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Prédica: Lucas 14.25-33
Leituras: Provérbios 9.7-13 e Filemon 1.10-21
Autor: Ulrico Sperb
Data Litúrgica: 16º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação:23/09/2001
Proclamar Libertação – Volume: XXVI


Três desafios para o discipulado

1. A exclusividade (v. 25-27)

O Brasil é um país de muitos deuses

No dia 22 de abril de 2000, a Rede Globo de Televisão patrocinou em Brasília uma grande festa musical pelos 500 anos do Brasil, que foi transmitida em rede nacional. Durante os intervalos comerciais, autoridades religiosas puderam proclamar suas mensagens ao público presente, enquanto a rede de TV emitia os comerciais. No final do programa, já na madrugada do Domingo de Páscoa, todos os cantores, apresentadores e os religiosos subiram ao palco para cantar o Hino Nacional. Lado a lado, de mãos dadas e erguidas, estavam líderes de diversas religiões. O primeiro da fila foi o Pastor Presidente da Igreja Evangélica Luterana do Brasil. Havia ainda um famoso rabino judeu, um pastor da Igreja Adventista, um monge muçulmano, um índio pagé, uma mãe de santo, o sacerdote de uma religião afro-brasileira – ao todo cerca de doze representantes de religiões. A apresentadora agradeceu pela presença deles e disse:

– Como vimos, o Brasil é um país que tem muitos deuses. Vamos pedir que estes deuses se unam para fazer do Brasil um país mais feliz…

O Deus, Pai de Jesus Cristo, neste caso, foi colocado no mesmo plano dos outros deuses. Há 500 anos, os descobridores/invasores quiseram impor o seu Deus cristão. Hoje, este Deus estaria entre outros deuses à disposição do mercado religioso? Ainda está em vigor o caráter de exclusividade do Deus Pai de nosso Senhor Jesus Cristo? Antes se falava que Deus é um só e, assim, se colocavam todas as religiões sob um denominador comum. Parece que agora já se admitem muitos deuses e, desta forma, nosso Deus fica exprimido entre uma gama indefinida de divindades.

1.2. Odiar a família não indica o tamanho da fé (v. 26)

Em Jo 3.20, é usado o mesmo termo em grego com relação a aborrecer ou odiar a luz como em nosso texto, quando fala em aborrecer ou odiar a família toda e a própria vida. Essa passagem tem sido muito usada para transformar conflitos familiares, motivados por discussões sobre a prática da fé, em indicadores sobre o tamanho da fé. A adesão a uma determinada corrente teológica diferente ou oposta à dos familiares já conduziu a muitos dissabores. Nesses casos, quanto maior a convicção (ou será fanatismo?), tanto maior o orgulho pelo rompimento de laços de família. Em minha experiência observei que geralmente essas pessoas esquecem o restante do versículo: aborrece… e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. O conflito familiar até que pode ser bom para o ego do crente. Mas o conflito com a própria consciência e o próprio caráter, ou seja, a auto-crítica -sobre isto não se cogita.

Certo é: a) O próprio Jesus teve dificuldades em seu convívio familiar (Mc 3.21); b) também em outros contextos Jesus falou sobre o rompimento de laços familiares por sua causa (Lc 12.52-53); c) os primeiros cristãos viveram e conviveram em um ambiente completamente hostil à fé cristã. Não se trata, portanto, de confronto de cristãos com cristãos, mas de pessoas de fé cristã que devem comprovar sua fé num contexto alheio ou contrário ao Evangelho.

1.3. Ser discípulo significa libertar-se de amarras

O v. 26 deve ser entendido a partir do Jesus que fala em amar inclusive os inimigos (Mt 5.43-44, onde no grego é usado o mesmo termo que é traduzido uma vez com odiar e outra vez com aborrecer; vide também Lc 6.32-36).

O escritor judeu Martin Gray escreve:

Os algozes e a força bruta haviam penetrado em minha vida, ((liando eu apenas era um adolescente. Muitas vezes me colocaram contra um muro, apontando seus fuzis contra mim e berraram: 'Quem e você?' Assim me obrigaram a me auto-afirmar. Como judeu e como ser humano. Meus inimigos, meus algozes, eu posso agradecer a vocês pelos ensinamentos que me deram. Eu vi como um deles apertava os lábios, com o prazer de matar, e se jogou em cima de um de nós. Eu vi como eles arrancavam as crianças de suas mães. Eu vi como eles se brigavam pelo ouro roubado. Então eu soube que dentro do ser humano habita uma besta-fera e que a nossa vida consiste em não permitir que ela nos domine. Eu corri o perigo de esta fera me dominar, de ela se esconder atrás de minha aparência, de deixar que ela assumisse meus traços pessoais.

Seguir a Cristo tem esta consequência boa: libertação de tudo que prende e impede a vida digna. Pode ser a família. Mas também são os empecilhos íntimos do próprio caráter.

1.4. Tomar a cruz não é só carregar um peso

Em diversos momentos, Jesus fala em tomar ou carregar a própria cruz (Mt 10.38; 16.24; Mc 8.34; Lc 9.23). Na linguagem popular, carregar uma cruz tornou-se sinónimo de levar um pesado fardo. No entanto, é necessário lembrar-se de que a cruz não somente significa algo difícil e pesado. É na cruz que Jesus Cristo venceu o mais difícil, ou seja, a morte.

Tomar a cruz, portanto, também implica ficar livre dos pesos mais difíceis, que impedem uma caminhada livre na vida. O sofrimento e a libertação são as marcas da cruz. A passagem para o nascer ou o renascer acarreta sofrimento: É preciso sair da segurança do útero materno ou do mundinho em que a gente mesmo se criou. Mas também significa libertação: Ávida após o parto é muito gostosa, bem como o novo jeito de viver como discípulo ou discípula de Cristo.

Tomar a cruz também consiste em um caráter de exclusividade; pois quem carrega sua cruz não pode ser discípulo de nenhum outro mestre que não seja o Cristo crucificado.

2. A previdência (v. 28-30)

2.1. Jesus tem humor

A figura do construtor imprevidente chega a ser humorística. Até parece piada alguém começar uma obra sem saber se terá recursos suficientes para concluí-la. Não fossem os muitos esqueletos de concreto espalhados pelo Brasil, poderíamos pensar que Jesus estaria se referindo a algo que jamais acontece. Assim como o construtor da torre que só consegue fazer o alicerce, também os nossos governantes se expõem ao ridículo com suas obras inacabadas.

2.2. Ser discípulo significa assumir um risco calculado

O construtor previdente lança os alicerces de sua torre e, numa antevisão, já vislumbra a obra concluída, porque sabe que tem os recursos para chegar lá. O discípulo previdente dispõe-se a seguir a Jesus. Sabe que terá dificuldades durante a caminhada. Mas também está ciente da promessa e da esperança de que sua vida está no rumo certo e chegará no alvo mais precioso. Ser discípulo ou discípula de Cristo significa ter um bom plano de vida.

3. A prudência (v. 31-33)

3.1. Na guerra não vale somente a coragem

Jesus está falando a um público acostumado à guerra. Assistir um rei preparar-se para combater outro fazia parte da vida dos cidadãos. Por isso, a imagem do rei que busca um acordo de paz com outro que tem o dobro de soldados soa lógica aos ouvintes.

A consequência que é tirada desta figura, no entanto, parece não se coadunar com o que foi dito. Aqui não se trata de derrotismo: como não é possível abater o inimigo, aliar-se ou até sujeitar-se a ele. O v. 33 só pode ser entendido quando se analisa o que significa para um rei rebaixar-se diante de outro e negociar os termos de paz com ele. Se um rei pode ser obrigado a despojar-se de todo e qualquer orgulho, porque não tem forças para combater seu inimigo, então o discípulo de Cristo deve estar muito mais disposto a desvestir todas as suas amarras que o impedem de seguir livremente o seu mestre.

3.2. Ser discípulo significa investir na sabedoria

Para Jesus, portanto, um rei que não se joga loucamente numa batalha que de princípio já está perdida é um sábio e não um derrotado. Assim também um discípulo que renuncia a tudo o que tem faz um gesto de sabedoria. É mais importante ser do que ter – isto também fica claro na história do jovem rico (Mt 19.16-22 e par.).

A Leitura do Antigo Testamento, prevista para este Domingo, fala da sabedoria que provém da total aceitação de Deus. Incluir Deus na vida é agir com prudência.

4. O culto

4.1. As orações

Confissão dos pecados (mãos juntas e cabeça inclinada para baixo, como gesto de humildade. A Comunidade repete, quando a pessoa encarregada da liturgia diz: Senhor, tem piedade de nós…)

L – Senhor Deus, nosso Pai, nós te agradecemos porque estamos diante de ti e tu não nos rejeitas. Com toda a humildade te confessamos que por meio do que dissemos ou deixamos de dizer, fizemos ou deixamos de fazer, em muitos momentos te negamos. Em lugar de gestos fraternos de amor, praticamos atos de rejeição e repulsa. Ao invés de palavras carinhosas, pronunciamos palavras agressivas, raivosas ou indecorosas. Perdoa-nos pelo que não deveríamos ser e ajuda-nos a ser assim como tu queres que sejamos. Nós clamamos: Senhor, tem piedade de nós!

C – Senhor, tem piedade de nós!

L – Jesus Cristo, nosso Salvador, nós te agradecemos porque nos aceitas assim como somos. Justamente por isso pedimos o teu perdão, porque em muitas ocasiões deixamos de te seguir e fomos atrás de outras propostas tentadoras. Nós te aceitamos como Mestre em muitos assuntos de nossa vida. Mas para muitas coisas que fazemos não aceitamos teus ensinamentos. Perdoa-nos quando falhamos e ajuda-nos a ser fiéis discípulos e discípulas de ti. Nós clamamos: Cristo, tem piedade de nós!

C – Cristo, tem piedade de nós!

