Prédica: Salmos 111
Leituras: Hebreus 2.10-18 e Lucas 2.41-52
Autor: Baldur van Kaick
Data Litúrgica: 1º. Domingo após Natal (Silvestre)
Data da Pregação: 31/12/2000
Proclamar Libertação – Volume: XXVI
l. Introdução
No dia 31 de dezembro de 2000 termina o segundo milênio. Na passagem de milênio, como comunidade de Jesus Cristo somos perguntados como celebraremos este acontecimento. Nos festejos dos 500 anos de descobrimento do Brasil, a Igreja Católica pediu perdão nos povos indígenas pelo massacre a que foram submetidos desde l 500 e aos negros pela escravidão. Quanto ao mais, houve falta de clareza sobre o que deveria ter acontecido. Há o que celebrar no dia 3l de dezembro de 2000? Como será o culto na comunidade cristã? Eu convido a olhar para o texto, a fim de que ele nos ilumine.
2. O texto
O texto proposto para a pregação é o Salmo 111. Trata-se de um salmo didático, no qual cada meia estrofe de cada versículo inicia com outra letra do alfabeto hebraico, começando com a primeira até a última. Quanto ao conteúdo, o salmo enumera as principais obras de Deus na história de Israel. Como salmo didático, ele pode ter sido usado na alfabetização de crianças. Estudando de cor (de coração) o salmo, as crianças aprendiam simultaneamente o alfabto e as principais maravilhas de Deus na história de seu povo.
v. 1 – Aleluia! De todo o coração renderei graças ao Senhor, na companhia dos justos e na assembleia.
O título Aleluia (Louvai ao Senhor!) não faz parte do corpo original do salmo. Nas palavras de todo o coração renderei graças ao Senhor, percebemos que o salmo é de ação de graças. A pessoa que diz o salmo quer agradecer a Deus. A expressão de Lodo o coração revela que não se trata de um agradecimento formal. O lugar do agradecimento é o templo. Para Israel, o templo é o lugar onde o Deus eterno está presente. Lá ele pode ser louvado. Na companhia dos justos e na assembleia lembra que o louvor ocorre no meio da comunidade reunida. Em verdade, a pessoa que se expressa neste salmo quer motivar a comunidade para uma nova maneira de agradecer a Deus.
v. 2 – Grandes são as obras do Senhor, consideradas por todos os que nelas se comprazem.
Este versículo explica a razão do canto de louvor a Deus: grandes são as obras do Senhor. A pessoa que aqui se manifesta fez a descoberta de que Deus age na história. Ele é o sujeito atrás de acontecimentos maravilhosos. Em seguida serão mencionados lugares e momentos concretos: o Egito, o deserto, o Sinai, a posse da terra. Lá Deus mostrou as suas obras. – H.- J. Kraus traduz a parte final do versículo da seguinte maneira: que podem ser experimentadas por todos os que têm alegria nelas. Com isso é afirmado que o agir de Deus pode ser percebido. Contudo, Deus não atropela ninguém. É preciso ter prazer em suas obras, caso contrário não se consegue enxergá-las.
v. 3 – Em suas obras há glória e majestade, e a sua justiça permanece para sempre.
Conforme o salmista, no agir de Deus podem ser reconhecidas a sua glória e majestade. As obras de Deus têm peso! Elas são notáveis! Da mesma maneira como o brilho da glória do Senhor se refletiu sobre o rosto de Moisés, o reflexo deste brilho pode ser percebido em suas obras. – A justiça de Deus é sua fidelidade à aliança. Deus se escolheu a si mesmo para ser o Deus deste povo e escolheu este povo, que foi o menor de todos os povos, para ser o seu povo. Ele será sempre fiel à aliança feita com Israel. Nisso consiste a sua justiça. A pessoa que fala o salmo reconhece isso com gratidão.
v. 4 – Ele fez memoráveis/ inesquecíveis as suas maravilhas; benigno e misericordioso é o Senhor.
Para que suas obras não caiam no esquecimento, o próprio Deus criou um espaço onde seu agir na história deverá ser recordado. Este espaço é o culto (Êx 12.14). Principalmente nas grandes festas, as obras de Deus recordadas. Paulo perguntará mais tarde: Como crerão naquele de quem nunca ouviram? (Rm 10.14). O anúncio de acontecimentos concluídos é vital para a fé. Ouvindo o que Deus fez no passado, cada geração aprende quem é Deus no presente. Há conteúdos de fé que precisam ser transmitidos de geração em geração. Como Deus instituiu mais tarde o ministério da reconciliação (2 Co 5.18), já no antigo povo de Deus ele instituiu o culto como lugar onde suas maravilhas devem ser anunciadas. O seu povo precisa saber que o Deus misericordioso está presente na história, pois a presença de Deus é a sua força.
v. 5 Dá sustento aos que o temem; lembrar-se-á sempre da sua aliança.
