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Prédica: Neemias 11.(1-3)4-6,10-11,16,24-29(30-36)
Leituras: Marcos 9.38-50 e Tiago 5.1-6
Autor: REnatus Porath
Data Litúrgica: 19º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 15/10/2006
Proclamar Libertação – Volume: XXXI

1. Uma lista como texto de prédica?

Depois do filme A lista de Schindler, produzido por Steven Spielberg em 1993, uma nova perspectiva de leitura abriu-se para textos genealógicos e listas intermináveis de nomes de pessoas do Antigo Testamento. A personagem central do filme é o industrial Oskar Schindler, que salva inúmeros judeus da morte certa em campos de concentração nazistas, trazendo-os para sua fábrica. Ele elabora uma lista de nomes de pessoas ameaçadas, submete-as às autoridades coniventes com os desmandos criminosos que atingiram a população judaica durante a Segunda Guerra Mundial. Negocia a libertação dos enumerados em sua lista, nome por nome. Vale-se de todo o seu poder de influência, cultiva estranhas amizades com dirigentes nazistas para salvar pessoas que estavam em sua lista.

Listas podem salvar da morte, integrar a história da salvação, garantir direitos, construir pontes entre passado e futuro, legitimar autoridade, incluir grupos marginalizados no seio da comunidade, podem excluir pessoas tidas como culpadas ou que não preenchem os requisitos para fazer parte de determinada comunidade.

Qual função desempenha a lista de repovoamento de Jerusalém de Ne 11? Neemias faz parte da Obra Historiográfica Cronista, que tem predileção pelo gênero literário de textos genealógicos e listas. Só quem tem interesse especial na pesquisa de árvores genealógicas vai deter-se na leitura dessas partes do AT (1 Cr 1-9: lista genealógica de Adão a Davi; Ed 2: lista dos repatriados; Ne 7: lista dos imigrantes e repatriados da Babilônia; Ne 11 e 12: lista dos moradores de Jerusalém com destaque para os profissionais do templo). Aliás, já na epístola pastoral de 1 Tm 1.4 adverte-se para que ninguém se ocupe com “fábulas e genealogias sem fim”. Portanto, para reler essa lista como palavra de Deus em pleno culto, é necessário que se façam algumas observações preliminares de ordem histórico-literária e histórico-teológica.

2. Situando Neemias 11

O autor da obra cronista deve ser procurado no círculo dos sacerdotes levitas da Jerusalém do pós-exílio no fim do império persa (séc. IV a.C.) ou já no começo do período helenístico por volta de 300 a.C., apesar de que a campanha de Alexandre Magno ainda não seja mencionada. É surpreendente o número de fontes e documentos oriundos dos primórdios da reconstrução do templo (520-515) e da muralha de Jerusalém. Seu interesse vem à tona por meio de omissões, correções e idealizações que ele realiza com a maior liberdade diante das fontes de que dispõe. No centro de seu interesse está a luta pela identidade da comunidade santa diante dos desafios de seu tempo.

Ne 11 e 12 já têm vestígios claros de que são uma composição feita por redatores da obra cronista, que parte do legado cronista para atualizá-lo para um novo contexto. O cronista compõe suas listagens de Ne 11 a partir de 7.1-5a (memórias de Neemias).

Neemias constatava que “a cidade era espaçosa e grande, mas havia pouca gente nela, e as casas não estavam edificadas ainda” (7.4). Ele estava preocupado em tornar a cidade, recém-murada, eficiente para a nova província de Judá tanto em termos administrativos (7.2) como em termos de segurança (7.3). Para tanto, ele precisa tomar medidas para atrair especialmente a liderança para fixar residência na cidade (11.1). Parece que ainda precisou apelar para que voluntários se oferecessem como novos moradores da “nova Jerusalém”. Em todos os casos, o povo dá a sua bênção àquelas pessoas que espontaneamente se dispõem a morar na cidade (11.2).

