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Prédica: Deuteronômio 4.1-2,6-8
Leituras: Efésios 6.10-20 e Marcos 7.1-8,14-15,21-23
Autor: Valdemar Lückemeyer
Data Litúrgica: 15º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 31/08/1997
Proclamar Libertação – Volume: XXII

1. Observações Introdutórias

Os três textos bíblicos propostos pelo Lecionário Ecuménico para o 15o Domingo após Pentecostes colocam a lei como base da reflexão e do anúncio da palavra de Deus para este fim de semana. Lei no seu mais amplo e profundo sentido, inclusive seu aspecto protetor e libertador. Não se trata, pois, de trabalhar a dialética ou a tensão entre lei e evangelho. O Evangelho e a Epístola do domingo apontam justamente para esse entendimento maior da lei como sendo toda a palavra de Deus = imperativo precedido pelo indicativo!

Sobre a nossa perícope não há nenhum auxílio homilético em Proclamar Libertação. No entanto, outros auxílios homiléticos em volumes do PL sobre textos de Deuteronômio oferecem subsídios para a compreensão desta obra literária que é o livro de Deuteronômio. Ao longo deste estudo cito algumas passagens desses auxílios.

2. O Contexto

Estudos realizados mostram que Deuteronômio (= a 2a edição da lei) se restringe a Dt 4.44-30.20. Os blocos de Dt 1.1-4.43 e 31-34 são conjuntos que foram agrupados posteriormente. O todo é uma grande prédica, ou até várias prédicas, de Moisés, que tem como moldura a liturgia do culto festivo de Israel, ocasião em que era celebrada a aliança de Deus com seu povo: exortação — mandamento — aliança — anúncio de bênção e maldição. As prédicas de Dt se dirigem ao povo migrante que chegou a Moabe e está prestes a entrar na terra prometida. Esse estilo redacional o/os autor/es usa/m para falar ao povo de Israel na época do reinado. A terra está aí à sua frente; Deus já está mostrando o cumprimento de sua aliança. A sua promessa está sendo cumprida. Mas há a fundamental necessidade de o povo aceitar a aliança, i. é, cumprir a sua parte: obedecer ao pacto, à aliança, obedecer à lei, cumprir todas as orientações e ordens. Obediência e cumprimento da lei reverterão em vida e bênção, ao passo que a desobediência redundará em maldição. Moisés insiste que o povo seja inteligente e permaneça fiel aos mandamentos, a fim de que possa desfrutar de tudo o que Deus está dando com a nova terra.

Uma das características do Dt é que o pregador Moisés insiste no cumprimento das leis. Ele quer que o povo se lembre das bondades, das salvações, das misericórdias de Deus na história. Busca tornar o povo grato pelo que tem, para que não se baseie na auto justificação (Dt 8.17; 9.4-6; 6.10-12). Ó esquecimento do que Deus fez ao povo parece uma ameaça real. Por isso, todo e qualquer método, símbolo, sinal, visualização litúrgica é útil para ativar a lembrança, para recordar os favores de Deus. (Cláudio Molz, p. 247.)

Ulrico Meyer, em PL VIII, escreve citando Cunliffe-Jones:

O Deuteronômio é uma súplica dirigida a Israel, para que reconheça a Javé, seu Deus, como o Deus do Pacto, e para que viva como corresponde ao povo de Deus, por causa do Pacto. O Pacto se apoia na redenção obtida por Deus; graças ao amor e misericórdia por ele derramados, Israel tem recebido sua vida e destino como povo. O futuro de Israel dependerá da aceitação desse destino das mãos de Deus, e de que ande de tal maneira, para ser digno dele. (Ulrico Meyer, p. 24.)

3. Comentários Exegéticos

O v. l inicia com algo bem novo. Em forma de parênese é introduzida a apresentação da lei. O imperativo ' 'ouve, Israel'' lembra a conhecida fórmula de confissão de Dt 6.4, o shema. O que agora, pois, é anunciado faz parte de todo o shema, de toda a confissão de que Deus é único e só ele deve ser amado. Não se quer apenas obediência cega e fria, mas sim uma obediência que precisa ser resposta ao amor de Deus que se manifesta no amor total a ele ao obedecer seus mandamentos. A obediência é desejada, embora Israel tenha a liberdade de desobedecer, o que redundará em morte. Há vários textos em Dt que pedem obediência e lembram o benefício desta decisão: a herança da terra, vida, prosperidade, paz, enfim, bênçãos.

A fórmula canónica nada acrescentar, nada excluir/diminuir tem história também fora do povo de Israel. Ela é uma advertência aos copiadores de textos sagrados no antigo Egito. No AT ela é lembrada diversas vezes (Dt 13.1; Jr 26.2; Pv 30.6) e sempre é dirigida a todos os que se ocupam com a lei: os copiadores do texto sagrado, a Tora, e o povo que deve obedecer e cumprir a lei.

O v. 5, que não faz parte da perícope, lembra que a lei é ensinada. É mencionado, pois, um modo fixo e conhecido de transmitir e ensinar a lei, que lembra a catequese, mencionada em tantas passagens, como, p. ex., Dt 6.20. A tradição recebe a sua importância. Uma geração conta à outra o que experimentou, o que recebeu de Deus e o que ele espera.

Os vv. 6-8 sublinham que a lei de Deus é pública: ela é dirigida ao povo de Israel, sem dúvida. Mas a vida deste povo, que se evidencia no cumprimento da lei, na ética, na comunhão, na economia, enfim, em todos os setores da vida, será observada por outros povos. A conduta de Israel evidenciará concretamente o pacto com Deus e despertará grande admiração entre os outros. Mesmo que Gerhard von Rad afirme que o Deuteronômio não quer ser uma lei do estado. Nenhum código do Antigo Testamento se apresenta nestes termos. Interpela Israel na qualidade de comunidade sagrada, povo santo que pertence a Javé, e é sob esse aspecto que se ordenam sua vida e seus ministérios (sacerdote, rei, profeta, juiz), deve ser lembrado o alcance social e económico de toda e qualquer lei em Israel (e certamente em outros povos). O diferencial está na lei justa do Deus de Israel! A justiça desta lei provocará admiração entre outros povos.

Todas as leis são, em última análise, uma explicação do principal e maior mandamento: Deus e único e só ele deve ser amado (Dt 6.4). Deus se revelou a esse povo, elegeu-o como seu povo, conduziu-o para uma terra e deu-lhe essa terra de graça. A gratidão por este gesto se manifestará no cumprimento da lei.

O hoje (v. 8) é a atualização do pacto do Sinai. O tempo presente se compara ao tempo em que o povo estava prestes a entrar na leira prometida, no momento em que tinha a promessa de Deus visualmente à sua frente.

4. A Caminho da Prédica

A nossa perícope é um grande convite para que o povo de Deus obedeça fielmente a todos os mandamentos, todas as ordens, toda a lei de Deus! K mais: que as filhas e os filhos de Deus, o seu povo, guardem essa lei, i. é, que meditem sobre ela e tenham alegria em cumpri-la. Isto lhes reverterá em bênção ao viverem em paz, justiça, segurança…

— Leis e ordens normalmente não são bem aceitas. Onde é possível, procura-se esquecê-las, omiti-las. Sempre que possível a lei é burlada, alterada ou distorcida. Cumprir a lei espontânea e alegremente é algo pouco ou nada conhecido.

— Dentro da nossa tradição confessional, a lei é vista de forma crítica, ao passo que o evangelho, o fim da lei, é lembrado e contraposto com muito carinho. A lei tem aspecto negativo. O evangelho, positivo.

— Frequentemente ouço pessoas dizerem que na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) deveria haver mais rigor, energia, cobranças, e, para exemplificar, citam-se o comportamento e a forma de agir de igrejas irmãs e até pentecostais, que são legalistas. Por outro lado, vejo também uma grande fobia contra tudo o que é lei, determinação, orientação… Vejo que a prédica deve apontar para o outro lado: ser um convite para que se tenha alegria (e até necessidade!) de estudar, de meditar diariamente na lei de Deus!

Lembro que o livro de Dt é uma prédica. Em grande parte, os trechos do texto de vos são considerados até mesmo prédicas sobre prédicas. Os trechos de tu, como o nosso, formariam a camada mais antiga. Pregar sobre uma prédica? O pregador original em Dt foi Moisés. Mas assim como está disposto hoje, o Dt coloca-nos numa situação utópica: o reinado já levou Israel à ruína (587 a.C.), a reforma de Josias (621 a.C.) fora uma tentativa de salvar o barco que está afundando. Agora a prédica coloca Israel de novo na época antes da tomada da terra, dizendo: Façam uma opção nova que considere o desastre e mostre que aprenderam dele! Deus deu para vocês essa linda terra de graça e bondade. O desastre político, social, econômico, ecológico e religioso não é definitivo. Dá para se recomeçar. Mas vejam se aprendem! (Cláudio Molz, p. 251.)

— Toda a lei (= mandamentos, estatutos, juízos, etc.) do AT não é a lei que se opõe ao evangelho, mas é a concretização diária do que significa amar a Deus sobre todas as coisas. A lei de Deus não quer restringir a liberdade e a vida, pelo contrário, quer favorecê-las. Por isso ela é como os sinais de trânsito na estrada: eles querem nos orientar, ajudar e alertar para que façamos boa viagem e que cheguemos bem e com segurança ao alvo.

O amor a Deus não pode ser exigido por lei. A Thorá não é lei, é orientação. Isso é importante para aqueles que estão dominados por aquele discurso na nossa teologia que, partindo de Paulo, só vêem o Antigo Testamento todo como lei. O amor a Deus é uma opção consciente (coração) que, uma vez dada, não mede os riscos de vida (alma, no original: riscos da garganta) e se engaja de corpo inteiro (força). O amor a Deus não precisa desconsiderar os próprios interesses. Apenas coloca os interesses de Deus como proprietários, porque os dele incluem os nossos, enquanto apenas com os nossos vamos à perdição. (Cláudio Molz, p. 251.)

— Deus quer vida, paz e segurança para todos. Deuteronômio cita repetidas vezes por que é necessário e bom cumprir a lei: para que o povo viva, para que tome posse da terra, para que se torne mais numeroso, para que não morra!

— Durante a prédica vários textos de Dt que destacam o porquê do cumprimento da lei podem ser lidos (por diversas pessoas): Dt 5.31-33; 7.12-15; 8.11-14; 30.9-14…

— Sugestão de hinos: Hinos do Povo de Deus na 121 e Salmo 19: A lei do Senhor é perfeita (Celebrações do Povo de Deus).

5. Bibliografia

MEYER, Ulrico. Deuteronômio 30.11-20. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1982. vol. VIII, p. 23-29.

MOLZ, Cláudio. Deuteronômio 6.4-9. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1989. vol. XV, p. 246-253.

RAD, Gerhard von. Theologie des Alten Testaments. München, Kaiser, 1966. vol. 1. -. Das fünfte Buch Mose. 4. ed. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1983. (Das Alte Testament Deutsch, 8).

WESTERMANN, Claus. Tausend Jahre und ein Tag. Stuttgart, 1965.