Com gratidão, o salmista recorda a presença amorosa de Deus naqueles períodos em que Israel andava como um grupo de refugiados pelo deserto (Êx 16 e Nm 11). Deus não desamparou o seu povo. Assim, ele mostrou sua fidelidade à aliança. Mas o salmista também destaca que o Deus eterno dá sustento aos que o temem. O temor de Deus é uma atitude básica na relação com Deus. Quem não teme a Deus não pode esperar o seu socorro.
v. 6 – Manifesta ao seu povo o poder das suas obras, dando-lhe a herança das nações.
Dando sequência à enumeração das obras de Deus, este membro do povo de Deus recorda a conquista da terra e vê na posse da terra uma dádiva de Deus. Ele reconhece que, por direito, a terra de Canaã pertencia a outras nações, mas que Deus a deu a seu povo, que com suas próprias forças não teria acesso a esta terra. Deus é um Deus que de maneira inesperada ajuda um povo sem poder no concerto das nações. A posse da terra é para este membro do povo de Deus uma manifestação concreta do poder de Deus.
vv. 7-8 – As obras de suas mãos são verdade e justiça; fiéis todos os seus preceitos. Estáveis são eles para todo o sempre, instituídos em fidelidade e retidão.
Depois de testemunhar que Deus cuida da fidelidade e da justiça, o salmista declara que os seus mandamentos são confiáveis. Eles são balizas que Deus dá a seu povo. Os mandamentos não são passageiros, mas duradouros. Dentro do pluralismo de valores das nações, eles dão a resposta a uma pergunta básica de Israel: Como devemos viver? Por meio deles, Deus ensina uma maneira estruturada de viver com Deus e com o próximo. Os mandamentos devem ser seguidos com retidão e fidelidade. Eles são a base para uma vida abençoada.
v. 9 – Enviou ao seu povo a redenção; estabeleceu para sempre a sua aliança; santo e tremendo é o seu nome.
Com este versículo, o salmista destaca com gratidão aquele agir de Deus que é o agir primeiro de Deus com o seu povo: a libertação do Egito. O povo que fez a experiência de viver nos porões da sociedade do Egito, experimentou que Deus o tirou da casa de servidão. Concluindo seu agradecimento, este membro do povo de Deus que aqui se expressa declara a santidade do nome de Deus. O Deus que se revelou na história de seu povo como o sujeito da história é Deus santo. Tudo o que ele faz é bom e verdadeiro. Mas ele também é tremendo. Quem não o teme experimenta a sua ira. Deus não pode ser colocado em uma fórmula e domesticado.
v. 10 – O temor do Senhor é o princípio da sabedoria; revelam prudência todos os que a praticam. O seu louvor permanece para sempre.
Em um mundo em que há tanto medo de pessoas, o salmista proclama que o único que deve ser temido é Deus. Quem teme a Deus abandona as manias de grandeza e aprende a verdadeira sabedoria. A verdadeira sabedoria na vida se adquire pelo temor a Deus. E este Deus, que devemos temer e em quem podemos confiar, é quem o salmista exalta de todo o coração, proclamando: o seu louvor permanece para sempre.
A segunda leitura do dia 31 de dezembro é Hebreus 2.10-18. Esta leitura destaca que Jesus é o autor de nossa salvação. Ele assumiu nossa carne e nosso sangue para destruir o poder do diabo. Para a Carta aos Hebreus, o diabo usa a morte para nos escravizar. Por causa do pavor da morte, nós nos vendemos. Por causa do pavor da morte, silenciamos onde deveríamos falar. O pavor da morte nos torna escravos uma vida inteira. Jesus – por sua morte – nos veio libertar do pavor da morte. Nesta obra consiste sua misericórdia. A Carta aos Hebreus proclama a libertação de uma escravidão que nos torna medrosos e manipuláveis e anuncia um Jesus que é nosso irmão, mas que é, ao mesmo tempo, um sumo sacerdote poderoso para nos ajudar. A cristologia de Hb é importante para o nosso tempo.
A terceira leitura é Lucas 2.41-52. Lc apresenta Jesus, aos 12 anos, na casa do Pai, e o mostra crescendo em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens.
3. Reflexões homiléticas
Com o Salmo 111, o culto do dia 31 de dezembro fica caracterizado como culto de ação de graças. Como o salmista louva a Deus por suas obras na história de seu povo, assim no dia 31 de dezembro somos convidados a agradecer e louvar a Deus por suas obras em nossa história. O salmo nos ajuda a reconhecer na história do milênio que passou o agir poderoso e misericordioso de Deus. É com o anúncio das obras de Deus no milênio que termina que nossa prédica será evangélica. É neste sentido que o Salmo 111 nos ilumina.
Para a pessoa que se expressa no salmo, os lugares centrais do agir de Deus são o Egito e o deserto, o monte Sinai e a terra de Canaã. Lá Deus se revelou a Israel como Deus misericordioso. Os lugares e acontecimentos centrais de nossa fé são Belém e Gólgota, a manhã Páscoa e Pentecostes. Nossa gratidão incluirá esses lugares e acontecimentos.
O salmo menciona períodos em que Israel viveu nos porões no Egito, como grupo de refugiados no deserto e como povo sem poder político diante da terra de Canaã. Mas exatamente nesses períodos Israel experimentou a interferência salvadora de Deus. Nós temos que perguntar onde nós vivemos em situações idênticas e experimentamos a presença libertadora de Deus. O salmo nos dá a liberdade de olhar para os nossos desamparos e para descobrir nesses períodos em que nossa vida foi ameaçada de muitas maneiras o agir libertador de Deus.
Creio, contudo, que não poderemos começar o culto de fim de milênio sem a confissão de nossa culpa e o pedido de perdão a Deus. Mas não deveremos fazer da denúncia de crimes e de atrocidades o conteúdo principal da prédica, pois se assim o fizermos, deixaremos a comunidade no cativeiro do pecado humano e da desesperança. E ficaremos devendo a comunidade o anúncio da presença poderosa e salvadora de Deus em meio à história do pecado humano. É na capacidade de abrir os nossos olhos para as grandes obras de Deus em nossa história que reside o poder deste texto. E é na confissão de que Deus e o sujeito da história que reside a força de nossa fé. É dessa força que nasce o compromisso com a dignidade humana e a paz, no novo milênio.
Para a prédica no dia 31 de dezembro penso ser importante lembrar que estamos no fim do segundo milénio e que o antigo povo de Deus usava as palavras desse salmo para expressar sua gratidão a Deus. Da mesma maneira nós hoje queremos expressar nossa gratidão a Deus por suas obras em nossa vida e história. Podemos destacar as obras da história da salvação que Israel recordava com gratidão e em seguida acentuar o que nós recordamos com ações de graças: o agir de Deus em Jesus Cristo. Na sequência, podemos apontar para acontecimentos no milénio nos quais também vemos o agir de Deus. Para nós é de importância a Reforma de Lutero e, através dela, a redescoberta do evangelho. Também a missão na África e na Ásia, neste milénio. Lembraria sem dúvida o movimento ecuménico. Depois de séculos de separação, as igrejas começaram a dialogar de novo e a trabalhar pela reconciliação. Mencionaria os avanços na medicina e em outras áreas. Muitas vezes, só vemos a realidade do mundo, mas atrás da realidade visível está presente outra realidade: o Deus poderoso e misericordioso. Convidaria a comunidade reunida para descobrir a presença de Deus em nossa história e agradecer por suas obras neste milénio e em nossas vidas.
Também acentuaria que há acontecimentos dos quais não podemos nos orgulhar. No Brasil, o massacre dos povos indígenas e a escravidão. Hoje, a fome e a injustiça no mundo. São fatos que nos levam a reconhecer nossa culpa e a pedir perdão a Deus e a nos comprometer com a justiça e com o trabalho por um novo milénio sem exclusões.
Mas recordaria também, com o salmista, aqueles períodos nos quais nossa vida foi ameaçada de muitas maneiras – e Deus nos socorreu! Poderíamos apontar aqui também para os refugiados no mundo que foram socorridos por organizações humanitárias, etc. Deus usa pessoas e organizações para socorrerem e salvarem. No final da prédica, podemos apontar para o senhorio de Deus. Ele, que se revelou no passado de tantas maneiras como Deus fiel e misericordioso, também se manifestará no terceiro milênio como Deus todo-poderoso e salvador. E o que importa é que temamos a Deus e confi-emos nele sobre todas as coisas, pois isto é o princípio da sabedoria. Como Jesus buscou a casa do Pai, que também nós no terceiro milênio busquemos a casa de Deus para nela nos colocar na sua presença e crescer em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens.
