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Proclamar Libertação – Volume 35
Prédica: Mateus 18.15-20
Leituras: Ezequiel 33.7-11 e Romanos 13.8-14
Autor: Paulo P. Weirich
Data Litúrgica: 12º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 04/09/2011

 

1. Introdução

Este domingo gira em torno da pergunta dos discípulos: “Quem é o maior no reino dos céus?” Uma pergunta que ainda está no ar. No reino dos seres humanos, essa pergunta tem muitas respostas. Mas o princípio é comum: Alguém deve ser maior. Com isso a humanidade escreve sua história, e os indivíduos escrevem suas biografias. Infelizmente, esse princípio pressupõe interesse pessoal, comparações, confrontos, sistemas de retribuição e retaliações.
Nesse contexto, Jesus ensina que o reino dos céus implica não permitir que alguém venha a tornar-se “menor”. O que fazer para que ninguém se torne pequenino no reino dos céus?

1.1 – Ezequiel 33.7-11

Tomamos conhecimento de catástrofes que acontecem diariamente. Casas soterradas, enchentes, epidemias, crimes e guerras. A contagem não termina. O homem procura afirmar-se diante da natureza no esforço de dominar seus segredos. Entretanto, diante da catástrofe, o homem fica reduzido a uma sensação incômoda de insignificância e fragilidade diante da natureza descontrolada. Mas a tragédia mais incômoda é a tragédia diária das mortes no trânsito e dos traumas daí resultantes, tragédia com forte ingrediente não de fragilidade do ser humano, mas da presunção de domínio sobre a máquina a qualquer custo e consequência.

Não é simples comparecer diante de uma comunidade para, diante desses fatos, anunciar que essa é a linguagem de Deus para dizer a todos: “Certamente morrerás”. É mais agradável deixar passar e falar de esperanças e possibilidades para a humanidade; falar de projetos e engajamentos por um mundo melhor; acreditar que o ser humano pode mudar tendências em sua natureza desde que seja modificado o ambiente.

O profeta não deve repetir os slogans com os quais a humanidade constrói suas ilusões. Deus quer que as pessoas reconheçam nos acontecimentos a sua presença, tanto quando Deus salva como quando Deus sinaliza nos fatos do dia a presença e a vinda de seu juízo: “Por que haveis de morrer, casa de Israel?”. O juízo de Deus é real e mostra-se diariamente nas calamidades e tragédias, pelas quais Deus anuncia que é melhor buscar refúgio ali onde há real refúgio, ou seja, na graça e no perdão de Deus. Somente então a vida faz sentido.

1.2 – Romanos 13.8-14

É o extremo desafio na vida cristã: A ninguém fiqueis devendo coisa alguma. Então se fala do amor que Deus restabeleceu para o mundo na obra vicária que realizou pela humanidade. É o amor que pressupõe o perdão e vive do perdão. Para que Deus efetivamente ame o pecador, Deus necessita executar seu juízo contra o pecador. O juízo que se abateu sobre o Filho de Deus não cancelou o juízo final de Deus. Desse juízo estamos nos aproximando a cada dia que passa. Ignorá-lo é impossível para a igreja. Os sinais aí estão, uns atestando o quanto o ser humano está distante da obra de Deus, outros atestando que Deus na natureza anuncia o juízo que está por vir.

Em que situação ficamos? Revestidos do amor que nos foi confirmado na pessoa de Jesus Cristo. Ele nos ama através das pessoas que nos aceitam e nos amam como somos. As pessoas são sinais de um novo reino, para o qual fomos resgatados. O amor é o sinal do reino que desfrutamos quando nos damos conta de que somos amados por Deus nas pessoas que ele envia ao nosso encontro e que decidem estar ao nosso lado.

 

2. Exegese

Já dividindo o espólio? Vejo como muito feliz a relação estabelecida pelos textos deste domingo. O evangelho trata de como o juízo e o amor de Deus estão presentes nas relações das pessoas que conhecem Jesus.

