Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: Jeremias 31.31-34
Leituras: João 8.31-36 e Romanos 3.19-28
Autora: Werner Fuchs
Data Litúrgica: Dia da Reforma
Data da Pregação: 31/10/2012
Quando nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo diz:
Arrependei-vos (Mt 4.17), ele queria
que a vida inteira dos crentes fosse arrependimento.
Martim Lutero – 1ª das 95 Teses
Os textos trazem temas centrais da Reforma protestante, verdades que nos são caras: nova aliança entre Deus e seu povo, Deus justo e justificador, justificação por graça mediante a fé em Jesus, escravização pelo pecado, libertação pela verdade, condição de filho diferente de escravo. Entretanto, o nexo entre os textos reside na novidade dessa aliança, no recomeço que transcende tudo o que havia antes, a experiência dos patriarcas, do êxodo e do Sinai. É desnecessário ensiná-la, pois já estará gravada na mente e no coração em decorrência da experiência do perdão (Jeremias). Ela é libertadora e emancipa (João), é superior à lei (Romanos). Assim, será eterna, definitiva (cf. Jr 32.40).
Ademais, não se pode ignorar o aspecto conflitante comum: os antigos anularam a aliança pela infidelidade e iniquidade, mas Jeremias anuncia esperança contra todas as consequências políticas e sociais negativas dessa infidelidade. Em João 8, os judeus que haviam crido em Jesus (!) julgam-no (v. 15) e querem matá-lo (v. 37). A chave para a frase “Minha palavra não está em vocês” encontra-se no ponto culminante do trecho, a saber, no trocadilho entre logia e logos do v. 43: não entendem “as palavras” por não aceitar a “palavra”, i. e., a interpelação de fora, o verbo externo, o questionamento por Jesus, que fala a verdade e é a verdade (cf. Jo 14.6). Em Romanos 3, a polêmica é entre o orgulho pela realização de obras da lei e o reconhecimento de que todos estão privados da glória de Deus por ser pecadores, reconhecimento esse que leva à fé e às obras da fé.
O contexto mostra Jeremias como profeta combativo e combatido. Jeremias 31.31ss pode ser considerado o ponto culminante dos capítulos 30s, chamados de “livreto da consolação”. Esses capítulos fazem parte do bloco de Jeremias 26-45, que traz relatos de acontecimentos dramáticos na vida pessoal de Jeremias, com uma palavra final de consolo a Baruque (cap. 45). O livreto da consolação é precedido dos capítulos 26-29 (discurso no templo e conflito com falsos profetas) e seguido dos capítulos 32s (aquisição do campo em Anatote como ato simbólico de restauração em meio à derrocada e palavras de salvação). Os capítulos 34-38 trazem conflitos com o último rei de Judá: Sedecias. A situação histórica é que já houve um grupo de Judá deportado em 597 a. C., aos quais Jeremias escreve a carta de incentivo do capítulo 29. Em Jeremias 39, Jerusalém sucumbe ao assédio babilônico sob Nabucodonosor em 587 a. C., e Jeremias é liberto da prisão pelos babilônios (v. 11ss).
Atualmente, Jeremias e seu livro de sofrimento, esperança e profecia sobre as nações estão mais presentes na consciência judaica do que na cristã (Ivo Meyer, in: ZENGER, E. Introdução ao AT, p. 418). Isso é compreensível não apenas pela história judaica de diáspora, mas evidentemente porque o que Jeremias anuncia é uma nova aliança com “Israel e Judá” (v. 31), com a “casa de Israel” (v. 33).
