A maioria de nós conhece o significado da refeição conjunta. Mesmo que o trabalho da sociedade moderna dificulte o encontro da família à mesa, o valor e a importância da refeição do grupo permanece. Sabemos como é significativo reunir-se para um almoço no dia do aniversário, na festa de casamento, nas bodas, no dia do batismo, da confirmação. A família encontra-se. Amigos se revêem. Amizades são fortalecidas. Há casos em que relações são refeitas ao redor da mesa. Conhecemos a expressão: Vamos esquecer nossa encrenca, nossas desavenças. Venha lá em casa, vamos tomar um bom vinho, comer… [pode haver adaptação de acordo com os costumes locais] e seremos amigos novamente. A refeição conjunta faz milagres! O encontro ao redor da mesa comunitária reata laços rompidos.
O simbolismo e o vigor presentes na refeição não são invenção recente. Os cristãos encontram exemplos magníficos dessa experiência na Bíblia. Conforme Êx 2.1 Is., Reuel, um sacerdote, convidou Moisés para uma refeição (v. 20). Ele queria agradecer o fato de Moisés ter defendido suas filhas dos pastores, e por ter tirado água do poço para elas. O agradecimento e a hospitalidade foram expressos por Reuel de forma visível no gesto de oferecer pão.
Para o antigo povo de Deus, partilhar regularmente o pão com alguém era manifestação de amizade e confiança (Sl 41.9). Jesus sentou-se inúmeras vezes à mesa com pessoas para comer com elas. Ele foi criticado por isso (Lc 15.2). O mestre fez da refeição conjunta, da partilha de alimentos, um exemplo central do ensino de seu Reino (Mc 6.30-44). E, segundo a Bíblia, o grande encontro entre Deus e o seu povo ocorrerá numa refeição. Conforme Is 25.6-8, no dia do julgamento último de Deus, quando a morte será destruída para sempre, quando toda lágrima será enxugada, quando o povo de Deus não será mais desonrado, Deus dará um grande banquete. Comer em conjunto, reunir-se à mesa é uma experiência secular, simbólica, significativa.
Será que isso tem alguma coisa a ver com a Eucaristia? Será que essa experiência tão significativa da comunhão ao redor da mesa tem algo a ver com aquilo que Jesus fez e disse na última das refeições que ele comeu com os seus discípulos, na noite anterior à sua crucificação?
O apóstolo Paulo recontou aos cristãos de Corinto a última refeição de Jesus com os seus discípulos (I Co 11.23-25):
Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isso em memória de mim. Por semelhante modo, depois de haver ceado, tomou também o cálice, dizendo: Este cálice é a nova aliança no meu sangue; fazei isso em memória de mim.
Ao recontar esse fato, Paulo recorda que aquele último encontro deu-se numa refeição. Afinal, alguma coisa aconteceu antes e outra aconteceu depois de haver ceado. Em verdade, Jesus fez naquela última refeição o que os judeus faziam todas as vezes que se reuniam para comer em conjunto. No início da refeição, alguém pegava um pedaço de pão, agradecia a Deus pelo sustento da vida, por tudo aquilo que Deus concede para tornar possível a vida. Isso eles chamavam de bênção do pão. Depois, cada um comia um pedacinho desse pão e, a seguir, a refeição se desenvolvia. No final, quando todos estavam satisfeitos, a mesma pessoa, que no início falara a oração sobre o pão, pegava um cálice com vinho e falava a bênção de ação de graças. Era o cálice da ação de graças. Segurando-o, a pessoa agradecia pelo vinho, fruto da videira, pela comunhão de mesa, o encontro fraternal, por tudo de bom que Deus concedia ao seu povo. E assim a refeição terminava.
O que aconteceu naquela refeição com Jesus? Em princípio, o mesmo procedimento foi adotado por Jesus. O grupo estava reunido para uma refeição. De acordo com o testemunho dos evangelistas, Jesus pedira que os discípulos preparassem essa refeição (Lc 22.8). Estando à mesa, Jesus assumiu a função de líder. Pegou o pedaço de pão. Até aí, nada de novidade. Ele faria o que em toda refeição comunitária judaica era feito: dar graças a Deus. Mas, surpreendentemente, ocorreu uma novidade. Com o pão nas mãos, Jesus disse: Isto é o meu corpo, que é dado por vós. Será que os discípulos entenderam? Jesus, em todos os casos, estava relacionando o pão com o seu corpo prestes a ser crucificado. Isto é o meu corpo, dado por vós.
A refeição transcorre. E Paulo testemunha: Por semelhante modo, depois de haver comido, tomou também o cálice, e disse: Este cálice é a nova aliança no meu sangue? O cálice com vinho foi relacionado por Jesus com o seu sangue que seria derramado na cruz. E assim também aconteceu (Lc 23.44-46).
Prezados irmãos, prezadas irmãs em Cristo!
Conhecemos o significado e o valor inestimáveis de uma refeição comunitária. Sabemos que essa experiência é ancestral. O povo de Deus também a conheceu. Jesus a conheceu. Pois foi nessa experiência que aconteceu aquele fato inusitado da instituição da Eucaristia. Cabe agora uma pergunta: será que o valor e o significado da refeição em si tem algo a ver com a Eucaristia? Será que comer o pão da Eucaristia, tomar do cálice da comunhão tem algo a ver com essa experiência fantástica que se faz ao redor da mesa?
A resposta para essa pergunta já foi dada pelo próprio Jesus. Ele falou aos discípulos: Façam isto em memória de mim. O que era isto? Num primeiro momento, isto era a refeição, o encontro fraternal, a partilha das dádivas que Deus dá às suas criaturas, o agradecimento e o louvor ao Deus da vida, a oração de reconhecimento de que Deus é o Senhor, que a vida veio de suas mãos. Isto era aquele costume judaico secular de reunir-se para louvar, agradecer e orar a Deus, e para ter comunhão entre si. Isto era o momento de reatar relações quebradas. Segundo Mateus, a presença digna na mesa eucarística passa pela disposição de reconstituir relações quebradas. Vai e reconcilia-te com teu irmão e com tua irmã (Mt 5.23-24). Assim os judeus faziam. E Jesus pede que agora isto seja feito em sua memória. E assim os primeiros cristãos continuaram a fazer.
Mas há um detalhe: depois da ressurreição de Jesus, depois do acontecimento da Páscoa, os cristãos tiveram maior motivação do que os judeus para agradecer e louvar a Deus na hora da refeição. Eles tinham vivenciado a experiência de que Deus vencera a própria morte. Ao mesmo tempo, isso significou que Jesus tivera razão naquilo que falara, ensinara e defendera nos seus poucos anos de atuação. Portanto, muito mais motivos tiveram as primeiras comunidades cristãs para reunir-se ao redor da mesa e festejar comunhão, gratidão, partilha, reconciliação, alegria de viver – só que agora em memória de mim, em memória de Jesus e, ao mesmo tempo, sabendo que Cristo estava entre eles no pão e no cálice da Eucaristia.
Por um lado, aquela última refeição de Jesus com os seus discípulos foi absolutamente única. Nunca antes acontecera o que se deu naquela ocasião. Tomam e comam, isto é meu corpo. Tomam e bebam, isto é meu sangue. Essa foi a grande novidade dessa refeição. Essas palavras distinguiram aquela refeição de todas as que haviam acontecido anteriormente. Essa é também a diferença entre a Eucaristia e qualquer outro de nossos encontros ao redor da mesa. Na Eucaristia celebramos a memória do que Cristo fez por nós e celebramos a sua presença real.
Mas, por outro lado, a Eucaristia carrega consigo o significado e o valor de uma refeição comunitária. A Eucaristia, por ser instituição de Jesus, não aboliu o valor e o simbolismo do ato de comer em conjunto. A Eucaristia é mais do que uma refeição, mas ela engloba a refeição. Ela inclui o significado da refeição conjunta.
Em outras palavras: antes de ser crucificado, Jesus ensinou muito quando esteve à mesa. Ele ensinou a partilha. Aceitou pessoas que distoavam do padrão estabelecido. Perdoou pecados. Incluiu excluídos. Considerou gente que passava por desqualificada. Puxando essa história para nós, podemos dizer: por meio de sua morte, Jesus nos deu um abraço caloroso. Antes de expirar, demonstrou com que paixão ele nos quer bem. Por meio do sacrifício de Jesus, Deus provou o bom pai e a boa mãe que é. Disse o Senhor por meio do profeta: Acaso pode uma mulher esquecer-se do filho que ainda mama? Mas ainda que esta viesse a se esquecer dele, eu, todavia, não me esquecerei de ti. Fazer a Eucaristia em memória de mim (Jesus) é realizá-la sem esquecer o que esse Deus, por meio de Jesus, ensinou, pregou e defendeu.
Nossas comunidades são, por via de regra, numericamente muito maiores do que o foram as primeiras comunidades cristãs. Isso faz com que não seja tão simples realizar a Eucaristia juntamente com uma refeição. Verdade é que em média todas as comunidades fazem festa com almoço ou promovem outras refeições com muita gente. De qualquer modo, a forma de realizar a Eucaristia pode ser discutida. Mas o que não se discute e duvida é essa relação bastante íntima que existe entre a Eucaristia e a comunhão de mesa; entre Eucaristia e gestos concretos de solidariedade; entre Eucaristia e a disposição de incluir no nosso círculo as pessoas que, em princípio, são diferentes de nós. Discutível pode ser a forma de expressarmos o simbolismo da Eucaristia ao redor da mesa de comu¬nhão. Agora, indiscutível é o fato de que a Eucaristia motiva e liberta os comungantes para viverem a comunhão em nível de comunidade, com as outras pessoas.
Deus nos ama. Deus nos abraça carinhosamente. Deus deu-se por nós. Este é o nosso Deus. Este é o Deus que vem a nós no pão e cálice eucarísticos. Assim, abre o caminho para que sejamos reconciliados com Ele. E é este Deus que nos liberta e impulsiona para amar, para abraçar, para perdoar, para doar-se, para comungar, para tornar comunitário o que tão bem conhecemos a partir do significado de uma refeição conjunta.
Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia