Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: 1 João 2.1-6
Leituras: João 15.9-17 e Atos 10.44-48
Autora: Anelise Lengler Abentroth
Data Litúrgica: 6º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 13/05/2012
Eis um tempo muito especial para nós. O segundo domingo de maio é, no calendário civil, o Dia das Mães. A IECLB tem adotado esse domingo como o Dia Nacional da Diaconia. São duas datas significativas, para as quais os textos previstos podem ser de grande auxílio.
O conteúdo dos textos gira em torno dos mandamentos e da obediência a eles, do pecado, da fé, do amor e do dom do Espírito Santo. Há muitas tradições envolvidas, há muitos conflitos presentes, há rupturas e mágoas, há doutrinas conflitantes, há o pentecostes dos pagãos. Tudo isso permeado por um tema: o amor incondicional de Deus, revelado em Cristo, que nos faz agir como seus amigos e amigas, numa ética que leva a sério o amor de uns pelos outros. Penso que o tema está intimamente ligado à figura materna e ao serviço cristão de amor.
1 João 2.1-6 faz parte da carta cuja autoria foi atribuída ao autor do quarto evangelho: João. O nome do autor não é mencionado. Ela também não possui os elementos formais de uma carta, pois faltam o prefácio e um pós-escrito. Autores afirmam que há conceitos semelhantes entre a epístola e o evangelho, porém com algumas diferenças. Enquanto o quarto evangelho reflete sobre a revelação histórica de Cristo, a epístola mostra-nos como ela foi recebida e vivida pela comunidade e pelos cristãos. Provavelmente, ela foi enviada a um círculo de comunidades na região da Ásia Menor, perto de Éfeso, entre os anos 85 e 90, que precisavam ser advertidas do perigo de heresias instaladas por pensamentos gnósticos, especialmente quanto à questão do pecado e da fidelidade aos mandamentos. A realidade presente é de tensão e conflito.
Conforme Houtart, o contexto é de produção escravagista, que dividia a sociedade em duas classes: homens livres e escravos. Os homens livres constituíam o Estado, com direitos e deveres. Eles organizavam o processo de trabalho, dividiam o produto e o excedente produzido pela mão de obra escrava. O monopólio da religião e da política estava em suas mãos. Consideravam-se superiores, enquanto os escravos eram seus objetos, sua posse. Esse sistema era aceito e considerado normal naquela região. Além disso, Éfeso era um grande centro de comércio de escravos. A carta não nos revela a situação das pessoas pertencentes às comunidades. Apenas faz menção da realidade na qual estão, que é de luz e de trevas e que muito facilmente os faz pecar. O autor pede aos cristãos para não amar este mundo (2.15s), mas sim buscar a comunhão uns com os outros (1.6-7), a partilha (3.16-17) e o amor (4.7-21).
Na perícope indicada, o tema gira, especificamente, em torno do pecado. O autor admoesta a comunidade para não pecar (levar a sério essa luta). O pensamento gnóstico desconhece o termo pecado. Para os gnósticos, Jesus foi um homem bom, no qual o Cristo celestial viera habitar desde o seu batismo até pouco antes de sua crucificação. Deus não poderia ter se tornado homem, pois Ele é espiritual, e não poderia ter se tornado matéria. Há outra versão dessa heresia: o docetismo (de dokein, parecer), que afirmava que a encarnação foi aparente e não uma realidade concreta. Uma vez que eles não levam a sério a corporalidade, também não observam os mandamentos e nem o amor fraterno. Conforme Lúcio Schwingel (PL XIII, p. 219), para os gnósticos, “pecado era apenas uma questão ligada ao corpo (carne) e não tocava o espiritual. Pelo conhecimento o espírito era liberado do pecado. Os ‘iluminados’, portanto, viviam sem pecado. Com isso, autojustificavam-se e promoviam a sua própria glorificação”. Ele continua: “Concretamente, o pecado consiste nisto: de, em nome de Deus, viver em conformidade com o mundo e sustentar ideologicamente um sistema em que ‘homens livres’ vivem às custas de escravos”.
João dirige-se aos destinatários da carta como “meus filhinhos”, como seus filhos e filhas na fé. Ele faz uma admoestação bem clara: “Não pequeis”. Não vivam mais sob o jugo da lei, que separa as pessoas entre merecedoras do amor de Deus e as impuras. Também não vivam procurando autojustificar-se por meio do conhecimento, como se aquilo que o corpo experimenta não dissesse respeito à fé. Mas, se porventura alguém pecar, tem um advogado junto a Deus: Jesus Cristo, o justo. O que os que não creem não podem ver é a certeza de fé de que a morte de Cristo na cruz é o triunfo da glória celeste, visto e interpretado por meio de sua ressurreição. Borkmann afirma que “na entrega de seu filho, o amor salvador de Deus para com o mundo tornou-se um acontecimento, atingindo o seu clímax no serviço que Jesus realizou por seus discípulos (o lava-pés). Esse acontecimento, por sua vez, torna-se fundamento do amor dos discípulos uns para com os outros (p.132)”. O amor de Deus trouxe Cristo como propiciação pelos pecados não somente individuais, mas também coletivos, ou seja, do mundo (v. 2). Pois, embora o mundo seja criação de Deus e dele necessita vida e luz, sempre fechou os olhos para essa verdade e optou pelo engano e pela falsidade.
O conhecer a Cristo está intimamente ligado com o guardar os mandamentos. E guardar os mandamentos não se relaciona apenas a questões morais, comportamentais. Mas se deixar transformar em sua forma de crer e de ser, abandonando o próprio egoísmo e individualismo, que geram dor e morte, para viver novas relações fraternas, que geram e cuidam da vida. É mentiroso quem diz que conhece Cristo, mas não vive de maneira diferente daquela que o mundo propõe. Porém quem vive essa nova relação com Cristo e com o seu servir em amor tem sido aperfeiçoado. Permanecer em Cristo não é uma opção de comportamento moral. Antes, é consequência de uma aceitação de fé, em que o Espírito da Verdade habita e promove profundas mudanças éticas e de relações sociais.
Enquanto, nas cartas pastorais, aparece uma compreensão mais hierárquica das comunidades, com instituição de presbíteros (mais velhos), epíscopos e diáconos, no Evangelho de João e na epístola não existem esses ofícios. O Espírito é dado a toda a comunidade e, em Atos (no texto complementar), ele é dado por Deus também aos não judeus por intermédio da Palavra.
João afirma que pecado não é somente fazer ou deixar de fazer algo. É condição do ser humano que se engana se não reconhece a si mesmo como pecador. Importa conhecer a Cristo e manter comunhão com Ele. Cristo é o Filho de Deus, que se tornou carne, morreu a morte da propiciação, que reconcilia os seres humanos com Deus. Ele é o próprio salvador do mundo (4.14). Se andarmos nessa luz, obedeceremos aos mandamentos e manteremos comunhão uns com os outros. O que quer o autor é acentuar a unidade de fé e ação, a fim de fortalecer a comunidade para uma vivência ética de fé, contra as influências dos hereges.
A pós-modernidade tem levado ao chão uma boa parte dos valores e dos parâmetros vividos em nossas comunidades cristãs. A chegada maciça dos meios de comunicação e a internet têm trazido sua dose diária de doutrinação estranha ao testemunho bíblico. Percebemos que, mesmo entre as pessoas cristãs, o evangelho tem deixado de ser lido e estudado, pois há uma gama enorme de produções audiovisuais bem elaboradas que massageiam o ego e que podem ser enviadas e reenviadas ao simples toque da mão. A fé é confundida com pensamento positivo, com filosofias orientais e um espiritualismo crescente. Caminhamos para um Brasil com maioria de evangélicos em poucos anos. Então perguntamos: Como estão vivendo as pessoas? Estão mais felizes do que anos atrás? Elas encontram sentido em sua vida e em seu trabalho? Há dignidade, respeito e cuidado de uns pelos outros? E o serviço diaconal das comunidades, há um número necessário de pessoas engajadas? Como está o envolvimento comunitário nos conselhos municipais e nas organizações populares?
O amor ao dinheiro e a obediência servil às regras por ele impostas têm tornado a vida da grande maioria um fardo e sacrifício. Sacrifício da saúde, das relações familiares, do lazer, do serviço voluntário, da alegria de viver. Ao mesmo tempo, a felicidade é buscada por meio do consumo exagerado, da busca pelo prazer, da adrenalina, da embriaguez dos sentimentos e sensações. Se esse êxtase não é conseguido por meio das possibilidades reais (materiais) individuais, então se recorre ao plano espiritual. Encontramos cada vez mais pessoas “espirituais” que não se envolvem com ninguém, a não ser consigo mesmas e com o “seu” deus, buscando preencher o vazio que há dentro de si.
Nas igrejas, o pecado continua sendo situado no campo moral, comportamental, e a obediência aos mandamentos tem servido como parâmetro para apontar o bom ou mau cristão, como julgamento crítico.
Tornou-se difícil falar do Cristo que se entregou como sacrifício único para a expiação dos pecados e dá-nos uma nova vida, que não está “condenada” a viver conforme a sociedade impõe, por causa da graça e do amor de Deus que quer salvar o mundo. Aqui tudo se vende e tudo se compra. O erro se paga, o amor se conquista, o cuidado se obtém mediante pagamento. Portanto, a salvação e o perdão também devem ser negociados. Ainda continua bem atual a expressão: “Eu conheço a Cristo, Ele me salva, me cura na medida em que demonstro minha fé para Ele (não para o próximo)”. Grande parte do povo que entra nas igrejas sai delas sem conhecer quem estava a seu lado. E como vivem e se relacionam lá fora no dia a dia?
Eis a importância do anúncio: aquela ou aquele que guarda a Palavra tem sido verdadeiramente aperfeiçoado no amor de Deus. Aquela ou aquele que diz que permanece nele necessita viver de forma coerente com o testemunho de Cristo.
O que as pessoas mais necessitam neste mundo é saber-se amadas e aceitas incondicionalmente, também cuidadas e necessárias para alguém. Eis o que o dinheiro não consegue dar. Nele há outra lógica.
O amor vem de Deus e nos foi dado por Ele. Cristo mostrou-nos como viver desse amor e como deixar que nossas ações sejam guiadas por ele. O amor de Deus cria laços, importa-se, sofre, busca, cura e salva. Não importa onde estamos, se em trabalho, lazer ou em família. Somos os mesmos, as mesmas. Bom é quando vivemos assim, mas se não conseguirmos, temos um advogado que nos acolhe e nos justifica. É difícil manter nossas relações amorosas e verdadeiras quando tudo à nossa volta nos coloca outros parâmetros bem sedutores, onde os laços são tão tênues ou voláteis, que não há por que se arrepender dos erros cometidos, pedir ou dar perdão. Basta partir para outro!
Mandamentos são necessários. São balizas que nos ajudam a conduzir nossas atitudes. Não são leis apenas. Eles necessitam ser consequência do amoque nos foi dado. O amor faz-nos cumprir os mandamentos não em nosso favor, mas em favor de outra pessoa. Se somos fiéis e não traímos, é por opção e respeito a quem está ao nosso lado. Se não lesamos e partilhamos, não é porque somos bonzinhos, mas porque nosso próximo necessita tanto (ou mais) do que nós. Se procuramos não dar falso testemunho, é porque nada se constrói sobre o fundamento da mentira ou da inveja.
Importa lembrar que nossa sociedade se construiu sobre hierarquias de valores e separou as pessoas entre aquelas que mais valem e aquelas que menos valem: homens e mulheres, patrões e empregados, ricos e pobres, adultos e crianças, brancos e negros, hetero e homossexuais etc. Amar uns aos outros é considerar o amor de Deus por cada uma de suas criaturas. Eis o grande mandamento, o amor que Deus quer aperfeiçoar em nós.
Num plantão semanal, surge um homem visivelmente angustiado. Ele não era membro daquela igreja, mas veio buscar uma orientação espiritual. Tudo estava se quebrando em sua vida. De certa forma, tinha rompido relações com todas as pessoas de sua família (pai, mãe, filho, filha, ex-esposa). Estava trabalhando como vendedor com um sócio e viajava muito. Depois de uma desavença, foi deixado num posto de combustível pelo sócio, enquanto lavava suas roupas. Questionou se tudo isso estaria acontecendo a ele por estar muito distante de Deus e o que deveria fazer. Depois de muita conversa, ele confidenciou: eu não queria ouvir que preciso ir ao encontro de minha família, muito menos perdoá-la. Ainda não estou pronto para isso. Pensei que nessa igreja me diriam que bastaria eu me converter, tornar-me membro, e Deus me ajudaria.
Há um texto do psiquiatra Carlos Hecktheuer intitulado “Mães más”, que me inspirou a paráfrase abaixo:
Um dia, quando os homens e mulheres forem crescidos o suficiente para entender a lógica que motiva Deus, a fonte do amor lhes dirá:
Eu os amei o suficiente para não ter ficado calado, distante e fazer com que vocês soubessem que aquela nova maneira de viver, copiada do novo amigo ou amiga, não era o que eu queria para vocês.
Eu os amei o suficiente para fazê-los devolver tudo aquilo que tinham conseguido com sua esperteza, mas que criaria problemas entre vocês e os demais.
Eu os amei o suficiente para ter ficado em pé junto de vocês tantas horas, enquanto consertavam os estragos que a sua forma de mexer na minha criação causou a vocês.
Eu os amei o suficiente para deixá-los ver além do amor que eu sentia por vocês, o desapontamento e também as lágrimas de meus olhos por sua teimosia.
Eu os amei o suficiente para deixá-los assumir as responsabilidades de suas ações, mesmo quando as penalidades eram tão duras, que me partiam o coração.
Mais do que tudo, eu os amei o suficiente para dar-lhes leis e limites, quando eu sabia que podiam me odiar por isso. Essas eram as mais difíceis batalhas de todas.
Eu hoje estou contente, pois venci… Porque, afinal, vocês venceram também!
E em qualquer dia, quando meus netos, netas, bisnetos, bisnetas, forem crescidos o suficiente para entender a lógica que motiva seus pais e mães, quando eles perguntarem se Deus era mau, vocês responderão:
Não! Nosso Deus é puro amor. Amor exigente. Amor que gera, que cuida, que salva! Amor que ensina a amar.
Oração:
L: Ó Deus, fonte do amor eterno! Suplicamos-te pelo coração que pulsa em nossos corpos e pela liberdade de sentir o teu amor por nós. Nós te pedimos:
C: Aperfeiçoa-nos no teu amor.
L: Perdoa-nos quando nos deixamos dominar por princípios individualistas e pelos valores alheios ao teu evangelho. Nós te pedimos:
C: Aperfeiçoa-nos no teu amor.
L: Que possamos crescer como seres humanos num todo, refletindo sinais da tua nova criação. Nós te pedimos:
C: Aperfeiçoa-nos no teu amor
L: Que o agir orientados por teus mandamentos seja a nossa maneira de cuidarmos uns dos outros neste mundo. Nós te pedimos:
C: Aperfeiçoa-nos no teu amor.
L: Torna-nos pessoas aptas para servir uns aos outros, tirando o teu evangelho das quatro paredes. Faze de nós tuas testemunhas. Nós te pedimos:
C: Aperfeiçoa-nos no teu amor.
L: Ajuda-nos a anunciar a boa-nova, os sinais do teu reino de amor, justiça e de paz verdadeira, com ações de misericórdia, de cuidado e de solidariedade. Nós te pedimos:
C: Aperfeiçoa-nos no teu amor.
Kyrie:
A Palavra nos diz: Digam a verdade a seu próximo. Porém nós mentimos diariamente, alteramos a verdade, escondemo-nos das situações que nos rodeiam ou nos deixamos vencer pela impunidade. Perdoa-nos, ó Deus:
C: Kyrie.
A Palavra nos diz: Não roubem. Nós nos deixamos levar pela corrupção, desde as mais pequenas até as que causam grandes privações. Enriquecemos nos¬sas casas, consumindo a criação e tirando a saúde de irmãos e irmãs. Perdoa-nos, ó Deus:
C: Kyrie…
A Palavra nos diz: Sigam o caminho do Senhor a exemplo de Cristo. Porém nós nos deixamos levar pelos modelos que nos são ofertados diariamente, aqueles cujos deuses são outros. Perdoa-nos, ó Deus:
C: Kyrie…
LOHSE, Eduard. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1974.
HOUTART, F. Religião e modos de produção pré-capitalistas. São Paulo, 1982.
BORNKAMM, G. Bíblia Novo Testamento. São Paulo: Ed. Paulinas, 1981.
WIKIPEDIA. 1 Epístola de João. Autoria, Data, Primeiros leitores, Objetivo, Esboço.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).