Proclamar Libertação – Volume 35
Prédica: Mateus 26.14-27.66
Leituras: Isaías 50.4-9a e Filipenses 2.5-11
Autor: Rene Zanandréa
Data Litúrgica: Domingo da Paixão – Domingo de Ramos
Data da Pregação: 17/04/2011
Estamos muito próximos da celebração da Páscoa da Ressurreição de Jesus Cristo. Por um longo período que antecede essa celebração da centralidade da fé cristã, viemos acompanhando os relatos bíblicos que mostram a atividade pública de Jesus propondo o reino. Tal proposta não foi compreendida pelas pessoas de sua época; essa proposta de amor fraterno ainda não é suficientemente compreensível.
A tensão que se cria entre a proposta salvífica e a má acolhida a ela – sobretudo pelos mais abastados – resulta na condenação de Jesus à morte. E morte humilhante. Isso já fora prenunciado pelo profeta: “Apresentei minhas costas para aqueles que me queriam bater e ofereci o queixo aos que me queriam arrancar a barba e nem escondi o meu rosto dos insultos e escarros” (Is 50.6).
A condenação de Jesus não se dá ao acaso. Há um sistema organizado que não permite qualquer questionamento. No império, não há espaço para pensar; não há lugar para quem trabalha e é explorado. No império religioso, a dependência é “prato cheio” para lideranças que se beneficiam de um rebanho incapaz de perceber um Deus misericordioso. O reino proposto por Jesus restabelece a dignidade do homem e da mulher encurvados, resignados. Por isso o sistema o rejeita e condena.
Poderia Jesus se livrar disso tudo? Sim, poderia. Mas não o fez, conforme a narração: “Contudo, não seja feito como eu quero, e sim como tu queres”, disse (Mt 26.39). Esvaziou-se, humilhou-se… por isso Deus o exaltou (Fp 2.5-11).
O texto atribuído ao profeta assegura: o Senhor Deus veio em meu auxílio. A terceira profecia do Servo Sofredor (também conhecido por Servo de Javé) descreve, em antecipação, a vida e a paixão de Jesus. Apesar de todas as provas e dificuldades, o Servo mantém uma atitude de confiança em Deus e de amor pelo próximo, em especial pelos desanimados. Ele mantém-se seguro e, apesar de tudo, calmo, porque sabe que sua missão não é em vão.
Recém-chegado a Jerusalém, Jesus revelou-se como o Messias, o Rei servo, humilde, pacífico, anunciado pelos profetas. Há um crescendo de pessoas que o seguem por causa disso. Em sua pregação, opõe-se ao poder, glória e tirania dos poderosos. Ele é a esperança de salvação para o povo que o aclamara festivamen- te em sua entrada na cidade com trechos do Salmo 118.
Jesus celebra a ceia com seus discípulos no contexto da Páscoa judaica. Mas a ceia de Jesus adquire um sentido novo. Não se menciona o cordeiro, pois Jesus é o novo Cordeiro pascal, que entrega sua vida pela salvação definitiva de toda a humanidade.
Jesus assumiu, através da aceitação plena da humanidade, a pobreza radical do homem diante de Deus. Coerente com essa escolha, apoiou-se exclusivamente na palavra do Pai, que, através das Escrituras e dos acontecimentos, lhe indicava o caminho para o cumprimento de sua missão. Sujeitou-se inclusivamente à condição do homem pecador, ao sofrimento, aos limites da natureza humana, sem excluir a própria morte física. Afinal, aceitou até as últimas consequências a condição de homem, um homem como todos, um pobre homem que não é sequer poupado ao pior dos martírios daquele tempo.
Fez-se obediente até a morte. Um dos mais belos e profundos textos que há no Novo Testamento propõe-se como convite a adotar os mesmos sentimentos que havia em Jesus Cristo, que, apesar de ser quem era, não duvidou em fazer-se o último de todos. Esse gesto de aniquilamento é tanto mais admirável quanto mais alto, digno, perfeito e nobre é Aquele que lhe dá rosto. Jesus não teve medo e, como verdadeiro servo sofredor, viveu até a morte, e morte de cruz, a experiência humana. Mas, depois disso, Ele foi glorificado como Senhor. Também nisto Ele nos serve de modelo, pois a maior parte das vezes pensamos que a humilhação, a entrega e a morte pelos outros é uma inutilidade.
A liturgia relembra e convida-nos a celebrar esses acontecimentos da vida de Jesus, que se entregou ao Pai como vítima perfeita e sem mancha para nos salvar da escravidão do pecado e da morte. Crer nos acontecimentos da paixão, morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo é crer no mistério central de nossa fé; é crer na vida que vence a morte; é vencer o mal; é também ressuscitar com Cristo e com Ele vivo e vitorioso viver eternamente. É proclamar, como nos diz São Paulo: “Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai” (Fl 2.11).
Há algumas características próprias do evangelista Mateus narrar a paixão de Jesus. Escrevendo para cristãos provindos do judaísmo, Mateus tem muito cuidado em justificar e provar o que vai dizendo com a confirmação das previsões do Antigo Testamento: tudo o que está a acontecer tinha sido previsto pelos profetas.
Mateus também é o único que denuncia explicitamente o uso da força e da violência. É interessante verificar, a esse propósito, que só em Mateus encontramos a seguinte frase dirigida a Pedro quando esse puxou da sua espada para se defender: “Guarde a espada na bainha. Pois todos os que usam a espada, pela espada morrerão” (26.52).
Por estranho que pareça, dois pormenores são exclusivos de Mateus: o sonho da mulher de Pilatos (27.19) e o gesto de Pilatos de lavar as mãos (27.24). Somente em Mateus encontramos a frase: “Que o sangue dele caia sobre nós e sobre os nossos filhos”, como reação e resposta do povo às palavras de Pilatos: “Eu não sou responsável pelo sangue desse homem. É um problema de vocês” (27.25).
Outro episódio referido apenas por Mateus é a morte de Judas (27.3-10). E, finalmente, só Mateus nos fala dos guardas do sepulcro (27.62-66).
Jesus veio para salvar toda a humanidade, servindo, amando e se compadecendo especialmente dos que mais precisam de salvação.
A morte de Jesus tem um significado redentor, como mostram também os diversos sinais que a acompanham (Mt 27.51-53). O véu do templo, que se rasga, simboliza a aliança que Deus realiza com todos os povos por meio de Jesus Cristo, rompendo as barreiras de separação. A morte de Jesus inaugura uma nova etapa e torna-se esperança de ressurreição dos mortos. Jesus entrega sua vida pela salvação de todos os que o confessam Filho de Deus, a exemplo do centurião (Mt 27.54), e o seguem e servem, como as mulheres discípulas (Mt 27.55-56). Como o servo sofredor realçado pelo profeta Isaías, Jesus permaneceu fiel à missão superando as dificuldades e humilhações. Assim ele é o exemplo a ser seguido. Assim o enfatiza a Carta de Paulo aos Filipenses através de um hino cristológico bem conhecido.
As leituras convidam-nos a meditar sobre o mistério do sofrimento de Jesus Cristo, que passou pelo aniquilamento da cruz e da morte para chegar à glória da ressurreição. A paixão de Cristo, servo sofredor, continua em todos os sofredores de hoje. Seguindo os passos da paixão de Jesus, somos convidados a nos despojar para celebrar a grande festa da Páscoa, a vitória sobre a morte. O exemplo de fidelidade de Cristo impele-nos a seguir o plano de amor do Pai até o fim, dedicando nossa vida inteira a serviço da justiça, solidariedade e libertação.
Quem considera que a vida do cristão, seguidor de Cristo, é uma vida triste, de puro sacrifício e humilhação, está equivocado. O sacrifício estará presente, não importa se a pessoa é cristã, budista ou muçulmana. Pelo menos seguindo a Cristo não será outra coisa senão feliz. Felicidade não como abandono ao vício, às superficialidades da vida, mas como seguimento alegre de Cristo.
Acompanhemos Cristo de perto nesta Semana Santa. Não devemos fazê-lo como quem está sentado numa poltrona assistindo a uma novela, como telespec-ador passivo. Vivamos o mistério como quem está dentro da cena. Efetivamente, estamos envolvidos; por nós se realiza a redenção. Sigamos a Cristo acompanhados de Maria, que sofreu terrivelmente, mas se alegrou como ninguém com a ressurreição de Cristo.
Demos graças a Deus pelo abaixamento e pela morte de Jesus Cristo, que, inocente, quis sofrer pelos pecadores, pelos criminosos e foi condenado a morrer. Sua morte apagou nossos pecados, e sua ressurreição nos trouxe vida. Nele, nossos sofrimentos e nossa morte têm sentido, uma vez que a morte não é a última palavra.
O refrão “Prova de amor maior não há que doar a vida pelo irmão” pode ser cantado repetidas vezes ao longo da pregação. Tal refrão será cantado inter- mediando breves falas do orador, que recorda a ação de Jesus: 1) indo até as últi- mas consequências do amor pela humanidade; 2) não reagiu violentamente, mas aceitou ser humilhado como o servo que sabe o porquê de determinada causa; 3) Deus o exaltou: a morte não tem a última palavra. O desejo de Deus é que a vida, a dignidade, a justiça prevaleçam; 4) inspira nossa vivência no hoje da história: amor desmedido, fraterno e responsável para com a humanidade e todo o planeta.
A festa da cruz:
Hoje, eu vejo nosso Senhor Jesus Cristo sobre a cruz e nós em festa, para que se aprenda que a cruz é festa e festa solene em sua espiritualidade.
Antigamente, a cruz era de condenação. Agora, ela é objeto de honra.
Antigamente, símbolo da morte. Hoje, princípio de salvação.
Pois ela se tornou raiz de muitos benefícios.
Ela nos libertou do erro, ela nos iluminou quando estávamos nas trevas.
Vencidos, ela nos reconciliou com Deus.
Inimigos, ela nos devolveu a amizade com Deus.
Distantes, ela nos aproximou dele.
Destruição da amizade, garantia da paz e tesouro de milhares de riquezas.
Graças a ela, não estamos mais perdidos no deserto, mas conhecemos o caminho verdadeiro.
Não habitamos mais fora do palácio real, pois encontramos a porta.
Não tememos mais as flechas de fogo do demônio, pois descobrimos uma fonte.
Graças à cruz, não somos mais viúvos, mas recebemos o esposo. Não vivemos mais no meio do lobo, pois temos o bom pastor.
Eis porque nós estamos em festa ao celebrar a memória da cruz.
João Crisóstomo (+407)
Homilia sobre a cruz e o ladrão, I, 1,4
Dicas:
É importante preparar bem e com antecedência a leitura da paixão, distribuindo as diversas personagens para tornar mais dinâmica a participação. Tratando-se de um texto bastante longo, as pessoas podem ficar sentadas. Quando se narra a morte de Jesus, todos se ajoelham e permanecem alguns minutos em silêncio. Se necessário, pode-se intercalar a leitura da paixão com algum refrão adequado.
CARPANEDO, Penha; GUIMARÃES, Marcelo. Dia do Senhor: Guia para as celebrações das comunidades – Ciclo Pascal. São Paulo: Apostolado Litúrgico Produções, s.d.
REVISTA DE LITURGIA. Publicação bimestral do Apostolado Litúrgico. São Paulo
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).