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Prédica: Ezequiel 2.1-8a
Leituras: 2 Coríntios 12.7-10 e Marcos 6.1-6
Autor: Ervino Schmidt
Data Litúrgica: 7° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 30/07/2000
Proclamar Libertação – Volume: XXV
Tema: Pentecostes

1. Introdução: um pouco de história

O grande império de Davi havia se desintegrado. Por fim, houve a divisão em dois reinos: Israel (Reino do Norte) e Judá (Reino do Sul). O primeiro já em 722 a.C. foi subjugado pela Assíria. Que o pequeno território de Judá, com a capital Jerusalém, tenha saído ileso até o profeta Isaías considerou um milagre de Deus. O rei Josias conseguiu manter a independência de Judá. Cada vez mais o poder da Assíria estava decadente e deixou espaço para outras potências da época. O império babilônico crescia em influência. Entraram então interesses políticos do Egito. O faraó Neco temia a supremacia babilônica. Por isso, dispôs-se a correr em auxílio da Assíria. Josias, por sua vez, não suportava a ideia de um renascimento do poder assírio! Por isso passou a ver no faraó seu adversário. Enfrentou as forças egípcias na batalha em Megido. Mas isso lhe custou a vida. Seu filho Jeocaz o sucedeu no trono. O faraó Neco, porém, logo o substituiu por Joaquim, outro filho de Josias. Com este gesto expressou sua soberania sobre o rei de Judá. As coisas, porém, mudaram de ramo. Em 605 a.C. o Egito foi derrotado pela Babilônia. Com isso, Joaquim tornou-se um vassalo de Nabucodonosor, mas tentou reagir e quebrou a fidelidade de vassalo. A esta provocação Nabucodonosor deu dura resposta em 597 a.C. Deportou o rei Joaquim (filho do já falecido Joaquim), toda a corte, a nobreza, bem como a mão-de-obra especializada, além de impor pesados tributos. Zedequias, filho mais novo de Josias, foi então conduzido ao trono. Mas sua infeliz decisão de romper a relação de súdito do rei da Babilônia significou o fim de Jerusalém. Era o ano de 587 a.C. O rei de Judá foi preso. Foi obrigado à assistir a execução de seus filhos. Ele mesmo teve seus olhos vazados. O templo de Jerusalém foi reduzido a cinzas. Houve nova deportação.

2. O profeta Ezequiel

Ezequiel provavelmente fez parte da primeira leva de exilados. Toda a sua atividade se desenrolou em terra babilônica. É mencionada uma cidade de nome Tel-Abib (não tem nada a ver com a Tel-Aviv de hoje). Compartilhou com seu povo todas as amargas experiências do exílio. A situação de sofrimento é muito bem descrita no Salmo 137:

À beira dos rios da Babilônia,
Ali ficávamos sentados, desfeitos em prantos,
Pensando em Sião.
Nos salgueiros da vizinhança
Havíamos pendurado as nossas cítaras.
Ali, os conquistadores nos pediram canções,
E os nossos raptores, melodias alegres:
Cantai para nós algum canto de Sião.
Como cantar um canto ao Senhor
Em terra estrangeira?

A vida de Ezequiel foi marcada por duros golpes. Pouco depois da sua vocação foi acometido de paralisia. Durante anos ficou imóvel e mudo. Somente com a notícia da queda de Jerusalém esse quadro deplorável sofreu alteração (24.27). Esta árdua experiência do exílio e de sua condição pessoal aguçou nele a sensibilidade para o valor da penitência. Acentuou também a consciência da total dependência da criatura do seu Criador. Impotência humana e onipotência de Deus são manifestas. Tudo isso marca a vida e o discurso do nosso profeta. Ele tem uma linguagem bem própria, difícil por vezes. Aliás, o livro de Ezequiel está entre as partes bíblicas menos lidas. Ele é de difícil compreensão. Falando do estilo desse profeta do exílio, a Bíblia Tradução Ecumênica diz: Esse gênio não consegue defender-se da atração dos extremos: é fulgurante e meticuloso, pronto para o sublime e o vulgar; deixa-se seduzir pelo peso do barroco, em seguida encerra sua imaginação impetuosa e sua frase redundante nas frias distinções de um casuísta. Chama a atenção, também, o fato de que ele traz numerosas alusões históricas.

Na sua mensagem Ezequiel é incisivo e duro. Não há meio-termo! Apela para nossa fantasia e imaginação. Não podemos ter acesso à sua mensagem via exagerado intelectualismo. O jeito é simplesmente ouvi-lo. Já o primeiro capítulo com aquela fantástica descrição da glória de Deus poderia levar-nos a fechar o livro. Mas, com certeza, sairíamos perdendo uma inimaginável riqueza.

3. A glória de Deus

É uma verdadeira irrupção da glória! A vida de Ezequiel é, por assim dizer, invadida pelo sagrado. A glória do Senhor se mostra. E o que o profeta vê? No meio de uma grande nuvem, em meio a uma tempestade aparece um fogo em forma de redemoinho. Depois vêm quatro seres vivos que voam. Eles sustentam um firmamento sobre o qual se encontra um trono. Acima, uma figura como de homem e intensa claridade em torno dele. Em resumo, é a glória de Deus! Tudo isso lembra um pouco a teofania em Isaías. Estranhamos p desfile desses animais fantásticos e a presença de rodas alucinantes, no capítulo de abertura.

Mas tudo está a serviço da imponência da revelação divina, face à qual Ezequiel perce.be sua pequenez. Ele não passa de um humilde filho do ho¬mem. Outro aspecto que parece ser importante — e talvez justamente as rodas expressem isto — é que a glória do Senhor não está limitada a Jerusalém. Mesmo com o templo destruído, Deus se faz presente. Ele revela sua glória também entre os deportados, em terra estranha!

Não é por muito tempo que Ezequiel conseguiu aguentar a visão da glória divina. Contemplei e caí de rosto em terra; ouvi uma voz que falava (1.28b). Com este final se destaca que o decisivo na vocação de Ezequiel é a palavra. Confirma-se que a visão é passagem para ouvir.

4. A vocação de Ezequiel — cap. 2.1-7

Logo no início damos com o lapidar filho do homem a que já aludimos acima. Essa expressão aparece repetidas vezes ao longo do livro. Ela tem por finalidade destacar a humildade do ser humano Ezequiel diante da majestade de Deus. Que é o homem, para que nele penses, e o ser humano para que dele te ocupes? (Sl 8.)

Ezequiel é repetidamente admoestado a não esquecer quem ele, de fato, é. O eterno se comunica com o que não é eterno, o santo fala com o pecador!

A Ezequiel é ordenado que se ponha de pé para ouvir a voz. Esta ordem dada é, de algum modo, acompanhada de manifestação de espírito. O profeta c posto de pé! Ele sempre há de se lembrar que as palavras de Deus não o atingem somente de fora, mas também no seu íntimo. Elas são espírito e vida (Jo 6.63)

As palavras de envio:

1. Filho de homem, eu te envio aos filhos de Israel. Agora Ezequiel é enviado de Deus. Nesta vocação está sua legitimação. Atrás do seu agir está a autoridade de quem o envia. O profeta não vai porque quer não vai movido por interesses próprios, por qualquer motivação negativa. O profeta vai porque Javé o envia, esta é a única explicação para o seu agir (N. Kirst). Isto não significa que o assim enviado seja isento de tribulação, incompreensão e sofrimento. É o caminho de todo enviado obediente, seja ele Elias, Jeremias ou mesmo o Filho de Deus.

Por isso, logo de saída, a própria descrição dos destinatários está colocada como uma forma de advertência. Os filhos de Israel são gente revolta, que se revoltou contra mim, eles e seus pais, até o dia de hoje. São de rosto obstinado e de coração endurecido.

É a essa gente de rosto obstinado e de coração endurecido que Deus envia Ezequiel.

2. O conteúdo do envio. Com que incumbência o profeta é enviado? Impressiona-nos a simplicidade com que a finalidade do envio é descrita. Tu lhes dirás: Assim fala o Senhor Deus. A tarefa do profeta é falar. Mas não fala o que ele julga importante. Cabe-lhe anunciar o que vem de Deus e não a sabedoria própria. Sua missão, além disso, independe de sucessos verificáveis. Isso é dito expressamente: quer te escutem, quer não. A incumbência do profeta é unicamente falar o que vem de Deus! Assim o povo não terá desculpas. Jamais poderão dizer que não sabiam. Saberão que há um profeta no meio deles. Isto é o que basta! Jamais poderão acusar Deus de os ter abandonado.

3. Não tenhas medo. Como Jeremias, também Ezequiel é exortado com insistência a que não tenha medo: nem as palavras nem os gestos dos ouvintes devem atemorizá-lo. Em meio a contraditores, espinhos e escorpiões ele haverá de se manter firme. Como não ter medo? Se ao menos Deus lhe garantisse proteção divina!

Na verdade, o profeta não está sem proteção. O próprio cumprimento da missão que lhe foi confiada o sustenta e liberta de todo o medo.

5. Pistas para atualização

Poderíamos meditar longamente sobre a natureza e tarefa do profeta, do enviado. Caberia ver em que sentido os cristãos, hoje, são enviados e qual sua missão — seria assunto suficiente para uma prédica.

Sugiro, porém, destacar ainda um outro momento: a fidelidade de Deus.

Poder-se-ia, neste caso, iniciar descrevendo a situação difícil na qual nos encontramos. Enquanto medito o texto de Ezequiel ainda estou sob o impacto do Tribunal da Dívida Externa que realizamos (CONIC, CESE, CNBB, MST e IAB) nos dias 26 a 28 de abril de 1999, no teatro João Caetano, no Rio de Janeiro. O Brasil tem um dos piores perfis de distribuição de renda do mundo. 40 milhões de pessoas estão situadas abaixo da linha de pobreza. Buscamos identificar a relação entre a dívida externa e a situação de injustiça e miséria que está aí.

É uma situação muito séria! Prioriza-se o econômico sobre o humano. A vida não importa muito. Quem manda é o capital especulativo. Não convém entrar muito na teoria dessas questões. Mas não será difícil trazer exemplos de desemprego, de pessoas excluídas. Talvez os materiais da Campanha da Fraternidade, que no ano 2000 será ecumênica, poderão ser de ajuda. O tema é: Dignidade humana e paz e o lema: Um novo milênio sem exclusões. Mas, mesmo em situação de exclusão, não estamos abandonadas. Durante o exílio babilônico os filhos de Israel viviam em uma situação que parecia sem perspectivas. Deus se faz presente através do profeta Ezequiel. Aqui, sim, poderá ser dito o que caracteriza um enviado do Senhor (veja todo o item 4). A seguir se poderá abordar a pergunta pela nossa missão nos dias atuais. Cuidado para não indicar tarefas abstraias ou tão grandes que ultrapassem as possibilidades da comunidade reunida!

O Deus da vida é fiel; faz-se presente entre nós e quer nosso decidido agir responsivo.

Bibliografia

KIRST, Nelson. Auxílio homilético sobre Ez 2.3-8a; 3.17-19. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1983. vols. I c II, p. 263-270. BRANDENBURG, Hans. Hesekiel. 3. ed. Giessen/Basel : Brunnen, 1982.

 

Proclamar Libertação 25
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia