estatuto de judeus. Tornavam-se indivíduos isolados, obrigados a aceitar as leis do império romano, sem os privilégios dos judeus. Podiam ser mortos (16.2), sem receber apoio das autoridades (Comblin, p. 3).

João reagiu e combateu a sinagoga. Combateu igualmente os cristãos que preferiam ser fiéis ao judaísmo, desistindo de ser cristãos (5.41-45; 6.66; 8.31 s , 9.40-41). Condenou também aqueles que queriam esconder sua condição de cristãos (12.42-43).

Conforme Paulo Garcia, a comunidade de João está vivendo numa situação muito adversa. Estando fora da pátria, os judeus de João têm sua identidade como povo através da herança judaica. E essa, nesse momento, passa por dentro da sinagoga. É fundamental estar dentro da sinagoga. Só que na sinagoga se diz: Quem professa a Jesus como o Cristo será expulso! (João 9.22 — Garcia, p. 28)

Medo dos judeus e preocupação são características da comunidade de João (9.20-23). Outro aspecto fundamental relacionado à expulsão da sinagoga é que essa impossibilita o acesso ao comércio. Klaus Wengst afirma que

para haver uma preocupação tão grande com a expulsão da sinagoga é porque os fariseus mantinham um controle sobre a cidade. De tal modo que o acesso ao comércio e, portanto, a sobrevivência passavam por debaixo do seu poder. Ser expulso da sinagoga não era apenas questão de tradição, mas era sobretudo o acesso às questões mais essenciais da vida (Garcia, p. 29).

A tentação certamente deve ter sido enorme; afinal, era mais fácil renegar a fé cristã e ficar na sinagoga e, dessa forma, viabilizar a vida do que viver a aventura da fé cristã com todos os seus riscos.

Esse teor conflitivo que encontramos no capítulo 15 de João perpassa todo o Evangelho. João se caracteriza pelo teor exclusivo e conflitante. Temos, por exemplo, as palavras do EGO EIMI, eu sou (6.35; 8.12; 10.11,14; 11.25; 14.6; 15.1,5), que desmascaram os falsos líderes. Há também as alternativas entre fé x mundo (1.9ss.), comportamento celeste x terrestre (3.31ss.; 8.42ss.), que se excluem (Schoenborn, p. 151).

Da pesquisa crítica sabemos que, atrás do Evangelho, como existe hoje, devemos pressupor uma comunidade muito dedicada e radical nas suas convicções teológicas. A 'base escrita' desse grupo relatou os sinais e os discursos de Jesus de Nazaré como manifestação de seu senhorio. Foi destacada também a presença completa da salvação por meio da fé e a relevância exclusiva da palavra. Conseqüentemente, não se pensou em sacramentos ou instituição eclesiástica. Também não se preocupou com a historicidade de Jesus. Ele era sempre exaltado, a saber, 'de onde veio' era idêntico a 'para onde ele irá', de maneira que o Exaltado aparentemente suplantou o Crucificado. Na vivência de sua fé, o grupo adotou estruturas e metáforas gnósticas para descrever e explicar o fundamento de sua fé. Acharam menos importante uma justificação de sua fé perante o mundo (Schoenborn, p. 151).

Não há, portanto, em João, uma igreja-instituição, com estrutura. Não há ministérios constituídos. Ao contrário da estrutura judaica, a comunidade não precisa de doutores. Ela só tem um Mestre. Ela não precisa de dominadores: tem o Espírito Santo. O Espírito Santo será reconhecido nos profetas, nas testemunhas, nos mártires. Os profetas é que irão impulsionar as comunidades joaninas. A questão fundamental, contudo, é a seguinte: É possível subsistir como comunidade por muito tempo dessa forma? As comunidades joaninas desapareceram. Depois do século II não existiram mais (Livro da Comunidade, pp. 15-16).

 

2. Texto

Carlos Mesters faz um interessante esquema sobre o capítulo 15.1-17.

(Veja quadro anexo.)

Os vv.1-6 correspondem à parábola da videira. Os judeus expulsam. Os cristãos respondem que Deus os está cortando da vinha. A vinha é referência por demais conhecida de todos os judeus (Is 5). Até agora, a vinha era Israel. Agora Jesus é a vinha. A ruptura é total. Israel deixou de ser a vinha. A comunidade exclui os que não estão firmes. Não pode haver cristão clandestino. O permanecer em Jesus deve ser testemunhado abertamente, como o cego de Jo 9.35-38. Permanecer é a palavra que mais aparece neste capítulo. Os vv. 18-25 retomam, de forma bastante clara, o conflito com a sinagoga.

Se os vv. 1-6 são uma formulação teórica da relação dos cristãos com Jesus, os vv. 9-17 são a tradução prática dessa teoria. Os vv. 9-17 são orientação para a comunidade dos amigos de Jesus. Ela é a comunidade dos que permanecem fiéis, apesar da perseguição. Conforme Carlos Mesters,

há um paralelismo entre os vv. 7-10 e 14-17, como se fossem duas vertentes de uma cordilheira formada pelos versículos 11, 12 e 13, onde se fala de alegria e amor. No paralelismo: 7-10 e 14-17, alguns temas são comuns: oração, fruto, discípulo, amor do Pai, amor de Jesus. Jesus ocupa o centro, apoiado sobre os dois eixos de serviço e de partilha. Tudo circunscrito pela PALAVRA, em círculo, na linha divisória entre a comunidade e o mundo, de onde partem algumas setas: Judaísmo, Batistas, Essênios, Gnósticos, Gregos (Livro da Comunidade, pp.14-15).

A comunidade dos amigos de Jesus poderia ser caracterizada da seguinte forma:

1) Crê no amor de Deus. É o agir de Deus, sua iniciativa em relação ao mundo que move, transforma, dá impulsos. Jo 3.16 é claro nesse sentido: Deus amou ao mundo de tal maneira que… Deus é fonte de amor. Amor é provocado. Da mesma forma, não basta apenas querer amar. Importa crer no amor de Deus. Se queremos ter uma ideia do que é amor, devemos olhar para o agir de Deus em Cristo.

2) O amor se traduz em novas relações. Se no Império Romano há senhores e escravos, patrão e empregado, na comunidade a relação entre as pessoas dar-se á na base da amizade e igualdade. Chamei vocês não de servos, mas de amigos (v. l5).

3) A comunidade tem consciência de sua eleição (v. 16). Ela é o novo povo eleito. É consequência do amor de Deus, que busca e quer salvar.

4) A fé, o permanecer no amor de Deus se traduz em frutos. Ao contrário dos gnósticos, que dão primazia ao conhecimento de Deus, fé se traduz numa prática que tem por alvo o irmão na fé, o amigo.

5) Fé não é pensamento positivo, é guardar os mandamentos, é obedecei ao mandamento do amor (v. 17). É discipulado em meio a uma realidade hostil ao evangelho, ao novo mandamento (13.34).

 

3. Meditação

Em sua introdução sobre o Evangelho de João, Brakemeier escreve que esse Evangelho compromete a pregação cristã de articular, ao lado da esperança, a realidade da nova vida que, com Jesus, despontou em meio a um mundo cheio de trevas e dor. O que mudou desde que Jesus nasceu? (Brakemeier, p. 15.) Afinal, como viabilizar a nova vida que brota da fé que nasce do amor que Deus tem pelos homens numa realidade marcada por individualismo, superficialidade e irresponsabilidade? Em qualquer grupo de estudo onde esse texto aparecer, ninguém dirá que devemos amar menos. Ao contrário, todos dirão que é preciso amar, que isso é importante. O problema é que vivemos um amor platônico, intimista, aéreo. Ele não se concretiza. A. princípio não somos contra o amor; pelo contrário. Mas por que então não o vivemos de forma mais plena? Não reside nesse fato uma das razões de tantas carências no mundo? O texto de Jo 15.9-17 mostra que é impossível falar ou viver o amor sem que haja um alvo desse amor.

Outro aspecto importante nessa perspectiva levanta Paulo Garcia, quando esse diz que

“um esforço necessário para lermos o NT, de modo que fale mais a nossa realidade, a nossa vida, é procurar ler a partir da chave do MOVIMENTO. O movimento de Jesus, a influência que seus ensinamentos provocaram na comunidade foi tal, que as pessoas, homens, mulheres, acreditaram em seu projeto, vivenciaram-no e formaram a comunidade de fé, refletindo suas palavras, seus atos durante muito tempo. As igrejas pregam sobre Jesus, mas não sobre o projeto do Reino. É mais fácil para a Igreja anunciar um modelo, a figura de Cristo, que é mais doméstica, do que falar em projeto, porque projeto incomoda (Garcia, pp. 32-33).

