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Prédica: Ezequiel 34.11-16,23-24
Leituras: I Coríntios 15.20-28 e Mateus 25.31-46
Autor: Ivo Schoenherr
Data Litúrgica: Último Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 21/11/1999
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
 

1. Introdução

O texto de Ez 34.11-16,23-24 já foi trabalhado em Proclamar Libertação em dois momentos. No vol. VI, p. 170-178, o texto foi trabalhado por Erhard S. Gerstenberger. O autor medita o texto para uma pregação no Dia do Trabalhador e inclui os vv. l -2, que trazem uma crítica à atuação dos pastores (governantes e líderes) de Israel. Mas Erhard também medita a partir dos vv. 11-16 sobre o reino de Deus. No vol. 21, p. 192-195, o texto foi trabalhado por Leonídio Gaede. O texto foi meditado para o 7° Domingo após Pentecostes. Leonídio inclui os vv. 1-9 e acentua a crítica ao sistema monárquico e a tragédia causada pelo mesmo, tanto no passado em Israel como nos dias de hoje através do sistema neoliberal. O texto de Ez 34.11-16,23-24 fala somente da promessa de Deus, da proposta alternativa. Fala do reino de Deus. Fala de Deus como o bom pastor, que procura, busca e reúne o seu povo e que reinará através de seu príncipe com justiça. Não através de um príncipe nos moldes dos reinados fracassados. Mas um príncipe novo que servirá como pastor. Na perícope indicada não há uma crítica ao sistema a não ser na parte final do v. 16. Mas, mesmo sendo o objetivo desta perícope anunciar o reinado de Deus, não podemos esquecer o contexto em que foi anunciada esta promessa: o fracasso do sistema monárquico israelita.

2. Quem foram os primeiros ouvintes da mensagem de Ez 34.11-16,23-24?

Os primeiros ouvintes da mensagem de Ez 34.11-16,23-24 foram exilados judeus, especialmente habitantes deportados da capital, Jerusalém. Esses exilados viveram na Babilônia. Ezequiel menciona dois lugares: Rio Quebar e Tel Aviv.

Estamos falando do exílio babilônico, que aconteceu entre os anos de 597 e 538 a.C. Os babilônios realizaram três deportações de pessoas da Judéia, especialmente de Jerusalém, para as regiões da Babilônia citadas acima. A 1ª. deportação aconteceu em 597 a.C. Foram levados como reféns o rei e a corte. Permaneceram junto à corte babilônica. Além da corte, foram deportadas mais 10 mil pessoas, especialmente militares, funcionários do Estado, bem como sacerdotes do templo, também para as regiões já citadas acima. Havia entre eles também alguns pobres. Mas a maioria fazia parte da elite em Jerusalém. Uma 2a deportação aconteceu em 587 a.C. e envolveu aproximadamente mil pessoas. Ainda houve uma 3a deportação em 582 a.C. que atingiu menos de mil pessoas. Calcula-se que foram deportadas para a Babilônia um total de 15 mil pessoas. A grande maioria da população, no entanto, permaneceu na Palestina, vivendo as consequências da intervenção militar babilônica na região. Estima-se que 100 mil pessoas permaneceram na Palestina e, na sua grande maioria, eram pobres e camponeses. Há informações diferentes quanto ao número de exilados que realmente foram para a Babilônia. Em todo caso chama a atenção o fato de que estes formavam apenas uma minoria. Mas temos que ter claro que os ouvintes deste texto foram os exilados na Babilônia.

Como viveram esses exilados na Babilônia? Enfrentaram um processo doloroso. Primeiramente sofreram muito com as longas marchas. Muitos sucum¬biram ao sofrimento provocado por essas marchas, como também pelos trabalhos forçados. Na região do desterro permaneceram e viveram juntos. Foram assentados junto aos canais de água em área despovoada. Trabalharam no campo, provavelmente na produção de cereais. Produziram para subsistência própria. Mas também entregaram quotas de produção e pagaram tributos aos babilônios. Era desta forma que os babilônios exerceram a opressão sobre este povo. Os líderes judeus passaram da situação de elite para produtores primários. Mas tiveram liberdade de movimento dentro do acampamento, onde, morando juntos, puderam preservar a língua, seus ritos, costumes e religião. Puderam expressar a sua fé em Javé. Devido à ausência do templo, o culto da palavra, em forma de profecia e cantos, e novos ritos, como a circuncisão e o sábado, adquiriram importância especial. Não eram escravos no sentido mais amplo da palavra. Mas sofreram muito devido à situação de desterro, de trabalho diferente, do fracasso dos valores, do fim do centro cultual, do fim da cidade de Jerusalém, do fim do governo próprio, pelo fracasso do sistema monárquico do qual faziam parte, e sobretudo pela vida num país estranho e opressor. O nosso texto identifica os exilados como ovelhas dispersas, espalhadas, perdidas, desgarradas, quebradas e enfermas.

3. Quem proclamou a mensagem de Ez 34.11-16,23-24?

Ezequiel proclamou a mensagem. Ele está junto dos exilados. Aliás, é um deles. Foi vocacionado no exílio junto ao Rio Quebar e Tel Aviv. Sua atuação começou no ano de 592 a.C. e terminou por volta de 570 a.C. Ezequiel desempenhou a função de sacerdote. Provavelmente já atuava como sacerdote junto ao templo em Jerusalém antes de sua deportação. Usou uma linguagem simbólica. Falou em visões e ações simbólicas. Foi o primeiro profeta a profetizar fora da terra de Israel. Mas percebe-se em seus textos que havia uma comunidade ao redor do profeta. Ele não falou sozinho. Ezequiel compilou aquilo que a comunidade viveu. São os exilados que falaram das suas dores, dos seus fracassos, das suas culpas e de suas esperanças. Mas a mensagem que o texto traz, os exilados entenderam como um recado de Deus. Deus lhes falou neste texto.

4. Qual é a mensagem de Deus aos exilados intermediada por Ezequiel?

O texto fala da atuação de Deus como pastor. Poucas pessoas hoje conhe¬cem uma ovelha e muito menos ainda a atuação de um pastor de ovelhas. Mas no Antigo Oriente havia muitos rebanhos de ovelhas, conduzidas e apascentadas por pastores. Assim, antigamente, era um termo bem conhecido. O título pastor no Antigo Oriente era também um título real e governamental. O texto, portanto, fala de Deus como rei, do seu reinado e de seu príncipe, o novo Davi. Traz uma promessa de Deus. Ele mesmo vai agir. A ação pastoral do rei Deus em favor de seu povo é descrita pelo mensageiro com vários verbos, como por exemplo: procura, busca, livra, tira, congrega, introduz na terra, apascenta, faz repousar, torna a trazer, liga, fortalece, suscita. Anima com esta promessa e esperança a comunidade nas dificuldades e enche os corações entristecidos, abatidos e desesperados de uma grande esperança. O Deus do exílio lembra o Deus do êxodo. No êxodo Deus ouve o clamor do seu povo, desce para libertá-lo e conduzi-lo para a terra que mana leite e mel. Aqui Deus propõe-se a um novo êxodo. Propõe-se a providenciar um retorno à terra de Israel, para o monte de Sião. Propõe-se a reunir o povo disperso e espalhado pelo mundo. Propõe-se a reunir um povo ferido, machucado, desgarrado, quebrado, enfermo e perdido. Ezequiel anuncia o reinado de Deus que será instrumentalizado por um novo Davi. Deus será o rei e um novo Davi, o príncipe. Mas será um Davi diferente dos outros reis de Israel. Este vai apascentar as ovelhas com justiça. Será um pastor a serviço da justiça de Deus. Esta mensagem enche de esperança e anima os exilados.

5. Os textos das leituras bíblicas

Em l Co 15.20-26 Paulo anuncia a ressurreição de Cristo e a esperança da nossa ressurreição. Anuncia a vitória da vida sobre o poder da morte. Em Mt 25.31-46 o evangelista alerta para o critério que será aplicado no dia do grande julgamento, quando será decidido se vamos fazer parte da vida ou da morte: aquilo que fizemos ou deixamos de fazer aos mais pequeninos, que são os famintos, sedentos, forasteiros, nus, enfermos e presos. Mateus identifica quem são as ovelhas perdidas, desgarradas, quebradas e enfermas das quais fala Ezequiel, isto é, são os famintos, sedentos, forasteiros, nus, enfermos e presos. A morte causa sofrimento para as ovelhas perdidas, desgarradas, quebradas e enfermas. Os agentes da morte são as ovelhas gordas e fortes, das quais fala Ezequiel. Na ressurreição de Jesus de Nazaré se concretizou o reinado de Deus, o reinado da vida e da justiça, anunciado pela comunidade exílica de Ezequiel.

6. Quem serão os ouvintes desta mensagem nos dias de hoje?

Nossos ouvintes hoje serão pessoas, membros das nossas comunidades espalhadas em todo o Brasil. Não serão exilados do tipo que viveu o exílio babilônico. Não serão pessoas expulsas do território nacional e vivendo num país estrangeiro. Serão cidadãos brasileiros, alguns exercendo liderança, mas a grande maioria integrando o povo sofrido, formado por trabalhadores rurais e urbanos. Pessoas excluídas vivendo sob o impacto da má e mal intencionada administração dos pastores de hoje. Estes são os exilados dos dias de hoje.

Conheço a palavra exilado desde os anos 70. Para mim, está relacionada ao tempo da ditadura militar. Os militares deram um golpe de Estado em 1964 e exilaram muitos brasileiros e brasileiras, especialmente os que se opunham ao regime imposto. Não lembro bem desses fatos, pois ainda era criança. Conheço-os pela história. Mas lembro-me muito bem da luta pela anistia ampla, geral e irrestrita. Lembro-me de muitas pessoas que viveram exiladas, fora do Brasil, que retornaram ao país logo depois do sucesso dessa campanha. Mas a grande parte de nosso povo, especialmente a geração mais nova, conhece as palavras exilado e exílio só pelos livros de história.

Podemos afirmar com certeza que o exílio babilônico, como também o exílio promovido pela ditadura militar brasileira, foi um exílio de lideranças. Somente lideranças sofreram no exterior as consequências de um exílio. Mas o povo dos anos 60, 70, 80 e de hoje no Brasil também viveu e vive perdido, desgarrado, espalhado, enfermo, quebrado. Não no exterior, em exílio, como o babilônico ou como o exílio de lideranças durante o regime militar. Mas vive um exílio interno. Há pessoas espalhadas neste país, já desde o golpe militar e até mesmo antes, sem-terra, sem-casa, sem-trabalho, sem-saúde, sem-escola, doentes, perdidos, quebrados, desgarrados. Muitos dos nossos ouvintes certamente viveram e vivem essa experiência de exílio interno e irão sentir-se atingidos por esta mensagem.

7. Qual a mensagem que podemos levar aos nossos ouvintes? Quem levará essa mensagem?

Na promessa feita por Deus através da comunidade de Ezequiel para o povo de Israel exilado na Babilônia, Deus anuncia que vai suscitar, ou seja, providenciar um novo Davi, um príncipe, que vai apascentar e servir de pastor no retorno à pátria. Esse pastor vai governar com justiça. Vai procurar e buscar com muito amor os perdidos, os desgarrados, os quebrados e enfermos. O Novo Testamento viu em Jesus de Nazaré a concretização desta promessa de Deus. Jesus de Nazaré, o Cristo, é o bom pastor que dá a vida pelas ovelhas. Através de Jesus de Nazaré Deus realizou a sua atuação pastoral e inaugurou o seu reinado.

Esta será a primeira grande boa notícia que podemos anunciar neste fim de semana. Deus em Jesus já inaugurou o seu reinado de amor e de justiça. Inaugurou esse seu reinado na ressurreição de Jesus de Nazaré dentre os mortos. Nós já podemos experimentar sinais dessa nova realidade. E essa boa notícia vale para todos nós, que vivemos o nosso Batismo. Vale para todos os nossos ouvintes.

Mas vamos anunciar também que Deus instrumentaliza o seu reino hoje através de nós, os seus discípulos e suas discípulas. Hoje Deus em Jesus Cristo, o ressurreto, age através de suas comunidades. Por isso, podemos dizer:

Somos e queremos ser uma comunidade que procura e busca os perdidos e traz de volta os desgarrados. Quem são os perdidos e desgarrados nas nossas localidades e nas nossas cidades nos dias de hoje? De que forma podemos, como comunidade, procurar, buscar e congregar os perdidos e desgarrados de hoje?

Somos e queremos ser uma comunidade que liga os quebrados e fortalece os enfermos. Quem são os quebrados e enfermos nas nossas localidades e nossas cidades nos dias de hoje? De que forma podemos, como comunidade, ajudar a ligar e fortalecer os quebrados e enfermos?
Somos e queremos ser uma comunidade que apascenta ovelhas. Quem são as ovelhas dispersas e espalhadas nas nossas localidades e nas nossas cidades? De que forma podemos, como comunidade, apascentar as ovelhas de hoje?

São estas as perguntas e questões que esperam uma resposta e mensagem nossa como comunidade para as ovelhas dispersas e espalhadas nos nossos dias. O Evangelho de Mateus nos ajuda a identificar quem são as mesmas. Ele fala dos mais pequeninos. Vamos olhar ao redor para a nossa realidade. Certamente haverá muitas ovelhas dispersas, espalhadas, perdidas, desgarradas, quebradas e enfermas, famintas, sedentas, forasteiras, nuas, presas, para as quais a comunidade poderá intermediar a atuação pastoral do amor e da justiça de Deus. Neste sentido nos ajuda uma concepção de Igreja de Martim Lutero. Walter Altmann, no seu livro Lutero e libertação (cap. 6: A igreja — povo pobre de Deus, p. 128), traz uma frase escrita por Martim Lutero. Esta frase diz o seguinte: Esta vida é a vida de cura do pecado; não é sem sentido, até que a cura esteja completa e a saúde tenha sido obtida. A igreja é o hospital e o sanatório para ou doentes a serem curados. O céu, porém, é o palácio para os sãos e justos. Procurem em sua comunidade refletir sobre esse papel da Igreja junto aos perdidos, desgarrados, quebrados e enfermos (quem sabe uma prédica dialogada entre pregadores e membros).

Bibliografia

A leitura profética da história. Rio de Janeiro : Conferência dos Religiosos do Brasil; São Paulo : Loyola, 1992. (Tua palavra é vida, 3).
ALTMANN, Walter. Lutero e libertação. São Leopoldo : Sinodal; São Paulo : Ática, 1994.
BRIGHT, John. História de Israel. 3. ed. São Paulo : Paulinas, 1988.
GAEDE, Leonídio. 7° Domingo após Pentecostes. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1995. v. 21, p. 192-195.
GERSTENBERGER, Erhard S. Misericordias Domini (Dia do Trabalho). In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1980. v. VI, p. 170-178.
HOMBURG, Klaus. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo : Sinodal, 1975.
SCHWANTES, Milton. Sofrimento e esperança no exílio. São Leopoldo : Sinodal; São Paulo : Paulinas, 1987.

Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia