Prédica: Isaías 5.1-7
Leituras: Filipenses 3.12-21 e Mateus 21.33-43
Autor: Nelson Kilpp
Data Litúrgica: 20º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 13/10/1996
Proclamar Libertação – Volume XXI
1. O Tema do Domingo
O tema do domingo gira em torno da vinha. Uma olhada numa chave bíblica ou numa concordância mostrará que a vinha presta-se a um amplo e variado simbolismo. A propriedade de uma vinha pode representar vida realizada e bem-estar (Is 65.21; Jr 31.5). A vinha está vinculada à produção do vinho, a bebida que alegra o coração humano (Sl 104.15). Ela pode também ser metáfora para a mulher amada (Ct 1.6). Muitas vezes simboliza o povo de Israel, como em Is 5.7 (cf. também Ir 2.21; Ez 15.1-8). O Evangelho deste domingo identifica a vinha com o reino de Deus (Mt 21.43). Nas leituras do Antigo Testamento e do Evangelho a história da vinha é imagem para a história de Deus com seu povo. Essa história está marcada pelo amor divino e pela falta, por parte do povo, de uma resposta adequada a esse amor. Essa história termina em juízo.
Que associações temos hoje com a vinha? Sem dúvida, é muito bonito observar os grandes parreirais nas encostas dos morros nas regiões de colonização italiana do Rio Grande do Sul. Além de sua importância econômica para essas regiões, a vinha parece também ter marcado bastante a cultura desse povo. Ela chega a ter um significado ideológico ou teológico?
O Evangelho conta a parábola dos lavradores maus que arrendaram uma vinha de um proprietário que viajou. Por ocasião da colheita da uva, eles não deram ao dono a parte da colheita que lhe cabia. Ao contrário, espancaram e mataram os mensageiros e, por fim, até o próprio filho do dono e herdeiro da vinha. A parábola tem traços alegóricos: Deus é o proprietário que plantou a vinha; os sumos sacerdotes e os fariseus são os arrendatários ou, então, os seus representantes (Mt 21.43,45); os dois grupos de servos podem designar os profetas pré-exílicos e pós-exílicos de Israel; o filho, finalmente, é Jesus, que sofreu o mesmo destino dos profetas, o martírio. Por isso, o dono da vinha trará o juízo, que consistirá, na versão de Mateus, em tirar o reino de Deus da liderança de Israel, para dá-lo a outro povo.
O texto de Is 5 foi escolhido como leitura porque Is 5.1-2 é citado no Evangelho (Mt 21.33 / Mc 12.1). O Evangelho de Tomé ainda não contém a citação do Antigo Testamento. Isso mostra que a vinculação das duas parábolas é produto da teologia da comunidade cristã. A comunidade cristã entende que, apesar da atuação amorosa de Deus, a liderança israelita não só não produziu os frutos esperados, como também rejeitou os profetas e o próprio Messias.
Estes dois textos podem levar a comunidade cristã à soberba: Deus abandona o povo de Israel e concede seu reino à Igreja cristã. A Igreja é o novo povo de Deus. A Epístola, Fp 3.12-21, deveria ter a função de prevenir a presunção arrogante da comunidade cristã. Na carta, o apóstolo afirma que ainda não alcançou a perfeição e adverte a comunidade diante dos inimigos da cruz de Cristo, cujo deus é o ventre. A Epístola aponta, portanto, tanto para a presente imperfeição da comunidade cristã quanto para a impossibilidade de chegar à salvação por outros meios que não pelo caminho da cruz de Cristo. (O lecionário católico é um pouco diferente, pois prevê a leitura da perícope seguinte, a saber, Fp 4.6-9.)
Na história litúrgica o tema dos maus vinhateiros aparece também em outro lugar do ano eclesiástico. A série de perícopes das igrejas luteranas alemãs prescreve Mc 12.1-12 — texto paralelo a Mt 21.33-43 — e Is 5.1-7 para o Segundo Domingo da Quaresma (Reminiscere). Sublinham-se, neste contexto, a rejeição e morte injusta de Cristo, o Filho de Deus e herdeiro do Reino. A localização dos mesmos textos no fim do ano da Igreja, por outro lado, acentua o aspecto do juízo de Deus sobre as suas vinhas de ontem e de hoje.
2. O Texto
O texto bíblico não contém grandes dificuldades linguísticas, mas apresenta alguns outros problemas de compreensão. Logo no início, o/a leitor/a pode ter alguma dificuldade de identificar os personagens. De acordo com o fluxo do texto, a pessoa que se dirige aos ouvintes, no início, é o profeta. O amigo ou amado, a quem pertence a vinha, só pode ser identificado com Deus. Essa intimidade entre o profeta e Deus é, no mínimo, estranha, senão escandalosa. Tenta-se entender esse estranho relacionamento com o auxílio da figura do amigo do noivo (cf. Jo 3.29). A vinha simboliza a mulher amada; o dono da vinha, o seu noivo. O profeta seria o amigo do noivo que representa os interesses do noivo junto à família da noiva antes do casamento. Daí a estranha expressão meu amigo, meu amado.