L – Espírito Santo, nosso Consolador, nós te agradecemos porque tu nos acompanhas pela vida afora. Pedimos perdão quando em muitas oportunidades rejeitamos o caminho que nos mostras e seguimos nossos próprios interesses ou aceitamos rumos que nos afastam de ti. Ao Trino Deus rogamos e clamamos com fervor: Senhor, tem piedade de nós!

C – Senhor, tem piedade de nós!
(Para reforçar o pedido de perdão, a comunidade pode cantar o Kyrie eleison no final da oração.)

Oração de coleta (antebraços estendidos para frente e a palma da mão aberta para cima, como gesto que simboliza a dependência de Deus)

Bondoso Deus, nosso querido Pai! Queremos agora anunciar e ouvir a tua Palavra. Que ela penetre em nosso íntimo e transforme o nosso ser. Que ela mude aquilo que está errado dentro de nós. Que ela nos deixe inquietos e com uma grande vontade de ser bons seguidores e boas seguidoras de teu amado Filho Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador. Amém.

Oração comunitária (de mãos dadas, inclusive durante o Pai-nosso, como gesto que simboliza a unidade da comunidade. A comunidade repete, quando a pessoa encarregada da liturgia diz: Vem a nós, Senhor!)

L – Senhor Deus, que cuidas de nós como um bondoso Pai e nos amas como uma carinhosa Mãe! Agradecemos-te pelas ricas bênçãos que nos concedes, por causa do teu imenso amor, sem nenhum mérito nosso. Louvamos-te por seres nosso único e verdadeiro Deus. Pedimos-te pela nossa vida: que ela seja preenchida por ti. Nós te suplicamos: vem a nós, Senhor!

C – Vem a nós, Senhor!

L – Imploramos pelas nossas pessoas queridas que estão perto ou longe. Cuida delas com muito amor. Protege-as de todo dano ou mal. Pensamos em nossos familiares e nas pessoas amigas, com as quais gostamos de conviver. Nós te suplicamos: vem a nós, Senhor!

C – Vem a nós, Senhor!

L – Pedimos pelo nosso povo e pela nossa pátria. Que o Brasil seja abençoado por ti. Que perdoes toda idolatria que é praticada. Que concedas aos teus discípulos e às tuas discípulas vigor e sabedoria para testemunhar de maneira convincente o evangelho de Jesus Cristo. Nós te suplicamos: vem a nós, Senhor!

C – Vem a nós, Senhor!

L – Senhor, dá-nos prudência para a nossa ação cristã, previdência para os nossos planos como tua igreja, exclusividade para a nossa fé em ti. Nós te rogamos tudo isto, impulsionados pelo Espírito Santo e em nome de Jesus Cristo, o qual nos ensinou a orar com toda a confiança:

C – Pai nosso…

4.2. As leituras bíblicas

Provérbios 9.7-13 – No mundo, as pessoas sabidas muitas vezes parecem as vencedoras. Elas sabem como se beneficiar a si mesmas. As pessoas sábias, porém, possuem a verdadeira sabedoria da vida, pois sabem que o valor da vida reside em viver a partir dos ensinamentos daquele que dá a vida.

Filemom 1.10-21 – Apesar de ser escravo na condição social, Filemom se torna irmão através da fé em Jesus Cristo. O discipulado cria novas relações que vencem as barreiras sociais.

4.3. A pregação

Sugiro seguir o esquema da própria perícope, que apresenta três desafios para o discipulado, conforme as explanações do item l desta meditação:

A exclusividade – não e possível seguir a Jesus só para certos assuntos e, para outros, apelar para diferentes religiões ou divindades. Um exemplo limítrofe: sepultar um ente querido de maneira cristã e, ao mesmo tempo, colocar sua fé na reencarnação. A exclusividade pode acarretar um conflito consigo mesmo e com as pessoas com as quais se convive. Mas não necessariamente tem que gerar brigas familiares, como já foi explicado acima.

A previdência – também é possível falar em planejamento. A imagem da construção (ou não) da torre encerra algo muito importante: a função da torre é ser um lugar de vigília.

Seguir a Cristo significa estar alerta e não fazer tudo às cegas. Jesus não quer que o sigamos cegamente. O mundo de hoje exige cristãos vigilantes, diante das muitas correntes que ameaçam deturpar a fé cristã.

A prudência – é preciso estar consciente de que seguir a Cristo implica ter cautela. Ser prudente, para o discípulo de Cristo, significa analisar com muita sabedoria o campo de missão. Mas também engloba a renúncia aos laços e às amarras do egoísmo e do preconceito, que impedem a livre proclamação do evangelho.

Bibliografia

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MASSON, C. O termo Cruz. In: ALLMEN, Jean-Jacques von (Dir.). Vocabulário bíblico. São Paulo : ASTE, 1963. p. 62-64.
SCHMIDT, Ervino. Meditação sobre Lc 14.25-33. In: KAICK, Baldur van, NÖR, Ricardo (Coords.). Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1982. p. 237-240.
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