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Prédica: 2 Coríntios 5.6-10
Leituras: Ezequiel 17.22-24 e Marcos 4.26-34
Autor: Albérico Baeske
Data Litúrgica: 4º.Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 02/07/2006
Proclamar Libertação – Volume: XXXI

Saudando profundamente grato
o Professor Dr. Christian Dietzfelbinger,
com quem aprendo desde 1961
aspectos novos na teologia e aspectos velhos, de forma nova

 1. Escatologia

1 – Cada época tem seu jeito de lidar com a fé cristã. Cada geração escolhe, reflete e aplica suas temáticas preferenciais na fé. Em nossos dias, parece ser esta: “A fé atua pelo amor” (derivada de Gl 5.6?) ou, popularmente, “o que importa é amar”. Tais tematizações desenvolvem enorme força de sucção. Sugam para dentro de si “a largura, o comprimento, a altura e a profundidade” da fé em Jesus Cristo (cf. Ef 3.18-21). Daí nascem idéias capciosas, por exemplo: “Quem ama é cristão”, “cristão é quem ama”. Relevando a dubiedade, pretende-se tornar a fé cristã atual, simples e convincente. O que até pode ser verdadeiro para um bocado de gente.

Mas não é verdadeiro para pessoas inteiradas na Bíblia e alunas das confissões da igreja de todos os tempos e lugares. Elas divisam as tematizações da fé como arbitrariedades que sufocam a fé em Jesus Cristo. O perigo não existe só hoje, sempre rodeou a igreja; e tantas vezes, ao não tomá-lo a sério, virou sua vítima.

A fé em Jesus Cristo, fundada na mensagem bíblica e secundada pelo testemunho da igreja, enfrenta o risco constante de sua sufocação com a “escatologia”. Ou seja: com a “doutrina sobre a consumação do tempo e da história”, respectivamente, com o “tratado sobre os fins últimos” do ser humano (A.B. de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed./28. imp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 686. 3ª coluna).

2 – O conceito “escatologia” está comprometido. Ele foi submetido demasiadamente a sucessivas releituras, sim, abusado no trabalho teológico (veja, p. ex., H. Ott [com a colaboração de teólogos de diferentes denominações cristãs], Die Antwort des Glaubens – Systematische Theologie in 50 Artikeln. 3. ed. Stuttgart/Berlin: Kreuz Verlag, 1981. pp. 477-519)

F.-W. Marquardt busca entrelaçar as diversas facetas de “escatologia”, traduzindo o respectivo termo da igreja dos primórdios “De novissimis”: “Sobre as derradeiras novidades – aliás, no fim estarão à nossa espera grandes novidades, coisas inauditas, jamais ocorridas, jamais experimentadas” (Was dürfen wir hoffen, wenn wir hoffen dürften? – Eine Eschatologie. Gütersloh: Kaiser/Gütersloher, 1993. v. I. p. 28). “As derradeiras novidades” não consistem em espetáculos celestes, porém em um novo, mais profundo compreender do mundo que conhecemos, “numa forma agora permeada pelo amor de Deus, reconciliada, livre de todas as feridas da alienação da vida, mantido coeso pelo shalom [paz integral e abrangente]…, que simulta- neamente é zedaka [justiça em todas as acepções e dimensões] …, que satisfaz cada um na necessidade específica de sua existência” (p. 24).

Há anos, indicam em igual direção cânticos populares cristãos brasileiros: R. Veloso, Da cepa brotou a rama (in: J. C. Maraschin [ed.], O Novo Canto da Terra. São Paulo: IAET, 1987. pp. 63-5) e Dizei aos cativos: “Saí!” (in: Pastoral Popular Luterana / PPL, O Povo Canta. Palmitos, 1994. p. 92s.), J. C. Maraschin, Jesus Cristo, vida do mundo (p. 158s.) e S. Meincke, Jesus Cristo, esperança do mundo (p. 32s.).

3 – Esse discurso escatológico exerce atração sobre gente contemporânea. Ele vai ao encontro do presente sentimento generalizado de progresso, da complementação, do aperfeiçoamento das pessoas e das coisas sem crise, ruptura ou mudança radical (cf. P. Tillich, Teologia Sistemática. São Leopoldo: Sinodal / São Paulo: Paulinas, 1984, quanto a “ser essencial e ser existencial”/a “existencialização e essencialização”: pp. 172-4. 258-78. 393s. 688s.). Embora o intuito da referida fala escatológica seja alertar, mobilizar e organizar as pessoas rumo ao futuro, essas, via de regra, adonam-se dela para continuar incontestes e ilesas.

a) Fora de dúvida, as pessoas visam a um porvir, mas conforme a lei do casulo, quer dizer, sucedendo em harmonia, sem estranheza nem embaraço. Almejam a inquebrantável identidade consigo mesmas, a conexão – não a contradição, o desenvolvimento – não a interrupção, a evolução – não a revolução, a regeneração – não a criação, a metamorfose do costumeiro – não o novo. Querem o amanhã sem largar o hoje, o novo em forma de melhoria do existente, a vida como sobrevida. Avocam, de modo consciente ou inconsciente, o axioma: nada se perde, tudo se transforma; jamais há – nem pode haver – algo de divergente do que aí está. Anseiam experienciar a vida, também a eterna, não recebê-la. Como resultado, articula-se uma consciência que exige o máximo em satisfações e o mínimo em contrariedades; toma conta o relativismo que justifica tudo; desabrocha a filosofia de vida que embeleza e retoca as vicissitudes, expurga a pergunta incômoda pelo sentido e rejeita qualquer forma tanto de identificação individual como de responsabilização pessoal.

b) A fé em Jesus Cristo, fundada na mensagem bíblica e secundada pelo testemunho da igreja, é essencialmente escatológica. Contudo, sua percepção de escatologia é contrária à lei do casulo. Sua lei é impregnada por Jesus Cristo, que se compara ao grão de trigo: “Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, produz muito fruto” (Jo 12.24).

O enfoque escatológico na Sagrada Escritura e da igreja desde sempre concentra-se nesse Jesus Cristo. “Cristianismo que não é, de modo total e integral, escatologia, decididamente, não tem nada a ver com Cristo” (K. Barth; veja: Recomendações bibliográficas / Rb). O jeito escatológico escriturístico e eclesial embaraça demais: “Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano” (cf. 1 Co 2.9 / Is 64.4). Motivo pelo qual se origina tão-só através da iniciativa peculiar de Deus: “Não foi carne e sangue quem to revelou, mas meu Pai que está nos céus” (Mt 16.17; cf. Jo 3.31-4, 8.23, 19.11). Pois Jesus Cristo é o evento escatológico por excelência (seg. R. Bultmann; veja Rb), presente e atuante nos meios de sua livre vigorosa ação graciosa, envolvendo nossos cinco sentidos.

Em sua vida, morte e ressurreição, Jesus Cristo incorpora a escatologia. Ele a determina: por interferência vertical – o juízo do velho antecede o novo, por corte inexorável – a morte antecede a vida. O que detalha com sua auto-apresentação: “Eu sou o Alfa e o Ômega” (Ap 1.8), “eu sou o primeiro e o último” (v. 17[s.]). Ele é o primeiro, aquele que constitui e suscita o futuro e puxa os seus para dentro do futuro que é ele próprio; ele é o último, aquele que toma a decisão derradeira e recria todos e tudo. Razão pela qual continua seu dito do grão de trigo: “Quem ama sua vida, perde-a… Se alguém me serve, siga-me, e onde eu estou, ali estará também meu servo” (Jo 12.25s.). Em estreita consonância com isso soam os testemunhos do apóstolo Paulo: levamos “sempre [primeiro] no corpo o morrer de Jesus para que também [depois] sua vida se manifeste em nosso corpo” (2 Co 4.10[-12]), e de M. Lutero: morrer e viver “precisam estar sempre presentes em nós, porque há em nós duas pessoas que se fazem oposição: a velha e a nova; a velha precisa ter medo, desesperar e sucumbir, a nova, esperar, permanecer e ser levantada” (seg. H.-J. Iwand, Predigt-Meditationen. Göttingen: Vandenhoeck, 1963. p. 361).

2. Escatologia popular

1 – Quem intenta comunicar escatologia centrada em Jesus Cristo carece cientificar-se da escatologia corrente e vigente, a popular. A mesma é virulenta nas comunidades igrejeiras e eclesiais bem como em outros públicos. É capaz que seja o complexo mais emaranhado e o terreno mais minado para um testemunho cristológico. Digo: testemunho cristológico, não falácia psicossomática, ditada pelas faladas necessidades poimênicas. Precisa-se, pois, de convivência comunitária auto-renunciante, paciente e persistente, sensibilidade empática e flexível em ouvir ou ler atrás das manifestações das pessoas e discernimento teológico-pastoral.

2 – Começa-se a perceber a escatologia popular nos anúncios fúnebres. Qualquer jornal que se preza e pretende aumentar a tiragem possui respectiva seção. Impressiona o que vem à tona aí – e o que não. Coloco formulações que, devido a seu aparecimento reiterado, gravam-se na mente do leitor, sugerindo que se façam descobertas próprias na leitura. Pois “os pastores só sabem 10 por cento daquilo que o povo pensa” (um presbítero na IECLB).

Nos anúncios, substituem-se “os verbos ‘morrer’ ou ‘falecer’ por mais eufêmicos …: partir, viajar, deixar”; enlutados dirigem-se em “locação direta” e “íntima” ao ente querido “inesquecível”, destacando, gratos para sempre, suas “virtudes e grandes ensinamentos” legados e lhe assegurando que tem “cumprido sua missão na terra”; pessoas “deixadas aqui” vêem as que “se foram” lá “com Deus”, vivas e felizes, gozando merecidas recompensas e “festejando com os anjos”; familiares, ansiosos pelo reencontro, saúdam aquele que “partiu”: “Tchau, até um dia”, jurando “amor eterno”, expressando “solidão”, às vezes “resignação” até “revolta”, também desejando “bênção de Deus onde estiver” e pronunciando “preces” na data do aniversário da pessoa falecida; volta e meia, os anunciantes mencionam “a fé” – “fé em si mesmo, como resgate de sua auto-estima, fé na comunidade e na sua família” (I. Kayser; veja Rb).

3 – A comparação entre a escatologia popular e a escatologia firmada em Jesus Cristo realça um confronto dogmático. Quase sempre se entende por “dogmático” aquilo de que se discorda ou aquilo que a igreja, de maneira solene e oficial, declara necessário para a salvação. Dificilmente os que discordam se dão conta de que, igualmente eles, agem / reagem como “dogmáticos”, ou seja, baseiam-se em seus “dogmas” peculiares, admitidos ou não, a partir dos quais existem e argumentam. É fenômeno humano universal ter e formular “dogmas”, promulgá-los e defendê-los “dogmaticamente”. O que se manifesta em todos os setores da vida – não apenas em contextos religiosos.

“Dogma” é a condensação subjetiva refletida quanto à realidade que uma pessoa ou grupo humano percebe, experimenta e, por conseguinte, mantém com verve existencial – e “dogmática”. A condensação não é acessível sem mais nem menos a terceiros, tampouco tolera contradita de quem quer que seja, pois compõe a base sine qua non da consciência, existência e convicção das pessoas que a elaboraram. Caso aderissem à refutação de seu(s) “dogma(s)”, elas se auto-aniquilariam. A manutenção, a todo custo, de seus “dogmas” é questão de pura sobrevivência dos “dogmáticos”, isto é, das pessoas tais quais são. A noção a esse respeito aumenta bastante no presente. Logo, nosso presente é tão “dogmático” e a confrontação “dogmática” tão acirrada; entre outras, referente à “escatologia”. O entranhamento no texto-base para a prédica equipa-nos para o embate inevitável.

3. O texto-base para a prédica

1 – A Segunda Epístola de Paulo aos Coríntios (2 Co) é o testemunho cristológico mais existencial, eletrizante e contagiante do apóstolo (cf. J. Comblin; veja Rb). Igualmente para ele vale o que M. Lutero diz do escrito aos Romanos: é “digno e merecedor de que o cristão não só o conheça de cor, palavra por palavra, mas também com ele se ocupe diariamente, na qualidade de pão diário…; pois ele jamais poderá ser lido ou contemplado em demasia. E quanto mais se lida com ele, tanto mais agradável e gostoso fica”. Em especial, obreiros e obreiras da igreja deveriam “ruminá-lo” (Lutero; veja Rb) – logo descobririam situações nas quais se dopam com correrias igrejeiras, solicitam ou aceitam tutelamento de sua consciência, põem-na em leilão ou assumem “consciência enlatada” (S. P. Rouanet).

A exegese crítico-literária tornou plausível que 2 Co é uma coletânea de diversas cartas, respectivamente, fragmentos de cartas – fenômeno literário não isolado no Novo Testamento. Quanto à epístola em tela, cada parte teria sido redigida em tempos e sob condições diferentes, espelhando a relação deveras dramática entre Paulo e a comunidade destinatária (cf. G. Bornkamm; veja Rb). Seguindo esse enfoque exegético, o que acompanho, o testemunho paulino adquire maior força e plasticidade – e surpreendente atualidade.

2 – O trecho 2 Co 5.6-10 integra a unidade 2.14-7.4. Paulo expõe sua asserção relativa a caráter e legitimidade do apostolado. Ele vê-se forçado a isso diante da agitação de pregadores ambulantes na comunidade de Corinto (Saloniki, atual Grécia), fruto de seu serviço missionário (fim do ano 49 ou 50 até início do ano 51 ou 52 de nossa era). Andarilhos espirituais já aparecem antes de 2 Co, por exemplo: nas cartas a Gálatas e Filipenses e, mais tarde, nas de João. Na Primeira Epístola aos Coríntios (1 Co) (escrita em Éfeso, atual Turquia, no começo de 54 ou 55) não se nota nada deles ainda.

a) Provavelmente em meados do ano 55, os referidos predicantes invadem Corinto. O que representa um dado novo e ameaçador na relação entre Paulo e a comunidade, originando a correspondência apostólica contida em 2 Co (enviada desde Éfeso). Os intrusos conseguiram deixar seu público estupefato “com esta luz especial do Evangelho” (H. Frör, Ach Ihr Korinther! – Der Briefwechsel der Gemeinde in Korinth mit Paulus. Gütersloh: Kaiser/ Gütersloher, 1994. p. 108): relatos de revelações misteriosas e provas propaladoras de poder celestial em forma de retórica arrebatadora, de encenações extáticas e milagrosas – capazes de elevar as pessoas “dos vales escuros, do movimento surdo deste mundo, dos sofrimentos… para cima, …rumo à luz…, o céu está aberto” (p. 109). Esse recebe os estupefatos que “experienciam que são aptos para a plena maturidade espiritual” (p. 120), longe de qualquer corporalidade que prende e limita, vêem na morte o libertador de seu eu espiritual indestrutível. Por meio de tudo isso, os andarilhos espirituais apoderaram-se da comunidade extasiada, satisfazendo, concomitantemente, a própria massiva ganância (2.17, 4.2). São elitistas espirituais que usam a comunidade como campo de autopromoção. “Confundem”-na com vil desdém, “brilhando na aparência” (Lutero; veja Rb).

b) Paulo toma posição com bathos kai pathos, porque “os tais ensinadores” reivindicam ser apóstolos de Jesus Cristo. “Ousados são no seu falar / e dizem quais doutores: / Nós temos a revelação, / decretos, leis e tradição; / da Bíblia somos mestres” (Lutero). Em seu frenesi se acham inquestionáveis e superiores a Paulo em presença e convicção, prática e certeza espirituais. A comunidade, fascinada por esses super-espirituais, está segura de que Jesus Cristo mesmo, em poder e glória, manifesta-se mediante eles “de jeito audível, perceptível e visível” com “patente efeito convincente” (Frör, p. 121), intermediando “a felicidade transbordante que Jesus proporciona” (p. 123), “a consonância bem-aventurada com Cristo [o ressurreto resplandecente como o sol]” (p. 124) – e isso tanto mais quando comparados com Paulo, esse, aparentemente, em toda a linha de segunda categoria.

O apóstolo, por seu turno, tem aqueles fascinadores como “falsos apóstolos, obreiros fraudulentos” e fingidos “ministros de justiça”, aliás, de “Satanás mesmo”, que “se transforma [e seus ministros] em anjo[s] de luz” (11.14s.). Eles incutem um “evangelho diferente”, que os coríntios não têm “abraçado”, difundem um “outro Jesus”, que Paulo não pregou aos coríntios, trazem um “espírito diferente, que” os coríntios “não têm recebido” (v. 4).

c) Paulo opõe-se a “esses tais apóstolos” (11.5) num crescendo. Em 2.14-7.4, atualizando sua pregação da cruz (p.ex., Gl 2.11-21, 5.24-26, 6.11-
15; Fp 3; 1 Co 1.18-2.16) para a situação criada em Corinto, argumenta de modo soberano contra os infiltrados. Ao mesmo tempo, o remetente – “pregador confortador” (Lutero; veja Rb), identificado com os coríntios sem segundas intenções – procura cativar, com exímia abertura e empatia ilimitada, a comunidade transtornada e felicíssima no transe em que foi colocada pelos enxeridos, os atletas espirituais (cf. 6.11s., 7.4). O método exegético com que aprendo (cf. acima) dá como muito provável que o apóstolo visitou Corinto após ter escrito 2.14-7.4. A visita foi um fracasso, tornando mais pesado ainda o clima entre a comunidade com “seus novos apóstolos” e Paulo. Faltam detalhes, porém 2.1-4 e 2.5-11 parecem espelhar algo grave que aconteceu na ocasião.

De novo em Éfeso, Paulo torna a escrever, a saber, 2 Co 10-13. Assumindo posição implacavelmente hostil aos metediços, ele desdobra as conseqüências de sua pregação da cruz para sua experiência lacerante de “apóstolo de Cristo Jesus pela vontade de Deus” (1.1) e, simultaneamente, constata com cáustica ironia e grande amargura que a comunidade se sujeitou aos ditos imponentes místicos e sua doutrinação (cf. 11.20s.). Resta ao apóstolo tão-só exortar os coríntios, com extrema seriedade, para o auto-exame definitivo se Jesus Cristo [enunciado via palavra e vivência de Paulo] está neles, pois, do contrário, já estão reprovados [ante o próprio] (cf. 13.5, 5.10; 1 Co 11.31s.).

3 – 5.6-10 encerra a segunda parte de 2.14-7.4, que inicia com 4.7 e ressalta “a fragilidade” do “apóstolo de Cristo Jesus pela vontade de Deus”. Enquanto 4.7-12 define “a fragilidade do enviado” como “contradição inerente ao afã do Evangelho” e 4.13-15, a pregação do pregador frágil como aquela que “abre o futuro”, 4.16-18 versa sobre “como o enviado é destroçado e reconstituído”, 5.1-10 sobre a “existencia [do apóstolo e da comunidade]”, uma vez, “em vista da morte”: vv. 1-5 e, depois, “em vista da responsabilização futura [de ambos]”: vv. 6-10 (Chr. Dietzfelbinger, Das apostolische Selbstbewusstsein des Paulus [SS 1986, polígrafo], p. 41).

a) Em 5.1-10, Paulo reflete sobre o que “sabemos” (v. 1; cf. v. 6). A continuação de seu testemunho evidencia que o “saber” não é tão pacífico; pelo contrário, o apóstolo precisa fazer saber aos coríntios (assim Dietzfelbinger, p. 58):

* primeiro, que comunidade e apóstolo estão sujeitos a morrer integralmente. Isso não é nenhum destino cego, mas vontade de Deus. Em meio ao absoluto fim comum, o “Deus da ressurreição permanece seu fiel criador em e por causa de Cristo” (conforme H. Traub. In: A. Falkenroth e H. J. Held [ed.], hören und fragen – Eine Predigthilfe v. 4/2. Neukirchen: Neukirchener, 1976. p. 236). Deus assegura seu intervir escatológico, “outorgando-nos o penhor do Espírito”, que esclarece a esste respeito. Fato que supera o pânico diante da morte radical – e a qualifica (vv. 1-5);

* segundo, que comunidade e apóstolo estão sendo responsabilizados em definitivo. É patente a imbricação entre morte e juízo. Ninguém, nada no ser humano escapa – muito menos os crentes em Corinto, seus guias espirituais e o próprio apóstolo (vv. 6-10).

Após Proclamar Libertação (PL) ter trazido dois auxílios homiléticospara o trecho todo, anima, neste volume, mais uma vez (veja Rb), as pessoas que pregarão e as que ouvirão a se confrontar com o segundo aspecto da realidade que sobrevém a “todos nós” e a “cada um” (v. 10). Lembrando o esboçado concernente à escatologia popular (acima, II.2.), tal confronto é urgente e só nos pode ser salutar.

b) Paulo liga 5.6-10 a 5.1-5 com a frase “temos bom ânimo”/“estamos com coragem e sem medo” // “temos toda a certeza/estamos em plena confiança” (v. 6a, repetido em v. 8a; Almeida omite isto? cf. 7.16, 10.1d.2b). O autor ressalta que a ação criadora escatológica de Deus determina a existência dos crentes no Senhor [Jesus Cristo] – “sempre” // “em todos os tempos [e situações]” (v. 6 a).

O último termo aparece 27 vezes nos escritos paulinos (W. Bauer, Wörterbuch zum Neuen Testament. 5.ed. Berlin: Töpelmann, 1963. Verbete pantote, coluna 1207). Empregando-o aqui, o apóstolo vincula 5.6a

* ao trecho anterior, de 4.8.10 [“sempre”]s., expressando que “temos bom ânimo” em circunstâncias sobremaneira adversas quando na proclama- ção do evangelho, pois bem aí experimenta-se “a vida de Jesus em nossa carne mortal”, ou seja, “não/jamais desanimamos” (4.1.16; Almeida observa a repetição do vocábulo grego?). A vida de Jesus nos seus verifica-se no fato de que eles têm bom ânimo, toda a certeza, respectivamente, estão em plena confiança – quando tudo combate tal convicção e postura (cf. Rm 4.18-21);

* ao trecho posterior, de 5.8-10, expressando que “temos bom ânimo” a fim de “nos esforçarmos a ser agradáveis ao Senhor [Jesus Cristo]”. Tanto faz se estamos na presente existência sob o Senhor ou naquela outra com/ junto ao Senhor (cf. 1 Ts 5.10; Rm 14.7-9). Vital não é como e onde estamos, mas, sim, que agrademos a Jesus Cristo “durante a vida no [em nosso] corpo”. O que é realçado pelo fato de que “importa que todos nós compareçamos” para a devida verificação perante Jesus Cristo. “Ter bom ânimo” corresponde a “jamais desanimar” no “agradar ao Senhor” e quando avaliados por ele.

Eis a presença e a convicção, a prática e a certeza espirituais de Paulo, totalmente opostas às dos domadores infiltrados na comunidade. É isso que o remetente faz saber aos destinatários; aliás, esses o deveriam saber, uma vez que chegaram à fé em Jesus Cristo via “Paulo, apóstolo de Cristo Jesus pela vontade de Deus”.

c) Na versão original, 5.6-8 apresenta problemas de sintaxe e de fluxo lógico. De momento, não há espaço para destrinchá-los. Para a pregação é imperativo captar:

* o autor nota que v. 6b poderia acarretar um grave mal-entendido. Dito diferente: poderia parecer que faz coro com o discurso dos aludidos virtuoses em espiritualidade no sentido de que os/as crentes “em corpo [enquanto levam vida corporal temporal / tendo no corpo seu habitat original e adequado]” fossem “ausentes do Senhor [distantes, afastados, como num exílio em relação a ele, sua verdadeira pátria]” – idéia visceralmente contrária à sua asserção (cf. Rm 14.8). Motivo pelo qual aborta v. 6b, interpretando-o com v. 7 tal qual parêntese. Após ter eliminado o qüiproquó, Paulo prossegue em seu fazer saber por intermédio dos vv. 8-10.

Dietzfelbinger resume o testemunho apostólico: “O que eu quis dizer em v. 6, explica ele com v. 7, é o seguinte: como gente que vive no corpo e neste mundo, nós em absoluto estamos na situação do ‘estar com o Senhor’ (1 Ts 4.17, fim). Nosso ser como filhos e filhas de Deus não se manifestou ainda de forma completa (Rm 8.23), isto é, nós não vivemos dia eidous [pelo ver], mas, sim, dia pisteoos [por fé], a saber: [vivemos] no estado do provisório, do penúltimo no qual o último, o ‘[ver] face a face’ (I [1Co] 13.12), não se realizou ainda” (p. 65).

* O conceito “fé” (v. 7) é central em Paulo (cf. R. Bultmann; veja Rb), nunca vira chavão. O respectivo contexto literário o impede. Reparando nele, desponta a compreensão específica que o remetente confere à “fé”. No v. 7, “fé”, agora e aqui, no penúltimo, é contraposto a “ver” escatológico, o último, que está por acontecer. Presente e futuro se tocam; não se confundem, se ressaltam. “Fé… tem um lado avesso. Fé é apenas o início” (Iwand, p. 149). Com seu termo magno, o apóstolo caracteriza o viver e agir dos crentes com os cinco sentidos neste chão e contexto histórico (veja o original, melhor do que “andar” [Almeida]; cf. v. 10c).

Para Paulo, inexiste valorização maior de nossos dias e feitos presen-tes do que afirmar que sucedem em, com e sob a fé (cf. Rm 14.23c). Se os coríntios vivem de jeito festivo, despreocupados com relação às práticas cotidianas de crentes neste mundo ou de jeito soberbo sentem náuseas a respeito, então contradizem frontalmente a fé. Pois fé é postura humana integral, concedida e assumida, exercida e localizada entre berço e caixão, diante daquele – com dizeres de Lutero – “em que se confia e crê de cora-ção” (vv. 6c, 8c, 9c,10a; cf. Rm 1.5b, 15.18c). Fé, de modo nenhum, é saudade metafísica ou intuição do chamado sexto sentido, ansiadas por serem satis- feitas o quanto antes.

Fé no testemunho paulino reveste-se de acurada sobriedade e de função crítica. Antes de muita gente, pessoas que crêem as necessitam, pois são, tantas vezes, mais sonhadoras do que realistas. São enganadas; enganam, inconsciente e também propositalmente, a si, entre si e a outros. O apóstolo aguça a consciência da comunidade quanto ao pendor para enganação e indiferença, para corruptibilidade e irresponsabilidade. Tal inclinação multiforme é difícil de perceber porque se esconde atrás de espiritualidade multifacetada. Isso é uma constatação da experiência, nenhuma defesa e, menos ainda, alguma justificação. Conforme Paulo, fé não rima com esquiva daquilo que, no atual momento, está perante nós, exigindo nossa opção e nossos sacrifícios. Fé rima, sim, com expor-se a desafios, arriscados e dolorosos, inclusive, ameaçadores da fé. Sobretudo, fé ensaia no “ser agradável [ao Senhor]” (v. 9c);

* tendo Paulo insistido no penúltimo e lhe assegurado seu valor – caracterizado e qualificado como “espaço” (Dietzfelbinger, passim) inevitável/ irrenunciável para a fé, pois “a fé precisa de espaço” (Lutero) –, chega ao último. Com efeito, o remetente não corre mais o risco de ser igualado aos super-espirituais ou ser considerado plagiador deles. Após ter valorizado o provisório, separa desse, agora, o definitivo. Note-se: “pertence ao penúltimo” ser “limitado pelo último” e “ao provisório, chegar a seu fim… (I [1 Co] 13.9s.12). … É isto o que Paulo quer dizer em v. 8” (Dietzfelbinger, p. 65). A essa altura, é coerente que ele reforce o “temos bom ânimo” com “preferi- mos [o último/o perfeito/definitivo] // gostamos ainda mais [dele]”.

De novo (cf. v. 6), o apóstolo emprega no v. 8 as expressões “deixar o corpo/partir dele” e “estar com o Senhor/habitar com ele” e, por fim, no v. 9. As mesmas encontram-se exclusivamente nesses três versículos. Ao que tudo indica, Paulo toma-as de seus adversários. Coloca-as de forma cruzada-invertida (“quiasmo”: Dietzfelbinger, p. 65s.). Daí surge a pergunta pela compreensão que associa a elas; o choque violento entre os super-espirituais e o apóstolo (acima, III.2) exclui a possibilidade de que à consonância quanto aspecto formal/terminológico corresponda o aspecto material/de conteúdo.

Auxilia no entendimento o confronto dos significados que as formulações adquirem para os contraentes. Refletindo vv. 6 b e 8s., é imprescindível lembrar os vv. 2-4. Assim evidencia-se: para os andarilhos espirituais “deixar o corpo/partir dele” é “apartar-se do corpo como algo [estreito, podre] desprezível/inferior”; para Paulo é, no entanto, “sair do provisório”, pois “estar no corpo”, respectivamente, “estar longe do Senhor”, equivale a “estar no provisório”. Para os andarilhos espirituais, “estar com o Senhor/habitar com ele” é “alcançar o estágio da nudez [absoluta], entrar no próprio ser autêntico, no eu [autônomo], livre de todas as relações”; para Paulo é, no entanto, “galgar a relação perfeita, viver a filiação [com Deus e Jesus Cristo] por completo e sem nenhuma limitação”, pois “estar apartado do corpo”, respectivamente, “estar junto ao Senhor”, equivale a “estar no definitivo/completo/perfeito” (Dietzfelbinger, ibd.).

d) Paulo tira as conseqüências da valorização da existência corporal temporal em, com e sob a fé: 5.8s. Tal existência não é brincadeira, seja que se a leve em libertinagem ou em aborrecimento. Segundo o evangelho que anunciou à comunidade (cf. 1 Co 15.1b), é deveras lógico que ela corra para a responsabilização derradeira. Pois o tempo é do Senhor, e não dos seus. Se não fosse assim, toda pregação serviria tão-só para satisfazer as necessidades internas e externas de pessoas. Com efeito, o testemunho paulino causa espécie aos acrobatas espirituais de Corinto e de outras paragens. A despeito de convicções contrárias, o apóstolo acrescenta ainda que unicamente, destarte, a vida “de fé em fé” (Rm 1.17b) / sola fide (cf. Gl 2.20) e seus desdobramentos, aqui e hoje, granjeia singularidade e irrevogabilidade.

* Daí compete necessariamente (dio) a endereçados e remetente: “esforçar-se de pronto/tornar-se salientes // envidar intensivas diligências (cf. 1 Ts 4.11a; Rm 15.20a) para, custe o que custar, lhe [ao Senhor] ser agradáveis” (cf. Fp 4.18; Rm 12.1s., 14.18). Não procuram pelo sentido de vida, mas pelo agrado de Jesus Cristo para com eles (seg. Iwand, p. 362s.).

No intuito de fazer jus à definição paulina da máxima dos/as crentes / / da “finalidade da conduta cristã” e de evitar que vire chavão, Dietzfelbinger transcreve “ser agradável [ao Senhor]”: “viver em conformidade com Deus [respectivamente Jesus Cristo], responder à dádiva da existência [por parte de Deus, respectivamente Jesus Cristo], doando a existência [dada]” (p. 66).

Paulo enfatiza que tal sucede tanto “nós estando no provisório/penúltimo” como “estando no definitivo/último”. Dito diferente: quando face a face com Deus, na pátria verdadeira, em plena vivência filial, nós não nos dissolvemos na Trindade, ao contrário, permanecemos em sua frente como filhos e filhas que ouvem, respondem e servem – se bem que de modo perfeito – a “Deus, o Pai, de quem são todas as coisas, e para quem existimos” e ao “Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas e nós também por ele” (Rm 8.6). “Nós não cessamos de ser criaturas, aliás, as seremos de forma total e pura” (Iwand, p. 361). Paulo corta ambições espirituais, virulentas na cidade de Corinto e em ambientes iguais ou parecidos hoje. Volta-se resolutamente “contra a piedade que visa a deificação” (J. Schniewind; apud Iwand, p. 360).

* Tem mais: o apóstolo acerta em cheio a acrobacia espiritual e seus praticantes deslumbrados, asserindo que Jesus Cristo julga o desprendimento de “todos nós” – os/as crentes (sic), a começar pelos/pelas obreiros/as, quem sabe fenômenos de espiritualidade, indo até aos membros desleixados (cf. 1 Co 3.13-15, 4.5; Gl 6.7; Rm 2.6, 14.10-15). “Também em relação ao cristão Deus reserva a si o direito da última palavra.” Permanecemos na responsabilidade constante diante de Jesus Cristo. Fazemos “questão de seu beneplácito aqui e agora”. Sem “a inculcação da mensagem do juízo” (W. Schrage; veja Rb), Paulo esqueceria o ponto em cima do i em seu testemunho; concordaria com “os falsos apóstolos, que deixam de pé a vergonha interior da descrença”. Postura ética é inerente à existência corporal temporal em, com e sob a fé. Ora, “há algo muito vivo, atuante, efetivo e poderoso na fé, a ponto de não ser possível que ela cesse de praticar o bem” (Lutero).

Jesus Cristo julga a quantas isso ocorre com “todos nós”. O testemunho cristológico em 5.1-10 chega a seu topo: vv. 6c > 8c > 10a. 10a possui paralelo em Rm 14.10c. O que “demonstra que Paulo junge o julgar de Deus (Rm 2.3; 3.6; 1 Co 5.13) e o de Cristo (1 Co 1.8; 4.4; 2 Co 1.14; 1 Ts 2.19)”; veja Rm 2.16: “Deus julga por meio de Cristo Jesus; cf. 1 Co 4.4s.: Cristo julga – Deus concede louvor (cf. 1 Ts 3.13). Em nosso versículo, a menção de Cristo corresponde à formação cristológica do contexto [literário] (vv. 6-9)” (Chr. Wolff, Der Zweite Brief des Paulus an die Korinther. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1989. p. 114 [Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament 8]). 

Jesus Cristo verifica o que “o crente fez com sua fé” (Dietzfelbinger, p. 68) no cotidiano particular e comunitário, bem como no convívio interpessoal mundo afora (Wolff, p. 115, aponta para 1 Co 6.13s.19s.; Rm 6.12s., 12.1s., Dietzfelbinger, p. 68, ainda para 2 Co 5.17; Gl 5.1). Em seu “tribunal acontece, por determinação divina inapelável, ‘segundo plano escatológico de Deus (dei)’ (Wolff, p. 114), que ficamos transparentes, estamos sendo abertos/as até nosso âmago e desmantelados/as, que caem nossas máscaras e acaba a enrolação espiritual própria ou insuflada” (parafraseando, porém mais perto do original do que Almeida). “Todas as auto-sugestões e ilusões, que criamos e cultivamos carinhosamente em nós durante a vida inteira, ruirão de um só golpe” (G. Lohfink). Finalmente, reconheceremos a nós próprios. O destapamento radical de “cada um” ocorre em plena luz do meio-dia e perante todos (cf. Ec 12.14; Dn 2.22; Mt 6.4b.18b, 10.26; Rm 2.16). Não passa nada em branco. Jesus Cristo não passa a mão em nossa cabeça. Ele conhece nossos nomes, rostos e corações. Ele encontra-nos onde estivermos. Ele chama tudo à baila de novo. Aí ninguém consegue recorrer a ninguém ou esconder-se atrás de alguém ou de algo. Se sucede uma vez que estamos absolutamente sozinhos/as, então é aqui. Em verdade, vale: cada um por si – ponto. Eis a única forma de individualismo que o apóstolo reconhece, admite e estimula.

Paulo “crê, ensina e confessa” (Fórmula de Concórdia): Jesus Cristo julga e retribui. O apóstolo mantém inseparáveis justificação e santificação (veja Rb). “O Evangelho do perdão dos pecados por causa de Cristo não nos libera para o bel-prazer, a moleza ou, até, para a arbitrariedade e maldade” (G. Voigt, Die Kraft des Schwachen – Paulus an die Korinther II. Göttingen: Vandenhoeck, 1990. p. 41). Jesus Cristo julga “todos nós” e faz a “cada um [de nós] receber [a retribuição] segundo o bem ou o mal que tiver feito”. Para Paulo, “o bem ou o mal”, que Jesus Cristo constata e galardoa, se efeitua “[em, com,] por meio do [de nosso] corpo e enquanto nele estivermos”. A paráfrase justifica-se em vista do uso instrumental e temporal da preposição grega dia (cf. Blass/Debrunner, Grammatik des neutestamentlichen Griechisch. 11. ed. Göttingen: Vandenhoeck, 1961. p. 143/§ 223). O apóstolo silencia sobre o que é a recompensa. Não importa; o fato de ela existir é por demais sério e surpreendente. É vital aproveitar o tempo “no corpo”, tendo presente sempre e em toda a parte: “Nada é indiferente. Nada se perde. Tudo o que fazemos ou deixamos de fazer” produz “desdobramentos infinitos” (G. Heinemann). Há, pois, razões de sobra para aprender com Paulo.

O apóstolo é insofismável e irredutível na asserção quanto ao lugar vivencial de realizar “o bem ou o mal”: a vida corporal no tempo em que dura. Pensando naquilo que ele asseriu até aqui, só pode definir assim. “Sooma, corpo” é o outro conceito central em Paulo (cf. E. Käsemann; veja Rb). Dietzfelbinger sintetiza: para Paulo, “o ser humano é constituído essencialmente por sooma. Sooma é a pessoa na medida em que ela se relaciona (I [1 Co] 6.13.15-17), na medida em que responde [a outros] e é responsável [por outros], na medida em que está sendo exigida [por outros] e pode exigir [de outros], na medida em que se comunica e experimenta a comunicação de outrem. Sem tal conjunto relacional, a pessoa não seria pessoa” (p. 61).

Ser ciente dessa vicissitude e vivenciar nela a fé em Jesus Cristo é “fazer/ praticar o bem”; desconhecê-la ou negligenciá-la é “fazer/praticar o mal”. Decisivo é “praticar o bem”: preencher com a fé em Jesus Cristo as relações nas quais estamos inseridos e as quais estabelecemos, respectivamente, deixar permeá-las pela fé – todas elas, sem excessão e onde dói e custa caro. Fatal é “praticar o mal”: viver isolado, reclinado na poltrona, satisfeito consigo e encurvado sobre si próprio com o sentimento oculto ou manifesto de que ‘os outros se danem’. Ainda que a atual existência dos/as crentes termine inexoravelmente, ela não é diversão nem matança enjoada de tempo, mas serviço. Como tempo e espaço para nosso serviço, ela está sob apreciação de Jesus Cristo. “Nós todos somos exigidos na morte e ninguém vai morrer pelo outro… cada qual tem de ser apto para si próprio na hora da morte: eu não estarei então contigo, nem tu comigo. Cada um precisa saber bem o que é o fundamental para um cristão – e estar preparado” (Lutero). O apóstolo Paulo emprega tamanha reflexão entranhante e paixão comovente para que os coríntios e outros deslumbrados cheguem a saber e fazer o fundamental e, por conseguinte, sejam preparados quando “perante o tribunal de Cristo”.

Assim como os/as crentes não vivem ao jeito dos super-espirituais, tampouco morrem como se morre por aí. “A morte do ser humano não é igual à dos bichos” (Lutero; apud Iwand, p. 146) – muito menos a morte das pessoas que crêem em Jesus Cristo. Motivo pelo qual não se perguntam o que será de nós quando morrermos, mas o que Jesus Cristo vai dizer referente a nosso curriculum e nossos serviços prestados em vida corporal e temporal. “De nada nos valerá sermos justos diante das pessoas ou diante de nós mesmos. Importa desviar disso os olhos e aguardar com temor” seu “veredito [cf. 1 Co 4.3s.]” (Lutero, OS v. 8. p. 520.9-11). “Nós devemos mais a Deus do que temos. Por isso não lhe pagamos de outro modo do que entregando tudo o que nós mesmos somos, reconhecendo humildemente nossos pecados e confessando sua justiça, isto é, de que ele é justo, independentemente da maneira de como sua vontade divina lida conosco” (p. 525.24-8).

4. Sugestões para o culto

1 – O texto-base para a prédica é previsto para o fim do ano eclesiástico (cf. PL IX, p. 295-300 e XV, pp. 288-93) ou para o presente domingo (cf. PL XIX, pp. 178-80). A segunda opção, na metade do ano civil (sic), faz mais sentido, já que “em meio à vida estamos/envoltos pela morte” (Lutero). Melhor seria, no entanto, pregar 2 Co 5.[1-5]6-10 no Domingo após a Festa de Cristo (cf. W. Klaas. In: G. Eichholz [ed.], Herr, tue meine Lippen auf. v. 4. 4. ed. Wuppertal-Barmen: Müller, 1963. p. 66), pois Deus encarna em corpo e tempo humanos, possibilitando, criando e tocando a existência dos seus agradável a ele, a corporal, temporal – e eterna.

2 – Acentue-se

a) na confissão dos pecados

* a esquivança quase geral da morte

* a omissão igrejeira do juízo de Jesus Cristo

* a falta de preparo eclesial, visando nosso comparecimento perante o mesmo;

b) na oração de coleta:

* o pedido de que estejamos abertos/as para a palavra de Deus

* o pedido de que a mesma não nos endureça quando nos atinge

* o pedido de que a mesma não nos passe despercebida quando exige mudanças radicais em nós, ao redor de nós e através de nós;
c) no Credo:

* o Terceiro Artigo com a explicação de M. Lutero no Catecismo Menor;

d) na oração final:

* súplica por conservação “na verdadeira e única fé” até nosso fim

* súplica por morte abençoada com confissão e perdão de nossos pecados

* prece por juízo misericordioso de todos, presentes e ausentes

* intercessão pelo destino benigno das pessoas que se mantêm afastadas da comunidade, na qual “Jesus Cristo… perdoa… a todos os crentes diária e abundantemente todos os pecados, e no dia derradeiro… dará… a todos os crentes em Cristo a vida eterna” (Lutero)

* intercessão por todos, conhecidos nossos e desconhecidos, que vivem cegos e surdos, ao bel-prazer e auto-sugestionados, em arbitrariedades e maldades, para que Jesus Cristo lhes abra o coração e sejam salvos.

3 – Como hinos sejam sugeridos: HPD 1, 53.4s.; 65.4; 94.1.4.; 122; 131; 155.1.7-10; 160; 175; 223; 271.4; 292; 298; 300; 304.3-5; 305; Lutero, OS v. 7, p.
507.5-508.40 (texto na coluna direita é cantável!); OPC 158s. e 236s. A escolha precisa ser meticulosa conforme a mensagem veiculada durante o culto inteiro e os cantos entoados não apenas nos momentos de costume.

4 – Com a reflexão esboçada acima sobre 2 Co 5.6-10 combinaria me- lhor Is 28.14-21 do que Ez 17.22-4, e Mt 10.26-33 do que Mc 4.26-34.

5 – A pregacão do texto-base deve desenvolver testemunho centrado em Jesus Cristo, visando ao tribunal dele. Entre nós, o que e quem desvia dessa exata expectativa? Sem clareza aí, a prédica prejudica quem prega e quem ouve.

a) Inicie-se com apresentação de um anúncio de falecimento no jornal, descobrindo “a fé” que nele se expressa.

b) Coloque-se “o bom ânimo” e seus desdobramentos que Paulo enfoca:

* “a fé em Jesus Cristo” sempre, sobre tudo e todos, em qualquer situação ou: seu custo

* “a fé em Jesus Cristo” é corpórea ou: sua função crítica

* o serviço corpóreo da “fé em Jesus Cristo” sob juízo ou: a prova por que passa

* a preparação para tal prova ou: o abastecimento da “fé em Jesus Cristo”.

c) Conclua-se com esboço de um anúncio de falecimento de pessoa “crente em Jesus Cristo”.


Recomendações bibliográficas

Textos para “ruminar” (Lutero):

Referentes a

I.2s. M. Lutero, Obras Selecionadas [OS] v. 7. São Leopoldo: Sinodal / Porto Alegre: Concór- dia, 2000. p. 398.24-400.12 (= Igreja Evangélica Luterana / IEL, Livro de Concórdia /LC. 4. ed. Ibd., 1993. p. 455. 59-456.66). 407.10-409.4 (= ID, op. cit., 465.59-466. 70). 417.25-418.14 (= ID, op. cit., p. 473.112-6). 456. 19-22 (= ID, op. cit., p. 372.[6]). 458.1-10 (= ID, op. cit., p. 373.6-8). 460.1-8 (= ID, op. cit., 375. 19s.). IEL, Confissão de Augsburgo – Art. XVII. In: ID, op. cit., p. 35s..1-5 / p. 71.1-5. Os Artigos de Esmalcalde – Prefácio. In: ID, op. cit., p.309.9.

I.3. M. Lutero, OS v. 7, p. 490.38-492.36 (= Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil [IECLB], Hinos do Povo de Deus – Hinário da IECLB [I.}. 5. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1984. Nº 155). P. Gerhardt. In: IECLB, op. cit., nº 65.

II.2. I. Kayser, Partistes – estás com Deus. Tentando descobrir a “escatologia” popular. Levantamentos de subsídios. São Leopoldo, 2003. p. 121-82 (Polígrafo, cuja impressão urge; quem se interessa por detalhes, entre em contato com o autor).

III.1. M. Lutero, OS v. 8. Ibd.: ibd., 2003. p. 336-337.7, 364.37-365.26.

III.2. ID., OS v. 7, p. 496.20-498.4 (veja IECLB, Hinário da IECLB. ed. São Leopoldo: Sinodal, Nº 110). 73-9.114-24. v. 9. Ibd: ibd., em prelo. Bloco “Apontamentos do Dr. M.[artinho Lutero] à Primeira Epístola a Timóteo”, passim.

III.3c. D. Bonhoeffer, Ética. 2. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1991. p. 71-83.

III.3d. M. Lutero, OS v. 8, p. 132.40-133.28 (= ID, Pelo Evangelho de Cristo. Porto Alegre: Concórdia / São Leopoldo: Sinodal, 1984. p. 184s.). W. Schrage, Ética do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1994. p. 188-90 (= 5.)?.

Textos para consultar: Referentes a

I.1. A. Baeske, A temática visa à ajuda teológica e pastoral a uma igreja localizada. In: Forum ULBRA de Teologia. Lutero o Teólogo. Canoas: ULBRA, 2004. p. 101-4.109s. I.2. A. Baeske, PL IX [1983], p. [288]-94.

I.2s. G. Aulén, A Fé Cristã. São Paulo: ASTE, 1965. p. 369-76. H. Schwarz, Locus 12 – Escatologia. In: C. E. Braaten & R. W. Jenson., Dogmática Cristã v.2. São Leopoldo: Sinodal, 1995. p. 477-588. K. Nordstokke, De onde virá para julgar os vivos e os mortos. In: W.Altmann, Nossa fé e suas razões – O Credo Apostólico (história, mensagem, atualidade). São Lepoldo: Sinodal, 2004. p. 134-40. O. L. Witt, Na ressurreição do corpo e na vida eterna. In: W. Altmann, op. cit., p. 160-4.

I.3. K. Barth, Carta aos Romanos. São Paulo: Novo Século, 1999. p. 470-85. R. Bultmann, A Escatologia do Evangelho de João. In: ID, Crer e Compreender – Ensaios selecionados. Ed. rev. e ampl. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 62-79 (= edição de 1987. p. 1987. p. 121-34). III. M. Lutero, OS v. 8, p. 143.25-144.13; J. Comblin, Segunda Epístola aos Coríntios. Diversas editoras, 1991 [Comentário Bíblico – NT].

III.1s. G. Bornkamm, Paulo – Vida e Obra. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 269-73. J. Comblin, op. cit., p. 13-27.

III.3. J. Comblin, op cit., p. 80-6.

III.3a. F. Gierus, PL IX , p. [295]-300; O. Zizemer, PL XV (1989), p. 288-93. N. Schneider, PL XIX (1993), p. 178-80.

III.3c. R. Bultmann, Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Teológica, 2004. p. 382-402. III.3d. F. Melanchthon, Apologia IV. In: IEL, LC. p. 110.1-176.400. G. O. Forde. Locus 11: Vida cristã. In: C. E. Braaten & R. W. Jenson, op cit., p. 401-72. O. Bayer, Viver pela Fé – Justificação e Santificação. São Leopoldo: Sinodal, 1997. Em especial: p. 52-60. E. Kae[ä]semann, Perspectiva Paulinas. Sãio Paulo: Paulinas, 1980. p. 26-32.

IV.5b. A. Baeske. Creio em Jesus Cristo, nosso Senhor ou: “Ele serve pra sê Sinhô” (P. do Assaré). In: W. Altmann, op. cit., em especial: p. 73-8.