2.1 – Contexto

A perícope de Mateus 18.15-20 deve ser compreendida no contexto em que surgiu. O evangelista Mateus relata como Jesus fala de sua trajetória pessoal no enfrentamento da morte. Até que ponto os discípulos compreenderam o significado do que se dizia, isso fica em aberto. Entretanto, perceberam que alguma coisa grandiosa se aproximava e que o enfrentamento deveria ser mortal. E com isso “se entristeceram grandemente” (17.23). A isso Mateus adere a questão de pagar ou não impostos a uma potência estrangeira e opressora. Estará Mateus dando a entender que os discípulos estavam antevendo algum enfrentamento social político? A narrativa não esclarece. Mas, sintomaticamente, logo após a narrativa de Mateus, continua: Naquela hora; naquele contexto, talvez, aproximaram-se de Jesus os discípulos com uma questão: “Quem é o maior no reino dos céus?” (18.1).

A pergunta não é inócua. Ela revela a compreensão de uma estrutura nas relações entre as pessoas. O ser humano tem como princípio que as pessoas se distinguem umas das outras pelo fato de umas serem maiores e outras, por consequência, restarem menores. Os discípulos não perguntam por critérios de avaliação. Também não pedem por justiça e igualdade. Eles querem saber o que torna alguém merecedor de governar sobre os demais. Será que a narrativa de Mateus quer dar a entender que os discípulos já estavam procurando dividir qualquer possível espólio de poder e influência que a anunciada morte de Jesus poderia acarretar? Já estavam procurando um substituto?

Jesus parece não responder à pergunta. Parece não se dar conta da importância que o problema adquire no estabelecimento e manutenção das relações entre as pessoas. É fundamental que alguém tenha a responsabilidade de definir e decidir sobre o que é certo ou errado, quem merece ou quem não merece a honra de fazer parte de um grupo. Alguém precisa decidir quando alguém se torna indigno de participação no grupo. Não é de honra e dignidade que se faz a pessoa e o ambiente em que está inserida?

 

3. Meditação

Jesus então acolhe a pretensão dos discípulos e lhes oferece seu espólio: “Aqueles que pecaram contra ele”. Esse é o espólio que o reino de Jesus ajuntou para ser dividido entre aqueles que pretendem conduzir as coisas do seu reino depois de sua morte.

Irmãos e irmãs estarão pecando contra irmãos e irmãs. Jesus ecoa algo que Moisés havia dito: “Não aborrecerás o teu irmão no teu íntimo” (Lv 19.17a). Esse texto faz parte da quinta seção do livro, que se debruça especialmente sobre a relação das pessoas entre si. O objetivo dessas admoestações era que o amor estivesse presente e refletido no trato com as pessoas no dia-a-dia. Especialmente focando as relações do ponto de vista de uma vida que reflete o culto a Deus, ou em outras palavras, a piedade daqueles que são crentes e pretendem ser vistos como povo de Deus (Lv 11.45). Portanto não se limita a leis e regras de convívio na sociedade mais ampla, das relações civis. Esse versículo leva o povo a olhar para dentro de si próprio, para o íntimo de cada um. Esse olhar para dentro de si próprio Jesus aponta para os discípulos, em especial no Sermão do Monte (Mt 5.32,33,38 etc.): “Ouvistes… Eu, porém, vos digo…”

Jesus retoma os ensinamentos da piedade que Deus apontou no passado para seu povo e também como essa piedade fora interpretada por Moisés quando essa piedade não era exercida. Jesus mostra que, para o Israel da Nova Aliança, nada seria diferente. Haveria pessoas que cairiam da fé, agiriam contrariamente aos preceitos do reino e desafiariam e colocariam em risco a harmonia entre aqueles que estavam sob a aliança. Dos fiéis da Nova Aliança Deus esperaria o mesmo que Deus pedira dos féis da Antiga: “Olhem para dentro, para o próprio íntimo” (Lv 19.17).

Falar com o irmão em falta não é meramente uma prescrição de um comportamento, mas deve brotar de uma disposição íntima em relação ao faltoso.
“Não aborrecerás o teu irmão no teu íntimo”, isto é, a falta do irmão contra ti provoca ressentimento, mágoa e rancor. Não basta falar com ele. Mas falar precisa ser o antídoto do aborrecer ou guardar a mágoa para si, no íntimo.

Mas falar também não é aquele falar que serve ao propósito superficial de “botar em pratos limpos”. Se o teu irmão pecar contra ti, ele se tornou alguém indigno, pois ofendeu Deus, que de todos espera que o amor guie as vidas daqueles que dizem que desejam obedecê-lo. A ofensa, na verdade, atinge Deus e não somente as pessoas. Guardar ressentimentos impede que você se aproxime dele e impede que a vontade de ajudá-lo se desenvolva. A questão não se limita ao plano horizontal das relações humanas. Ambos, ofendido e ofensor, estão na presença de Deus. Guardar ressentimentos ou tratar com indiferença aquele que errou manifesta a pecaminosidade de ambos.

Essa é uma conversa que acontece na presença de Deus e não pode visar outros propósitos senão aqueles que Deus preparou. A missão de Cristo é a reconciliação com Deus (2Co 5.18-21). Por isso “ganhar o irmão” tem em vista a ligação que Deus estabeleceu com ele e da qual ele pode estar se afastando. Quais são os sentimentos, frustrações, desejos, ansiedade e mesmo ambições que o levam a ofender-te? Ou então, será alguma coisa em ti que pode ter causado a ele fazer de ti objeto de ofensa para ele? Nenhuma ofensa ou agressão nasce no vácuo. Cada gesto tem um contexto. Podemos julgar unilateralmente? Pode o erro estar somente de um lado? Como o ambiente contribuiu para tal desfecho?

Cristãos têm somente um recurso e um objetivo para manter relações construtivas entre si: o perdão. Aquele que erra é um pequenino ou, na comparação de Jesus, uma criança que não pode ser abandonada à própria sorte. Na verdade, cada um é o pequenino que está sendo amparado pela graça de Deus e pelo amor dos que o cercam. O que mantém alguém de pé, aquilo que nos faz parecer grandes, é aquilo que as pessoas ao nosso redor nos atribuem: honra, dignidade, méritos. São dons maiores do que a nossa capacidade pessoal. Se as pessoas ao nosso redor começarem a não atribuir a nós nome e dignidade, nada somos.

Por essa razão, se alguém ao nosso redor faz por ferir a sua própria dignidade, Jesus pede que corramos em socorro para resguardar a dignidade daquele que quer ferir nossa dignidade. Precisamos uns dos outros.

O tesouro do reino de Jesus, ao qual os discípulos aspiravam, a merecida dignidade era, na verdade, a imerecida graça do perdão. Jesus não possui outro reino e nem outro tesouro. Ele desceu abaixo da humanidade, abaixo da indignidade do ser humano, em busca do perdão de Deus para todos. O juízo de Deus abateu-se sobre ele, porque ele se comprometeu com nosso pecar e da profundidade da condenação eterna trouxe junto com o perdão a vida que vivemos na harmonia que Deus estabelece entre as pessoas. A harmonia preserva-se e somente é possível ali onde as faltas são perdoadas e ocultas. Vai, “entre ti e ele só”. A dignidade que carregamos e que as pessoas reconhecem em nós é obra de Deus em nosso favor. Sendo isso verdade, como alguém se negaria a cobrir de dignidade aquele que nos ofendeu?

Quantas vezes? Sempre. É interessante o fechamento desse ciclo de intervenções junto ao faltoso. Como coadunar essas três intervenções com a expressão “até setenta vezes sete”? Na verdade, ao fim e ao cabo, são três formas de se apresentar ao faltoso. Em outras palavras, é necessário saber se a indisposição do faltoso é de natureza privada, individual, contra uma pessoa da igreja, ou se a atitude é de natureza mais profunda, que revela uma indisposição contra os princípios que marcam a vida da igreja como um todo. Talvez então a conta seria três vezes setenta vezes sete. Talvez essa conta se aproxime melhor para servir de metáfora para que seres humanos visualizem e comecem a fazer ideia da dimensão da infinita misericórdia e compaixão de Deus sobre cada ser humano. O convite de Paulo aos Romanos busca essa dimensão da dimensão de amor que recebemos e que de tão plenamente dado a nós nunca faltará se quisermos utilizá-lo. O amor que devemos ao próximo é uma dívida impagável.

 

4. Subsídio litúrgico

Coleta do dia:

Onipotente Deus, que te compadeceste de nossa indignidade e nos cobriste com a tua santidade, nos te imploramos, dá-nos o teu Espírito para que entre nós possamos, em humildade diante de Ti, também cobrir as faltas uns dos outros e nos estimular a servir em amor para que o teu reino venha também a nós. Amém.

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Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).