Essa é a porta de entrada para complementar as memórias de Neemias com novas listas de moradores de Jerusalém. Parece que a pergunta pelo significado da cidade não quer calar; gerações após Neemias têm o dever de retomar essa pergunta e tentar respondê-la para o seu tempo. Só assim se explicam os sinais de um texto original que recebeu algumas adições, lembrando uma casa que foi ampliada para responder a novas necessidades de seus moradores.

O cronista seria aquele que desencadeara esse processo de reedição de documentos históricos e também das próprias memórias de Neemias (1.1-7.5) com a intenção de ajudar sua geração a manter a identidade de sua comunidade, de sua “cidade santa”, juntamente com os arredores na província de Judá. Muros e portões não bastam para preservar a identidade do povo que mora em Jerusalém e nos arredores. Nem estruturas militares e administrativas são suficientes para manter vivo o específico desse povo. É da vida de fé e culto da comunidade que nasce a consciência daquilo que é singular para a existência dessa gente que, desde 538 a.C., aposta na reconstrução de Jerusalém e na reorganização do povo que regressou da Babilônia. Quanto tempo será que separa o cronista e seus redatores daquele reinício paupérrimo? Quantas mudanças não terão ocorrido desde aqueles primórdios até essa geração?

As listas no cap. 11 atestam: é provável que nomes e grupos profissionais oriundos de diferentes épocas constem entre os moradores que deram ou deveriam ter dado sua contribuição para que Jerusalém e sua comunidade, residente em Jerusalém (vv. 4b-19) e nos arredores (vv. 20, 25-35), continuassem fiéis à sua missão.

Uma versão que se atém a uma descrição mais sucinta dos procedimentos para ocupar a Jerusalém espaçosa, mas desabitada (7.5), é reconhe- cida nos vv.1-2, 20, 25a, 36, e que normalmente é atribuída ao cronista com seus novos materiais e sua ênfase teológica.

Seguindo os passos do cronista, um novo editor parece acrescentar novos documentos oriundos de arquivos desconhecidos e que agora são identificáveis nos vv. 4-19 e 25b-35. Esse mesmo editor deve ser o responsável pelas notas explicativas dos vv. 21-24 sobre as funções a serem desempenhadas por pessoas ou famílias tanto no âmbito secular como sagrado.

Observe-se que a mesma lista aparece mais uma vez em 1 Cr 9 com algumas diferenças. É pouco produtivo tentar refazer a harmonia entre as listas ou encontrar uma explicação por que uma lista tem nomes a mais e outra a menos. Como se percebe, o texto para a prédica é uma seleção feita especialmente dessa lista complementar com suas notas: cap.11: vv. 4-6, 10-11, 16, 24-29. O critério para essa seleção parece ter sido o de poupar a comunidade da enumeração completa de nomes sem fim e ater-se à descrição de cargos e funções desempenhados por grupos profissionais e famílias, ora da esfera “secular ”, ora da esfera cultual. Apesar desse recorte de versículos, deve-se ter em mente que uma leitura do cap. 11 não faz essa diferenciação de camadas que a pesquisa detectou, mas quer entender o texto final do vv. 1 ao 36. Como comunidade de Jesus Cristo que quer reler Ne 11, não o fará sem acrescentar as suas próprias notas explicativas.

3. Um novo sentido em novo contexto

O horizonte de sentido do texto só se fundirá com o nosso horizonte quando perguntas e respostas encontradas no testemunho bíblico têm algo a dizer para nós como novos destinatários de Ne 11. Mas um olhar sobre o contexto, em que Ne 11 fazia sentido, torna-se necessário. Esse talvez deva ser descrito como período de mudanças consideráveis na Jerusalém e na província de Judá do judaísmo incipiente. O período persa caracterizou-se por uma certa autonomia na administração interna da província dos judeus e por uma ampla liberdade no cuidado das questões religiosas. A elite sacerdotal do período do segundo templo crescera em poder e influência. Aos persas interessavam os tributos recolhidos pontualmente dos territórios dominados.

