Proclamar Libertação – Volume 34
Prédica: Lucas 15.1-10
Leituras: Êxodo 32.7-14 e 1 Timóteo 1.12-17
Autor: Ricardo Willy Rieth
Data Litúrgica: 16º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 12/09/2010
A alegria de Deus por encontrar quem estava perdido é o tema central do texto previsto para a pregação. Jesus exemplifica essa alegria ao fazer com que seus ouvintes dirijam o olhar para o cotidiano de um pastor de ovelhas e de uma dona de casa. Pelas pequenas alegrias das ocorrências banais do dia-a-dia, temos nossa atenção voltada para a alegria completa de Deus quando, por meio de Jesus, encontra os que estavam perdidos e convive com eles em plena comunhão. Pelas parábolas narradas, Jesus convida a comunidade de fé reunida a celebrar liturgicamente a imensa alegria de um Deus que é, acima de tudo, amor.
Em comparação com Mateus e Marcos, Lucas é o evangelho que de forma mais expressiva retrata Jesus em busca dos pecadores, movido por incondicional amor. As três parábolas reunidas em Lucas 15 representam um ponto alto nesse sentido. Por certo cada uma por si só é uma unidade, mas também podem ser interpretadas conjuntamente. Os termos “perdido” e “achado” aparecem paralelamente nos versículos 4, 6, 8, 9, 24, 32. O tema básico da alegria, por sua vez, surge nos versículos 5, 6, 7, 9, 10, 23, 24, 32.
Qual o sentido para que as três parábolas estejam reunidas? Uma abordagem paralela com o sermão do monte, em especial Mateus 7.7-11, pode auxiliar a que se compreenda isso. No fundo, também ali as mesmas coisas são ditas três vezes. Tanto em uma como na outra passagem transparece nas entrelinhas a dúvida acerca do credibilidade do que é dito ou narrado. Por causa do duvidar e do murmurar, expressos em voz alta na forma de restrições, o tema por duas vezes em uma passagem, por três na outra. O conteúdo das três parábolas, mesmo que referente a situações práticas da vida cotidiana, não se entende por si só.
O contexto das parábolas é marcado pela murmuração de escribas e fariseus, algo presente já em Lucas 5.27-32 e que retornará em 19.1. Não por acaso, para expressar essa “murmuração”, é utilizada a mesma expressão dos antepassados veterotestamentários dos críticos de Jesus, quando protestaram contra o modo como Deus conduzia o povo. Trata-se da reação dos piedosos quanto ao agir de alguém que já em Lucas 5.21 foi chamado com certo menosprezo de “este”. As três parábolas são dirigidas a fariseus e escribas. No versículo 7, eles são os “justos” e, nos versículos 25-32, reaparecem como o irmão mais velho. No versículo 10, não são expressamente nomeados, mas sua presença silenciosa é pressuposta como parceiros de conversa.
As três parábolas de Lucas 15 são estruturadas de forma análoga. Tanto faz a partir de qual delas o conjunto é interpretado. Ao lado do homem, na primeira parábola, aparece a mulher. Assim como o pastor, também ela é parte dos pobres e pequenos, aos quais Lucas se dirige de modo especial.
A dracma perdida pela mulher não corresponde a um valor monetário muito elevado. Se, porém, é parte do seu presente de casamento, como supõem diversos intérpretes, então a perda se refere a um valor tão elevado quanto o da pessoa amada. Sem essa moeda, o adorno de casamento da mulher não está mais completo, assim como o rebanho sem a ovelha que se perdeu carece de integralidade (comparar com Jo 6.39).
As parábolas são narradas a partir da perspectiva de Deus. O termo “perder” tem, no grego, um duplo significado. Fala-se em “estar perdido”, “perderse”, num emprego que dá a entender que se está arruinado. Na perícope, porém, fala-se na mulher que perde sua dracma, a qual não mais está em seu poder e lhe faz falta. Por isso ela a procura. Por isso também a alegria é tão grande quando ela finalmente a encontra. O “pecador”, citado nos v. 7 e 10, não é o tema da perícope, mas o amor de Deus pelas pessoas, como expresso em Ezequiel 34. Esse amor é demonstrado por Jesus quando acolhe e celebra com os pecadores. O fato de virem para ouvi-lo é indicativo de sua conversão.
Voltando o olhar agora para a primeira parábola, é preciso partir de uma afirmação básica. Muitos exegetas insistem que, para interpretar as parábolas de Jesus, é preciso encontrar um ponto decisivo, no qual a imagem e o tema central se correspondem mutuamente. Outros procuram valorizar também elementos secundários presentes nas parábolas. A maioria das parábolas de Jesus fala do reino de Deus. Esse também é o caso de Lucas 15, com a passagem paralela em Mateus 18.12-14. Para os fariseus e os escribas, o reino de Deus representava uma grandeza futura. Para Jesus, o reino de Deus irrompera com sua vinda. Por isso Jesus emprega com frequência um modo de falar que causa estranhamento. Esse é o caso, por exemplo, em Lucas 16.1-9, além de, em nossa perícope, os v. 4-7. Se fosse agir de modo racional, um pastor de forma nenhuma tomaria a atitude do pastor da parábola. Sabe ele se irá encontrar sua ovelha? Não coloca ele desse modo a vida das outras 99 em risco? Mas ele não fica contando ovelhas. Segue o primeiro impulso de seu coração: “Preciso encontrar minha ovelha”. O amor de Deus, ilustrado dessa maneira, é a primeira coisa que Jesus quer mostrar. Um amor assim deve deixar-nos estupefatos. Nossa identificação com a alegria ali expressa é tão-somente secundária.
Nessa perícope, Jesus encontra-se a caminho do sofrimento. Os justos não irão entendê-lo. As parábolas de Jesus são uma chave interpretativa para sua obra de vida. Há uma linha direta que corre entre as parábolas e a cruz. Lucas 15.4-7 não está, por isso mesmo, tão distante de João 10.11. A primeira exigência à interpretação de uma parábola de Jesus é o reconhecimento do mistério messiânico relativo a Jesus, que nela está oculto.
Muitos intérpretes sugerem que o objetivo de uma pregação sobre Lucas 15.1-10 deve ser a afirmação da alegria de Deus, que nos deve contagiar. Por certo isso faz sentido. No entanto, ao mesmo tempo é preciso destacar um estágio anterior a isso, ou seja, ressaltar a estupefação com a descoberta de que Deus se preocupa com cada pessoa individualmente. Seria interessante iniciar abordando a experiência humana relacionada à perda de um objeto importante, uma chave por exemplo, à qual seguem uma busca penosa e um alegre reencontro. Ponto de par- tida para isso pode ser a mesma pergunta de Jesus: “Qual, dentre vós, é o homem…?” (v. 4); “Ou qual é a mulher que…?” (v. 8).
Da lembrança de uma história bíblica, conhecida desde a infância, advém a afirmação de Jesus: Assim é Deus! Ele age como esse pastor, como essa mulher. Falta-lhe a dracma, o adorno nupcial não está mais completo. Só que, no caso de Deus, não se trata de um objeto, mas de uma pessoa. Para Deus, uma pessoa é mais importante do que tudo o mais (Sl 8.4s). A nós, participantes do culto, isso sempre de novo parece incrível. Por isso Jesus não se limita a uma só parábola, mas logo acrescenta outra, e outra mais, para nos surpreender por completo, para nos deixar estupefatos com a procura incondicional de Deus pelas pessoas.
Se nos surpreende a simples razão de que para Deus uma pessoa seja tão importante, tanto mais ficaremos estupefatos ao saber qual tipo de pessoa é tão importante para ele. É aquela que, de acordo com a palavra de Jesus, está faltando, mas apesar disso segue sendo sua propriedade. Conforme a parábola: Deus deixa as 99 ovelhas e concentra seu interesse naquela que está perdida. Justamente ela lhe falta.
Nós que com seriedade queremos viver a fé cristã, percebemos que isso tem a ver conosco? Não perguntamos também nós, assim como o justo a seu tempo: “Será que tudo está de pernas para o ar? Um pecador não precisa primeiro provar que seu arrependimento é sério?” Jesus pensa e age de outra forma. Os justos não queriam deixar-se afastar por Jesus de uma ordem, que em sua opinião era divina. Por isso levaram-no à cruz. Contudo, justamente desse modo, pela morte e ressurreição de Jesus, Deus se põe no caminho para encontrar os perdidos.
Ninguém está excluído disso, mesmo os justos e os que com seriedade querem ser cristãos. Jesus provoca nossa surpresa, deixa-nos estupefatos com inconcebível amor de Deus. Com essa estupefação quer transformar-nos, quer puxar-nos para dentro da busca de Deus pelo que está perdido.
A estrutura da prédica pode assumir duas partes principais, (1) estar perdido e (2) ser achado, destacando em ambas o elemento central da alegria de Deus por, movido por seu amor, encontrar o que estava perdido.
Publicanos e pecadores conviviam com Jesus, que tinha comunhão com eles, partilhando refeições, enfim, alegrava-se em sua companhia. Nesse contexto, é lançada a pergunta quem são, afinal de contas, os pecadores? Fariseus e escribas murmuram contra Jesus. Estão irritados porque, no seu entender, sua própria conduta de moralistas, perfeccionistas e exigentes cumpridores da lei está de um modo ou outro sendo desconsiderada pela atitude de Jesus.
Central nas parábolas dos perdidos é a alegria de encontrar o que estava perdido. A referência são pequenas alegrias, alegrias do cotidiano. Assim como o pastor e a dona de casa, quem já não encontrou alguma vez algo que estava perdido depois de muito procurar? Sem dúvida, é um momento de alegria. Jesus quer mostrar, com suas narrativas, a alegria que sente quando é buscado por gente que estava totalmente perdida, os publicanos e pecadores que agora conviviam com ele. Jesus fica pleno de alegria.
Da mesma forma, Deus fica alegre conosco quando voltamos a seu convívio na e a partir da fé em Jesus Cristo. Nossa condição era de completo distanciamento em relação a Deus e à pessoa próxima. O distanciamento de Deus ficava mais evidente no tipo de relação mantida por nós com nossos semelhantes, de exploração, querer levar vantagem de todas as formas sobre os demais. No Batismo, no arrependimento diário, na fé constantemente renovada, na comunhão da Santa Ceia, sentimos o braço firme de Deus que nos encontra, levando-nos a compartilhar sua companhia em uma circunstância de completa alegria.
Essa alegria de Deus não se limita a nós. Ele quer senti-la na convivência com todos. Quer alegrar-se, encontrando todos os que se encontram perdidos. Aí entra nosso testemunho. Tal como convivia com publicanos e pecadores, Jesus hoje convive conosco na comunhão eclesial, graças à ação do Espírito Santo, pela Palavra e pelos sacramentos. Por esses meios, Deus segue encontrando os perdidos.
A narrativa das parábolas, por si só, traz consigo imagens altamente expressivas. Por outro lado, muitas são as outras possibilidades, explorando, por exemplo, o perder e o encontrar. O estar perdido em um determinado lugar, por exemplo. Ir sozinho a um lugar desconhecido provoca insegurança em muitas pessoas. Viajar a uma cidade onde nunca se esteve antes, sem a companhia de alguém que conhece o lugar. É grande o temor de perder-se nesse espaço desconhecido, não saber por que rua ir, que ônibus tomar, sem ter onde telefonar ou saber se o bairro em que se está é perigoso ou não. Sentir-se completamente perdido num lugar estranho é muito desagradável. Fica-se desorientado, acuado e fragilizado.
Em tal situação, imaginemos um morador da cidade que vem ao nosso encontro. Pergunta se precisamos de ajuda. Conhece o endereço que estamos buscando. Indica o melhor caminho e a melhor maneira de chegar lá. Talvez, até mesmo, nos acompanhe até nosso destino. Uma pessoa assim certamente fica satisfeita com sua própria atitude. Sente, é verdade, alegria em poder ajudar alguém que passa por dificuldades. E nós, de nossa parte, ficamos aliviados e alegres por não mais vivenciar a angústia de antes. Estar perdido, ser encontrado, viver a alegria daí decorrente são situações cotidianas que expressam algo muito profundo que vivenciamos em nossa relação com Deus.
A confissão de pecados poderia lembrar a passagem da situação de perdidos para a comunhão festiva à mesa, na companhia de Jesus e de todos os achados, que é vivenciada no arrependimento, como retomada do afogamento do pecado por ocasião do Batismo.
A coleta poderia dirigir a Deus o pedido de que inspire a liturgia da comunidade de fé reunida, para que tal liturgia corresponda à alegria sentida ao encontrar o perdido.
A oração geral poderia incluir o pedido de auxílio a Deus na tarefa da comunidade cristã de ser instrumento para que ele encontre os perdidos.
BORNHÄUSER, Hans. 3. Sonntag nach Trinitatis – Lk 15.1-7(8-10). In: BORNHÄUSER, Hans et alii (ed.). Neue Calwer Predigthilfen: Erster Jahrgang Band B: Exaudi bis Ende des Kirchenjahres. Stuttgart: Calwer, 1979. p. 62-69.
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SCHWEIZER, Eduard. Das Evangelium nach Lukas. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1982. (Das Neue Testament Deutsch; 3)
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).