Com isto já se abordou o segundo problema. A parábola tem três níveis de significado — o que pode deixar o/a leitor/a incauto/a um tanto confuso/a. Num primeiro nível, temos um canto a respeito de uma vinha na qual um vinhateiro investiu bastante, sem, no entanto, obter qualquer retorno. Mas por que Isaías iria cantar uma história tão prosaica? O segundo nível se dá com a ambiguidade do termo vinha, que pode também significar noiva, mulher amada. Neste nível o canto torna-se queixa de uni noivo enganado, que está prestes a romper o noivado (por causa da infidelidade da noiva?). Por fim, a parábola trata da relação entre Deus e seu povo. O canto que parece ser uma divertida trova para agradar os ouvintes leva os mesmos a participarem de seu próprio julgamento (cf. a parábola de Nata, em 2 Sm 12).
No v. 1a, o profeta procura captar a atenção de seus ouvintes para o seu canto de amor. Talvez ele tenha entoado este canto por ocasião de uma lesta de colheita. Nos vv. lb-2, o profeta conta o quanto o seu amigo se dedicou à vinha e investiu nela. A terra foi afofada para o plantio, as pedras foram ajuntadas para formarem um muro de proteção para os pés de uva; foram plantadas somente vides de boa qualidade. A torre é uma construção de pedra que dá abrigo ao guarda da vinha; podia também servir de depósito provisório. O dono da vinha também escavou um lagar na rocha. O lagar do qual fala o texto compreendia duas escavações: em nível mais elevado se encontrava o lagar propriamente dito, onde as uvas eram pisadas e esmagadas. Em um nível mais baixo havia uma segunda escavação, um tipo de recipiente que recolhia o suco da uva. Tudo estava, pois, preparado para uma grande colheita. Mas qual não foi a decepção — só deu uva ruim. (Não se sabe ao certo o significado do termo; presume-se que as uvas apodreciam antes de amadurecer.)
A partir do v. 3 (até o v. 6) o sujeito da fala é outro. É o próprio dono da vinha que agora se dirige diretamente aos ouvintes, identificados nos vv. 3 e 4 como habitantes de Jerusalém e homens de Judá. Estes são convocados para julgarem a questão do dono da vinha. Há, portanto, um processo judicial do dono contra a sua vinha. A pergunta do v. 4 é retórica. Não se espera uma resposta. Ela contém mera acusação. O canto de amor tornou-se acusação e julgamento. Os ouvintes percebem que a coisa está ficando séria. Eles são intimados a participarem do julgamento como juízes. (No antigo Israel, os julgamentos ocorriam no espaço interno dos portões das cidades e não tinham uma estrutura rígida ou procedimentos fixos. Todos os homens adultos e proprietários que eventualmente saíssem da cidade ou nela entrassem podiam participar dos julgamentos, ora como testemunhas, ora como corpo de jurados.)
No v. 5, o dono da vinha não mais é mero iniciador do processo, mas torna-se juiz e executor da vinha tida como culpada. O castigo até que não é tão terrível como se poderia esperar. Os profetas podem usar palavras bem mais fortes para anunciar juízo e destruição. Em Is 5, a sebe e a cerca de pedra são arrancadas e abertas, ou seja, tira-se a proteção da vinha. Agora os animais poderão entrar e fazer a sua colheita. Ela será arrasada (termo hebraico de significado incerto). Em Israel as vinhas não eram erguidas em latadas como as nossas parreiras. Elas se espalhavam pelo chão. Por isso eram facilmente pisadas e arrasadas.
O dono não se preocupa mais com a vinha — este é o castigo. Ela cresce como quer e pode, pois não é mais podada, e o solo ao seu redor não é mais l ratado. A natureza fará o resto: o pomar será tomado de espinheiros; as nuvens negarão a chuva. No mínimo a esta altura os ouvintes da parábola terão desconfiado que o dono da vinha é Deus. Pois quem mais poderia proibir as nuvens de derramar chuva sobre a terra?
O v. 7 fornece a chave da parábola. O proprietário da vinha é o Deus dos exércitos, que deu tantas vitórias e realizou tantos feitos de justiça em favor do seu povo. A vinha a ser destruída é o próprio povo. Inesperadamente, aqueles que foram convocados para julgar a vinha são, agora, os condenados. O povo condenou-se a si mesmo. Os próprios atos (violência e gritos de socorro) e as próprias omissões (direito e justiça) transformaram-se nos algozes de seus autores e causadores.
3. A Caminho da Pregação
A seguir apresento algumas possibilidades de interligar as experiências do texto com as experiências da nossa vida.
1) Deus nos é mostrado como um trabalhador. A Bíblia muitas vezes mostra Deus trabalhando (cf., p. ex., Gn 1.7,16,25; 2.27s.; Jr 18.4; Mc 12.1). O trabalho ao qual ele se dedica é o de tornar a vinha (o povo, a comunidade, as pessoas) frutífera, produtiva.
2) Deus é designado de amigo e amado; ele é alguém que ama, tem esperança. Não sabe tudo de antemão; pelo contrário, suas expectativas são frustradas. Ele sofre por causa de seu povo. A imensa bondade e longanimidade de Deus aparecem, na narração, como algo bem humano.