Com o advento de Alexandre Magno (333 a.C.) e seus “diádocos”, uma mudança profunda haveria de ocorrer, especialmente na Palestina. A cultura urbana helenística, introduzida pelos novos dominadores, traria o desenvolvimento e a fundação de inúmeras cidades construídas nos moldes da “pólis grega”. Essa admirável presença helenística ainda pode ser documentada em muitos monumentos escavados por expedições arqueológicas. Esse avanço cultural significava simultaneamente o avanço do profano, característica da nova cultura, e nem Jerusalém seria poupada. A cidade santa (Ne 11.1, 18; cf. Is 48.2; 52.1; Dn 9.24), morada do Deus de Israel, o Deus do céu, estava sendo invadida pela novidade helenística, que pouco se importava com o que então a comunidade de fé confessava e celebrava.

O cronista pertence àqueles que via no retorno dos repatriados e na reorganização da vida civil e cúltica em Jerusalém, possibilitados pelo edito de Ciro, o sinal concreto do reinado de Deus (1 Cr 28.5; 2 Cr 26.16ss), interrompido durante os anos do exílio e agora retomado por iniciativa divina.

Antes dele, ainda em plena Babilônia, o Deutero-Isaías (~539 a.C.) anunciava a ascensão do Deus de Israel ao trono de seu reinado universal (52.7-10). Os deuses babilônios não tinham como deter o novo pretendente a Deus-rei. Os sinais concretos desse reinado de Yahveh, o deus da pequena comunidade de exilados judeus, acontecem por intermédio da “palavra que não volta vazia” para seu emissor (Is 55.11), sem que se materialize em ações. Sinais visíveis desse reinado é o retorno de exilados à terra de origem e a Sião em ruínas sendo reconstruída e repovoada, fazendo jus de novo ao atributo “cidade santa” (Is 40.9-11; 48.2; 52.1). Até o bastão imperialista, que os babilônios têm que passar para os persas, é ação da palavra do novo Deus-rei, tanto quanto a Jerusalém reedificada e o templo reconstruído (Is 44.28-45.7; cf. 40.23-24). As boas-novas do anunciado reino do Deus desse povo, sem terra e com sua identidade ameaçada na Babilônia, foram o ponto de partida para um processo, de um lento recompor-se da vida civil e religiosa na terra dos pais, que resultou na reorganização do povo de Deus no pós-exílio e sua teocracia administrada a partir da morada do Deus do céu aqui na terra, o templo em Jerusalém.

O cronista vive dessa confissão de fé no reinado de Deus e de sua palavra feito lei. O fato de enxergar em Jerusalém um lugar terrestre do trono de Yahveh não lhe impedia uma análise realista de seu espaço e tempo. Com todas as letras, ele articula em sua lamentação a situação deplorável em que a comunidade vivia em sua própria terra por causa da exploração dos mandatários estrangeiros de seu tempo (Ne 9.36s). A comunidade santa, que se reúne para confessar o reinado de Deus por meio de celebrações de ação de graças e de outros cantos de louvor, que se dispõe a orar a seu Deus, a ler e ouvir a lei, vê na teocracia do pós-exílio sinais do reinado de Deus, sem deixar de lutar e esperar pela implantação integral do domínio de Deus em todas as áreas da vida social, política e cultual. Mesmo assim, o cronista está mais perto daquilo que chamamos de um defensor da escatologia presente do que da futura.

4. Ser comunidade santa – eis sua vocação!

Não é indiferente quem povoa essa cidade, quem a administra e ocupa seus cargos de mando, quem é o sumo sacerdote no templo, quem é o responsável pela vida de culto nas suas mais diferentes expressões (nos sacrifícios com sua diversidade, no louvor por meio de voz e instrumentos musicais); não é irrelevante quem pode ler e ensinar a lei para a comunidade, quem cuida das contribuições, dos dízimos e outras ofertas para a casa de Deus, quem zela pela segurança do templo e da cidade.