4. Elementos litúrgicos
Oração inicial: O elemento central desta oração deverá ser o pedido de perdão: por termos como luteranos usado a mensagem da justificação por graça e fé para nos acomodar; por temermos o dinheiro, ou a falta de dinheiro, e tantas outras coisas na vida, mas não a Deus; pelo massacre dos povos indígenas neste milénio; pela trans-formação de pessoas humanas em escravos; por nosso mundo injusto, que exclui milhares de pessoas de uma vida com dignidade humana; por não fazermos tudo que está ao nosso alcance para mudar o nosso mundo. Deixar um espaço para que cada pessoa presente faça em silêncio a sua confissão a Deus. – O anúncio do perdão tem que ser transmitido com linguagem que dá o perdão, que o deita sobre a comunidade, do contrário não é anúncio do perdão. Precisamos do perdão para poder celebrar o culto e estar na presença de Deus. E não podemos condicionar o perdão com frases como: se a confissão de vocês foi sincera, então lhes anuncio agora … O que podemos fazer após o anúncio do perdão é dizer sentenças como: vamos alegrar-nos com o perdão de Deus e vamos agora viver como pessoas perdoadas e comprometidas com uma nova maneira de viver e atuar.
Oração de intercessão: Na oração final, devemos interceder. Pela Igreja: que tenha um compromisso com a justiça; que seja sal da terra e luz do mundo; que console os aflitos e chame ao arrependimento os que oprimem. Pelo mundo: lembrar os famintos, pobres, refugiados, velhos, desempregados, crianças de rua, pessoas que vivem nos porões; os povos indígenas; os negros; as pessoas na comunidade com problemas. Pedir que Deus salve e socorra – e despede pessoas e organizações que trabalhem por uma sociedade justa o sem exclusões. Pedir por todas as autoridades, pelos cientistas: que; tenham respeito a Deus, que é o princípio da sabedoria. Pedir para nós mesmos a força para viver conforme os mandamentos, o que; inclui a comunhão com Deus e com o próximo; que não tenhamos a inania de grandeza, mas sejamos humildes e vivamos cheios de confiança em Deus. Terminar com louvor e adoração e mostrar que Deus é o Senhor dos senhores, a nossa única esperança, e que a ele queremos servir.
Ação de graças: Se houver a Ceia do Senhor e nela for usada a liturgia simples do HPD, proponho como oração de ação de graças a seguinte:
É justo que demos graças a ti, Senhor, Deus eterno e todo-poderoso, porque tu és o mesmo ontem e hoje e o serás sempre. Nós te agradecemos pelo segundo milénio. Que revelaste nele a todas as gerações o teu poder e tua misericórdia.
Acima de tudo te damos graças por teu Filho Jesus Cristo, que assumiu a nossa carne e o nosso sangue e nos trouxe – por sua morte e ressurreição – real salvação.
Envia agora o teu Espírito, para que o pão que partimos e o suco da videira que tomamos se tornem para nós o lugar da presença de Cristo. E concede que, ao participarmos da ceia, Jesus Cristo venha a nós e habite em nós, com as forças do alto. Perdoa, Senhor, aos que buscam perdão. Dá esperança aos desesperados. Cura os enfermos. Renova o teu povo que busca a tua mesa, para que – neste novo milénio – seja refúgio para os desabrigados, amparo para os que não têm pão, e para que – através de palavras e atos – testemunhe o teu amor. Dá que participemos desta ceia santa, com fé.
E agora, com toda a Igreja, com anjos e arcanjos, cantamos a ti, que queres ver unido o teu povo, um hino de louvor. Amém.
Em lugar do Santo pode ser cantado HPD 146,1 e 3.
Os hinos escolhidos para este culto devem ser fáceis e marcantes. O culto deveria ter uma equipe que o prepara.
Bibliografia
KRAUS, Hans-Joachim. Psalmen 60-150. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener, 1978. (Biblischer Kommentar Altes Testament).
WEISER, Artur. Die Psalmen III: Psalm 61-150. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1966. (Das Alte Testament Deutsch).