3) Deus está bem perto de nós; seu amor, no entanto, compromete. A vinha que negar seu fruto será condenada. O juízo não é descrito de forma horrenda; Deus simplesmente abandona a vinha a seu próprio destino. Como seria isso? Uma comunidade sem espírito comunitário, sem cultos, sem cantos de louvor, sem pregação, sem consolo nos enterros, igrejas transformadas em museus, sem possibilidade de recurso a Deus — estamos condenados à nossa própria soberba. A comunidade certamente gostaria de contribuir com suas visões de um mundo sem Deus.
4) A comunidade cristã não pode reivindicar Deus para si. Deus não pertence a nenhuma comunidade, nem a nenhuma Igreja, nem a nenhum grupo. Ele rompe ligações antigas e estabelece relacionamentos novos. Onde nós nos encontramos?
5) Interessante é que Isaías evita colocar logo de forma clara e direta a denúncia da falta de direito e justiça. Talvez sua experiência seja bem parecida com a nossa, a saber: quem prega exigências morais e éticas (lei) geralmente encontra ouvidos fechados e cérebros desligados. Isaías conta, isto sim, uma história que procura envolver os/as ouvintes, despertando seu interesse, colocando perguntas, provocando reações a fim de levá-los/as a emitirem um juízo sobre si mesmos/as. A pregação profética é séria, mas parece não querer levar nem ao desespero nem à apatia.
6) a) Em Proclamar Libertação vol. VII, Lothar C. Hoch dá um bonito exemplo de prédica narrativa sobre Is 5. Sem dúvida, a parábola se presta para esse tipo de pregação, pois proporciona inúmeras oportunidades de misturar o texto bíblico com a nossa realidade. O/a pregador/a que experimentar contar o texto com suas próprias palavras descobrirá logo se consegue recriar de forma relevante o texto para a sua comunidade.
b) Tentei procurar algo sobre a imagem da vinha tanto em textos (bíblicos e modernos) quanto em representações artísticas. Descobri um material muito vasto; não tive tempo de avaliá-lo para esta meditação. Mas não é nada difícil encontrar desenhos, pinturas ou gravuras de vinhas com diversos simbolismos. Alguns destes poderiam servir para provocar a reflexão sobre o amor de Deus e a possibilidade de julgamento da comunidade?
c) Há quem sugira iniciar a prédica com a nossa realidade de dor, sofrimento e injustiça, para dar a impressão de que as estruturas ou as outras pessoas, o destino ou o próprio Deus não vêm ao encontro de nossas expectativas. Segue-se, então, com a leitura do texto bíblico, que contraporia as coisas boas que Deus fez por nós e a decepção de Deus com os nossos frutos. Alguns colocam então uma reflexão sobre como seria o mundo abandonado a seu próprio destino. Há salvação para nós? Ela deve ser explicitada? A nossa prédica não deveria terminar, tal qual o livro de Jonas, com uma pergunta?
d) Falta algo para levar para casa do culto. Um texto tão rico em imagens como o é Is 5 deveria poder estimular-nos a que a mensagem possa ser levada para casa em forma de um símbolo. Em meados de outubro, quando o texto será pregado, os parreirais (ou plantas/árvores frutíferas substitutas, onde não se cultiva a uva) já terão ramos novos e folhas novas. Poder-se-ia trazê-los ao culto juntamente com instrumentos de trabalho pertinentes (podadeira, enxada, arrastel), pedras (para simbolizar a cerca de proteção ou a torre) ou, então, pés de cerca-viva e assim por diante. Afinal de contas, nós todos somos a vinha. Os símbolos acima mencionados ou outros semelhantes podem dar a dupla dimensão da mensagem. Como vinha de Deus temos recebido muito dele (folhas, pés de uva, proteção); como povo de Deus temos a tarefa de produzir os frutos da justiça (instrumentos de trabalho, pedras, etc.). Talvez o/a pregador/a não possa ou não queira arranjar todos esses elementos simbólicos sozinho/a. O assunto deveria ser tratado com um grupo da comunidade com certa antecedência.
4. Bibliografia
HOCH, Lothar C. Meditação sobre Isaías 5.1-7. In: KIRST, Nelson, coord. Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1981. vol. VII, p. 87-94.
MAKKERT, Ludwig. Meditação sobre 2. Sonntag der Passionszeit (Reminiscere) — Jes 5,1-7. In: SORG, Theo, ed. Neue Calwer Predigthilfen; Vierter Jahrgang, Band A: Advent bis Himmelfahrt. Stuttgart, Calwer, 1981. p. 186-195 (a melhor meditação em língua alemã que consultei).
WESTHELLE, Vítor. Meditação sobre Isaías 5.1-7. In: MALSCHITZKY, Harald & WEGNER, Uwe, coords. Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1987. vol. XIII, p. 147-151.
WILDBERGER, Hans. Jesaja; Kapitel 1-12. 2. ed. Neukirchen-Vluyn, Neukirchener, 1980. (Biblischer Kommentar Altes Testament, XI). (Os comentários mais conhecidos em língua portuguesa são demasiadamente breves.)