Em resumo, não é indiferente quem são os agentes designados para que a cidade continue santa, continue sinal do reino de Deus na terra e fonte irradiadora da vontade divina por intermédio da lei.

A lista do povoamento da “cidade santa” reflete algo da dinâmica interna de uma comunidade chamada para ser sinal do reinado de Deus ou, para usar a expressão do próprio cronista, ser a cidade que abriga a “casa de Deus” na terra. Para não deixar dúvida de que Deus estava privilegiando o templo como ponto de contato entre céus e terra, o próprio sumo sacerdote é designado com o título naguid (líder, chefe, príncipe) da casa de Deus (Ne 11.11). Nos primórdios da monarquia, Davi recebe o título naguid do povo de Israel (2 Sm 7.8); aqui o sumo sacerdote cresce em importância, chegando a ocupar uma função similar. Será que o cronista, com sua teologia da presença “parcial” do reinado de Yahveh, não está abdicando da esperança messiânica ao atribuir uma titulação davídica ao ocupante do cargo de sumo sacerdote? As funções seculares e político-militares necessárias para a cidade não são ignoradas (Ne 11.6b, 9, 14, 24); é mencionado especificamente um homem de nome Petaías, que representava os interesses do rei estrangeiro (persa ou seu sucessor?) junto à província de Judá e vice-versa. Apesar de ocupar um cargo equivalente ao de Neemias, nenhuma legitimação de ordem teológica lhe é acrescentada (v. 24). O secular e político parecem estar a serviço do teocrático que se configura a partir da casa de Deus.

Observe-se, em contrapartida, o espaço reservado para os cargos necessários para a vida comunitária em torno da casa de Deus e sua respectiva legitimação (vv. 10-12, 15-19, 20-23). O grupo dos levitas ganha todo o espaço possível na lista. Isso naturalmente tem algo a ver com o cronista e seus


sucessores na editoração da grande obra literária, senão oriundos do círculo dos levitas terão sido pessoas próximas ao levitismo. Nem tudo se explica a partir da autoria e de seus interesses partidários. Os levitas representam, ao lado das atividades cúltico-cerimoniais do templo, realizadas predominantemente por sacerdotes (alto clero?), as atividades educacionais centradas no ensino da lei (Ne 8.9-12). Parece que a lista claramente privilegia a atividade efetivamente exercida pelos levitas. Só que suas atividades são, por um lado, de ordem mais administrativa, cuidado do armazenamento do que se trazia como oferta para o templo, tratando-se provavelmente dos principais produtos da terra: cereal, vinho e óleo de oliva (v. 16). Por outro lado, os levitas ganham um destaque especial como cantores do templo. A associação dos cantores, já conhecida desde o tempo da monarquia, deve ter sido assimilada pelos levitas no período do pós-exílio. Chama atenção que, numa obra literária, por vezes tão árida como a do cronista, o templo é descrito como espaço para o louvor e a ação de graças, dirigidos a Deus, a ponto de manter associações de cantores e instrumentistas (vv. 17, 23). Cantar os feitos do “Deus do perdão, cheio de piedade e compaixão” no passado e no presente, lamentar sua infidelidade e falta de gratidão e renovar o compromisso de fidelidade a Deus e sua lei parecem ter sido elementos inalienáveis pelos quais o cronista, com sua obra, procura lutar (Ne 9 e 10).

Juntamente com o último grupo de profissionais ligado ao templo, o dos porteiros (v. 19), passa-se a idéia de que a comunidade santa era composta, basicamente, por diferentes grupos de profissionais do templo.

