Prédica: Lucas 17.11-19
Leituras: Rute 1.1-19a e 2 Timóteo 1.3-8 (9-12) 13-14
Autor: Kjell Nordstokke
Data Litúrgica: 21º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação:29/10/1995
Proclamar Libertação – Volume: XX
A cura de dez leprosos
1. O tema do texto no seu contexto redacional
No trecho anterior os discípulos pedem a Jesus que lhes aumente a fé (v. 5). O evangelista apresenta dois momentos de resposta a este pedido: primeiro, pelo discurso de Jesus sobre os servos que só fazem o que são obrigados a fazer, e por isso não merecem elogio por sua fé (vv. 7-10); segundo, pelo relato da cura dos leprosos, em que aquele que voltou para agradecer é colocado como modelo de fé. Neste contexto fé é expressa como gratidão. A fé não se manifesta em primeiro lugar na grandeza (cf. o grão de mostarda, v. 6), ou na capacidade de trabalhar o dia inteiro (cf. somos servos inúteis, v. 10), mas na gratidão pela experiência da graça misericordiosa de Deus. Nesta compreensão de fé, o samaritano que foi curado da lepra é um exemplo.
2. O texto
Esta narrativa encontramos apenas em Lucas. O texto faz lembrar a cura de Naamã (2 Rs 5.1-19) e o relato de Mc 1.40-45. Isto, porém, não basta para negar a historicidade da narrativa, como pensam alguns estudiosos (Bultmann, p. ex.), pois contém características que não indicam uma dependência literária dos textos mencionados.
Os leprosos eram os marginalizados dos marginalizados. Além do sofrimento físico, sofriam também exclusão social por causa do medo que essa doença gerava (Lv 13.45-46). Acrescia-se a isso o sofrimento espiritual, pois, conforme a tradição judaica, a lepra era considerada um castigo de Deus (Dt 28.27).
Observamos (v. 13) que os leprosos, em vez de clamar: Imundo, imundo! — assim a lei os obrigava a gritar para alertar pessoas que se aproximavam — logo clamam por misericórdia. Evidentemente já tinham ouvido falar de Jesus, vendo no encontro com ele um grande momento de esperança. Chamam Jesus de Mestre, uma expressão que só é usada pelos discípulos, principalmente Simão Pedro (cf., p. ex., 5.5). É expressão da esperança que a fama de Jesus criara.
Jesus limita a sua reação a exortá-los a ir e apresentar-se aos sacerdotes, assim como exigia a lei judaica no caso de cura da lepra (Lv 14). O texto indica que foram imediatamente, não registrando nenhuma dúvida por parte dos leprosos ou pelo menos um sinal iniciador de cura antes de irem. Enquanto Naamã manifestou irritação perante tal prova de fé, os dez aparentemente passam facilmente por ela. Só que a verdadeira prova de fé vem depois, na hora de descobrir que estão curados. Neste momento só um volta a Jesus para dar glória a Deus (v. 15).
Dar glória a Deus é a expressão mais elementar da fé. Esta fé sabe que só Deus pode restabelecer a vida esmagada por doença, vergonha e exclusão. Sem essa expressão a cura é limitada à dimensão imediata, onde ela, em qualquer instância, pode ser novamente perdida.
A esse Jesus disse: Levanta-te, e vai; a tua fé te salvou.
3. Reflexão rumo à prédica
Os leprosos encarnam a palavra de Jesus: Os sãos não precisam de médico, e, sim, os doentes (Mt 9.12). Também hoje vemos que doenças levam à marginalização económica, social e até religiosa. Há uma forte tendência também nas religiões brasileiras, principalmente no espiritismo, de ligar doença ao castigo de Deus ou à culpa acumulada de encarnações anteriores. Assim novo sofrimento é adicionado ao primeiro.
A pregação tem o dever de contradizer essa compreensão. O evangelho fala dos doentes como grupo privilegiado na atuação de Jesus. A sua libertação é marca de identidade no novo Reino, assim como Jesus mesmo mandou dizer a João: Os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres está sendo pregado o evange¬lho (Mt 11.5).
O grito dos leprosos: Jesus, Mestre, compadece-te de nós, lembra outros gritos semelhantes nos textos bíblicos. A esperança cristã alimenta-se das narra¬tivas bíblicas que transmitem uma imagem de Deus que escuta o clamor do seu povo. Por esta razão há em nossos cultos um momento quando a comunidade canta Kyrie eleison. Esta parte da liturgia não é somente uma reminiscência da época em que se falava grego na igreja, mas é o momento em que a comunidade em sua comunicação com Deus dá espaço aos marginalizados e a seu grito por misericórdia. Não se trata de sacralização de um grito, mas da contextualização do culto no mundo e na realidade em que a comunidade vive.
Há um outro momento de contextualização quando Jesus disse aos leprosos que deviam ir e mostrar-se aos sacerdotes. Assim ele leva a sério toda a realidade sócio-religiosa em que um doente sofre. Neste caso, quando o assunto é a reintegração de marginalizados, Jesus aceita a autoridade dos sacerdotes. Em outros casos ele questiona abertamente a maneira em que essa autoridade é exercida. Em todos os casos a ótica dos marginalizados é a determinante, e liça sempre claro que uma transformação não pode manifestar-se só num setor da realidade. Para ser uma transformação verdadeira, ela deve acontecer em todas as esferas.
O ponto mais provocador do texto encontramos no fato de que só uni desses dez, e exatamente um samaritano, voltou para agradecer e louvar a Deus. A religião dos samaritanos era um escândalo para os judeus, pois representava uma mistura da tradição mosaica com elementos pagãos. Mesmo assim, foi o homem dessa religiosidade que achou motivos para agradecer a Jesus.
Provocação semelhante temos na parábola do bom samaritano (10.25-37). Neste texto um samaritano é apresentado como o melhor intérprete da lei, pois soube usar de misericórdia para com o homem caído na beira da estrada. Jesus recomenda ao escriba seguir o exemplo do semipagão!
Temos aqui uma tradição antijudaica, que quer mostrar a falta de fé e gratidão dos judeus perante as palavras e milagres de Jesus? Ou estamos perante a proclamação da periferia — da margem social e religiosa — como lugar privilegiado na obra libertadora de Jesus? No ato de curar o samaritano leproso, vítima de multiforme marginalização, Jesus revela que o que ele traz é um Reino de misericórdia e graça. Não só restaura o ser humano no seu sofrimento físico e sócio-econômico, mas ordena-o para ser parte do povo de Deus, um povo que vive da graça e na gratidão, e por isso antes de tudo dá glória a Deus.
É essa nova realidade de fé e gratidão que o samaritano curado exemplifica.
4. A prédica
Muitos pregadores usam este texto para falar em termos gerais sobre a gratidão como virtude antropológica e cristã. Pregando assim corre-se o risco de fazer um discurso reacionário sobre a falta de gratidão que existe na comunidade e na sociedade.
A prédica não pode ignorar que o texto fala sobre a cura de leprosos e que aquele que voltou era samaritano. Não se trata da gratidão dos ricos e sadios, mas daquele que, por meio da ação libertadora de Jesus, foi salvo e ordenado pessoa de fé. Devemos respeitar este foco primário, e não logo roubar o texto daqueles que são os atores nele. E devemos perguntar: quem são os leprosos hoje? Qual é o espaço que nossa comunidade dá a eles? Quais são os sinais de cura, integração e ordenação?
A prédica deve transmitir a radicalidade da boa nova do evangelho. As não-pessoas são transformadas em cidadãos, e o mais despido de todos eles, o samaritano, é ordenado homem de fé, cheio de louvor a Deus. Nesta visão do Reino o centro de atuação é a periferia. É essa nova realidade que motiva a comunidade tanto a gritar Kyrie eleison como a cantar Glória a Deus.