Já escutei o seguinte em relação ao trabalho pastoral: Quando o pastor tem uma proposta/projeto de trabalho, uma proposta que envolve membros da comunidade, que busca refletir a caminhada da comunidade e, principalmente, que busca uma maior inserção na sociedade, sempre dá conflitos. Proposta/projeto de trabalho pressupõe quebra de determinados esquemas, já introjetados na comunidade. Nessa mesma perspectiva, conversando com uma colega pastora, percebemos o quanto exige, em termos de trabalho e tempo, a articulação de uma proposta pastoral que envolva, instrumentalize os membros para uma efetiva participação. Projeto tem o seu preço. Além disso, não dá para esquecer da dificuldade em se ter claro perspectivas, prioridades. Afinal, que caminho trilhar, onde atacar primeiro? Há quanto tempo se fala em missão e até agora não há nada definido?

4. Sugestão para a pregação

Os cristãos da comunidade de João eram pessoas inseridas em um contexto bem específico. Dentro dele, com suas falhas e limitações, eles tentaram articular sua fé em Deus. Isso se mostrou na postura radical da fé que viveram.

Em todos os grupos onde estudamos o texto sempre lemos todo o capítulo 15, mais os primeiros quatro versículos do capítulo 16. Isso deu uma boa ideia da realidade e dos conflitos existentes nas comunidades joaninas. É importante sempre lembrar que os primeiros cristãos eram pessoas que viveram em meio a uma realidade com problemas, conflitos, como também nós os vivemos hoje.

Num segundo momento, detemo-nos em caracterizar a comunidade joanina (veja observações sobre o texto). Enfatizamos que a maior tarefa é o amor, que esse sempre se traduz em gestos concretos. O maior exemplo disso está no agir de Deus por intermédio de Jesus Cristo.

No terceiro momento, procuramos caracterizar nossas comunidades, nossos projetos, planos, alvos. Perguntávamos a nós mesmos sobre os conflitos em nosso meio. Alguém disse que, hoje, a Igreja não precisa de inimigos. As maiores contra-testemunhas estão dentro da própria Igreja. Outra pessoa perguntou: Se nós olhássemos o livro de atas das reuniões do presbitério, será que iríamos encontrar ali uma proposta de trabalho, um planejamento de atividades, ou apenas a preocupação orçamentária? Outra questão: Nossos presbitérios não se parecem com imperadores que pensam poder fazer o que bem entendem? Como fica a proposta do texto? Como são as relações entre as pessoas em nossas comunidades?

E, por fim, outra questão fundamental: Até que ponto a nossa prática, nossa fé no amor de Deus nos impulsiona a participarmos dos movimentos que acontecem fora dos muros da comunidade? Qual a influência que os ensinamentos de Jesus provocam em minha vida e na vida da comunidade? Não é mais fácil renegar a fé e viabilizar a vida do que viver os riscos e desafios da fé cristã? Até onde arriscamos? Como enfrentar o mundo e insegurança dentro desse mundo? A comunidade joanina buscou enfrentar essa realidade, reforçando a unidade da comunidade. E a Igreja hoje?

5. Bibliografia

– GARCIA, Paulo Roberto. Uma porta de entrada — leitura comunitária de João 9, in: Introdução à Leitura da Bíblia — Mosaicos da Bíblia — 9— CEDI. São Paulo, 1992.
– BRAKEMEIER, Gottfried. Observações introdutórias referentes ao Evangelho de João, in: Proclamar Libertação. V. 8, São Leopoldo, Editora Sinodal, 1982.
– O Livro da Comunidade — João 13-17. Vários autores. CEBI, Belo Horizonte.
– COMBLIN, José. Evangelho de João — Epístolas. Polígrafo, CEBI.
– SCHOENBORN, Ulrich. Fé entre História e Experiência. São Leopoldo, Editora Sinodal, 1982.