Onde ficou a comunidade dos não-ordenados para algum serviço específico do templo? O texto refere-se a eles como o “restante de Israel” (Ne 11.1, 20), que mora em cidades e aldeias fora de Jerusalém, na província de Judá. Não deixam de pertencer à comunidade santa só porque não estão na lista dos moradores efetivos da capital da província. Essa parece ser a função de listar as aldeias nos vv. 25-35 para encerrar o cap. 11. Curioso é que nessa listagem final apareçam localidades que só no período dos macabeus, em 164 a.C., foram reconquistados por Israel; na época do cronista, a província de Judá não incluía o sul da região, o Neguebe. Será um sinal de datação tardia dessa lista complementar após o povoamento de Jerusalém? Ou será um sinal daquilo que o cronista espera para seu povo: a dilatação das fronteiras até o Neguebe? Seria, então, mais uma demonstração do inconformismo do cronista diante de uma realidade em que seu povo ocupa apenas uma parte da terra que pertencia aos pais. O reinado de Deus, exercido a partir de sua casa em Jerusalém, ainda não conseguiu devolver toda a terra a que seu povo tem direito. Esse ato de governo do Deus-rei ainda está por realizar-se.

Como é descrita a relação do restante do povo que vive fora da cidade santa com sua casa de Deus? Estaria essa população das aldeias excluída da comunidade santa? Ela está perfeitamente integrada.

O cronista utiliza-se do imaginário “Israel no deserto” para descrever o status da população que vive fora dos muros e distante da casa de Deus. O povo das aldeias está como que acampado ao redor da tenda do encontro (v. 30b, cf. 1 Cr 9.18-21; 2 Cr 31.1) e com isso poderá participar da presença benéfica de Deus no templo/ tenda do encontro, agora erguido na Jerusalém reconstruída.

Em resumo, por que essa insistência em reafirmar o status de Jerusalém e sua população com o qualificativo “santo”? Por que esse esforço em dizer que o “restante de Israel” também participa da comunidade santa?

Um novo espírito está soprando em Jerusalém e em sua comunidade, ameaçando sua identidade como cidade a partir de onde o reinado de Deus é exercido. A cultura helenística está conquistando até parte da elite sacer- dotal. Os novos valores da cultura grega parecem ganhar espaço. A comunidade está deixando de ser sinal do reinado de Deus na terra para tornar-se mais um pólo irradiador do espírito helenístico na Palestina. À sua maneira, o cronista quer barrar a entrada “de toda a estrangeirice” (Ne 13.30). Aliás, só pertence ao povo quem passou pelo fogo depurador do exílio, só quem experimentou a condenação do desterro babilônico, pessoalmente ou nos antepassados. Novamente a lista genealógica deverá atestar a verdadeira pertença ao povo de Deus. Daí sua insistência em permitir que apenas as tribos de Judá e Benjamim sejam os legítimos herdeiros da terra, integrantes do novo povo de Deus.

O programa do cronista inclui, na sua luta pela identidade, o distanciamento de toda e qualquer influência estrangeira via casamento, exigindo um divórcio em massa de todos os que estivessem casados com mulheres estrangeiras (cf. Ed 10.10-11). Xenofobia em nome da fé causa estranheza a qualquer leitor da obra cronista.

Um papel especial desempenham os levitas, elogiados como os “mais retos de coração”(2 Cr 29.34). Com sua ênfase no ensino da lei e sua participação na vida em comunidade, o cronista parece querer dizer: A eles ouvi!

5. A lista no novíssimo contexto: a comunidade cristã

1 – A luta pela identidade da igreja de Jesus Cristo na aldeia global parece ser o elo de ligação com a comunidade de fé do cronista, ameaçada pela invasão do profano. Ser comunidade santa é nosso distintivo e nossa missão numa cidade/sociedade governada por um mercado que cria “palácios e barracos” (HPD 2:441), que fomenta uma cultura pasteurizada, centrada no individualismo e no hedonismo e que, por sua vez, gera o consumo desenfreado da mercadoria produzida. Nessa mesma realidade floresce, simultaneamente, um mercado religioso que faz surgir uma diversidade de


cultos sem fim. Como dar conta da nossa vocação e missão – ser comunidade santa? Que confissão de fé nos distingue e que faz sentido neste mundo plural, contraditório e desigual? Ousamos afirmar com o cronista: o reinado de Deus é exercido a partir da comunidade de fé? Sinais desse reinado do Deus do perdão, cheio de piedade e misericórdia, são percebidos no contexto e na atuação da comunidade de fé? Como falar de boca cheia da presença, mesmo que incipiente, desse reino quando ao nosso redor tanta coisa atesta o contrário?

Partilhamos com o cronista a confissão de fé de que o reino só vem por iniciativa de Deus mesmo, “sem a nossa prece; mas suplicamos nesta petição (Pai-Nosso) que venha também a nós” (M. Lutero). Se outros reinados se estabelecem ao nosso redor e avançam perigosamente também sobre a co- munidade dos que crêem em Jesus Cristo, o chamado de volta para a vida comunitária, em cujo centro está o Deus que atua por intermédio de sua palavra, com certeza é o caminho para recuperar o distintivo da comunidade de fé, qual seja: ser testemunha dos sinais colocados por seu Deus em meio às contradições deste mundo.

2 – E a lista dos que devem participar desse projeto? A tentação de listar os que, a partir de nossa perspectiva, devem participar e os que devem ser mantidos longe da comunidade e sua missão é enorme. Aqui nos deparamos com uma descontinuidade entre o projeto do cronista e o projeto da comunidade de Jesus Cristo. A comunidade cristã confessa que “Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são” (1 Co 1.28) e com elas leva adiante seu projeto. Uma hierarquização dos que dirigem a comunidade santa na Jerusalém do cronista deveria soar estranha para nós. Um “chefe da casa de Deus” (sumo sacerdote, v. 11) que desempenha o papel de mediação entre Deus e o povo não tem mais espaço numa comunidade que se entende como corpo (1 Co 12) ou como povo, em que todos os que crêem receberam a dignidade de sacerdotes, isto é, têm acesso a Deus sem qualquer mediação humana (1 Pe 2.9).

Sua luta pela comunidade santa parece legitimar uma depuração da comunidade, o que conflita frontalmente com a compreensão de que a comunidade é corpo misto, não cabendo a nós o juízo final dos que são e não são do reino de Deus (Mt 13.24-30). Uma prática que apressadamente se põe a limpar o arquivo morto dos membros da comunidade não poderá se amparar na teologia cronista para justificar sua ação altamente questionável.

A lista do povoamento do pessoal ligado a serviços na comunidade de culto em Jerusalém nos fará refletir sobre o que é essencial para a expressão comunitária da fé. Copiar a estrutura de cargos e funções não faz sentido, mas rever que elementos inalienáveis para a vivência comunitária na casa de Deus, e a partir dela, são listados em Ne 11, com certeza é o legado do cronista para a comunidade de fé na qual estamos inseridos. Sem sacerdote não há templo no AT. Ele, muitas vezes, juntamente com os profetas, são os responsáveis pelo que se ensina no santuário. Sem ele, não há conhecimento de Deus e de seu agir, como denuncia Oséias (4.6); sem o ensino dele e, agora, também do levita, o culto de então não passaria de um cerimonial ritualístico. Em outras palavras, o primeiro elemento inalienável é a palavra autoritativa de Deus, sem a qual não há comunidade santa. É por intermédio dessa palavra que nasce a certeza de que Deus não abriu mão desse seu mundo e sua gente. Ele tem sua casa neste mundo (cf. também Jo 1.14). Num mundo marcado por tamanhas contradições, ele só pode sentir-se em casa se sua primeira palavra é de perdão e de restauração de relações rompidas.

Em resposta a esse primeiro gesto criador de Deus em sua casa, nasce a comunidade que não pode deixar de falar e cantar do que ouviu e que dá sentido e esperança à vida. Confissão de fé é isto: é resposta alegre que se vale de toda a criatividade. Em prosa e verso fala do que Deus representa para sua comunidade e para o mundo. Grande parte do que hoje temos como Escrituras Sagradas outra coisa não é senão confissão de fé. O louvor na comunidade é confissão articulada por meio do canto e de instrumentos musicais. É especialmente na época do segundo templo em Jerusalém que esse elemento do louvor e das ações de graça a Deus ganha espaço no culto da comunidade, e sua responsabilidade é entregue à associação de cantores, oriundos especialmente dos grupos levíticos.

Agora, nem tudo é louvor. Basta ver o número de lamentos individuais e coletivos contidos no Saltério. Quando tudo é louvor, a comunidade deixa de ser realista, nega e esconde as contradições ao seu redor, além de ocultar o pecado, o sofrimento e a dor em seu próprio meio. A comunidade que testemunha a presença de Deus neste mundo, apesar dos sinais de morte e negação de vida, vai articular o louvor a Deus em sua expressão de fé comunitária. Contudo, quando essa comunidade enxerga o maior sinal do reinar amoroso de Deus na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, seu louvor virá acompanhado da confissão de toda a precariedade e alienação que nos caracterizam. Quando a comunidade de Jesus Cristo articula a confissão de sua culpa e clama, em forma do Kyrie, “pelas dores deste mundo”, ela dá a entender que ela é composta de gente que está com os dois pés fincados neste mundo que ajudamos a construir tão injusta e desigualmente por meio de nossas ações contraditórias.

Um último elemento, ainda ligado à vida comunitária da fé, trata de algo por demais profano para o nosso gosto: a administração “dos negócios exteriores da casa de Deus” (v. 16). Como fazê-lo sem negar a missão da casa: ser sinal do reinado salvador de Deus? O mercado religioso revela que essa é a porta de entrada para ações perversas em nome da fé. Ofertas, dízimos e doações não são outra coisa senão expressão de um coração grato a Deus e expressão de fé que se materializa em gestos de amor.

6. Auxílios litúrgicos

Confessando nossa situação precária:

Confessamos, Senhor, nossa falta de confiança em ti.
Em lugar da fé permitimos que a ansiedade tome conta de nossa vida, roubando-nos a paz, fechando nossos olhos para as necessidades ao
nosso redor.
Outras vezes vivemos indiferentes àquilo que tu exiges de nós. Não perguntamos por tua vontade para nosso viver,
Não temos amado de verdade.
Quantas vezes escolhemos o caminho mais cômodo, fazendo o que todos fazem,
sem perguntar pela missão que tu confiaste a nós como tua comunidade. Perdemos de vista o alvo maior: ser testemunha do teu reino. Acomodados, renunciamos à esperança.
Temos tolerado injustiças, fomos insensíveis à miséria e à solidão ao nosso lado.
Tu nos presenteaste com teu reinado de paz e perdão e não nos mostramos agradecidos.
Renova-nos, por inteiro, através do teu Espírito. Amém.


Oração do dia:
Reuniste-nos nesta manhã, Deus de toda compaixão e de amor, como pessoas de diferentes histórias de vida,
e, mesmo assim, formamos tua comunidade.
Não é nossa imensa capacidade de viver as diferenças que faz de nós igreja;
é através de tua palavra que reúnes uma comunidade que crê em Jesus Cristo.
Viemos até aqui para ouvir tua palavra e abrir novos horizontes para nós como pessoas e como comunidade.
Faze com que nos apeguemos à tua palavra, que garante um novo começo,
porque estamos cansados de recomeçar com nossas próprias forças. Em nome de Jesus Cristo, oramos. Amém.

Bibliografia

VALLAURI, Emiliano. Esdras-Neemias. In: BALLARINI, Teodorico (org.). Introdução à Bíblia: com antologia exegética. Petrópolis: Vozes, 1983. v. III/1, pp. 17-56.
RANDELLINI, Lino. 1-2 Crônicas. In BALLARINI, Teodorico (org.). Introdução à Bíblia: com antologia exegética. Petrópolis: Vozes, 1983. v. III/1, pp. 57-88.
WILLIAMSON, H. G. M. Ezra-Nehemiah. Waco, Texas: Word Books, 1985. Word Biblical Commentary, v. 16.