Um dos poucos temas de Jeremias acolhidos no Novo Testamento é precisamente o novo berit, a kainé diatheke [latim: testamentum], a nova aliança, primordialmente nas passagens referentes à Santa Ceia (Mc 14.24; 1Co 11.25; 2Co 3.6). Jeremias 31.31-34 é citado por completo em Hebreus 8.8-12 e parcialmente em Romanos 11.27. O v. 33 é citado em Hebreus 10.16, especificando a autêntica novidade da aliança prometida para o futuro: a lei do Senhor já não estará escrita em tábuas de pedra (cf. Êx 24.12; 31.18; 34.1; Dt 4.13), mas em mentes e corações humanos (cf. 2Co 3.3). Contudo, no Novo Testamento prevalece uma interpretação não etnocêntrica de quem seja o “povo de Deus”. Talvez essa leitura já se anuncie em Jeremias 31.34: a frase “Todos me conhecerão, tanto as pessoas mais importantes como as mais humildes” (Nova Tradução na Linguagem de Hoje/NTLH) refere-se, sem dúvida, ao povo de Israel. Mas a menção das diferenças sociais denota a visão crítica do profeta, indicando um aspecto importante do Deus a ser conhecido, bem como um conceito de povo que traz implícita a abertura universal.
Em decorrência, cabe também questionar se são adequados, para a tradução de berit, os termos “aliança” (Almeida Revista e Atualizada/ARA, NTLH), “acordo” (Voigt) ou “pacto” (Homburg, apud Voigt). Já a antiga aliança foi um ato unilateral de outorga por Deus, não um convênio ou contrato de consenso entre parceiros iguais ou até mesmo desiguais. Talvez por isso o Novo Testamento se sirva do termo diatheke, que não significa “aliança” ou “acordo”, mas “fundação, instauração, determinação, testamento”. A diferença reside em que no Novo Testamento o referencial da diatheke não é mais a Torá, mas o “sangue da (nova) aliança”, o sangue da expiação para o perdão de muitos (Mc 14.24). Ou seja, no Novo Testamento, “com auxílio de alguns conceitos retirados do Antigo Testamento… se afirma o contrário de seu sentido original!… Conceitos correntes e importantes no contexto do Antigo Testamento… são preenchidos com conteúdo completamente novo, que rompe e deve romper com pleno propósito os ‘odres velhos’. Supera-se a exclusividade da aliança de Deus com Israel… e surge a inclusividade dos muitos…” (Gunneweg, p. 109). Também para Paulo, a nova aliança supera a promessa de Jeremias 31, “outorgando” algo completamente novo, na linha da promessa dada a Abraão, que foi muito anterior à Torá (Gl 3.12-17; cf. Gunneweg, p. 111s). A comunidade da nova diatheke não é um art. 7º; Gunneweg, p. 112s).
A escopo de Jeremias 31.31ss é o anúncio consolador da nova aliança em meio à desolação geral. No entanto, dada a especificidade do Dia da Reforma, o foco mais apropriado da pregação talvez seja o tema do v. 34: “Conhecer” (intimamente) a Deus. Como? Pela escrita nos corações (v. 33b). Pela experiência do perdão que ele concede ao remover a causa do rompimento unilateral (pela parte oposta) da aliança anterior, a saber, as “iniquidades”. (A LXX traduz para adikias, “injustiças”. O termo “maldades” da NTLH é inexpressivo.) Ao apagar os pecados de sua memória, Deus faz com que a nova aliança seja de reconciliação (cf. Is 43.25; 44.22; Jr 50.20; Ez 36.26-9: novo coração, novo espírito, “meu Espírito” nos corações = nova existência; Zc 13.1s). O profeta já havia sido lembrado de que é conhecido por Deus desde antes de nascer (Jr 1.5; cf. 1Co 13.12). Ou seja, o “conhecer” por parte humana não é fruto de “ensino”, mas de uma profunda experiência existencial e relacional. Verdades e valores não se ensinam, mas se cultivam.
É fácil cair no superficialismo em relação ao pecado e ao perdão. Exemplo: No domingo, a avó crente que está de cama pergunta ao neto que voltou do culto: “Sobre o que o pastor falou hoje?” Como sempre, o rapaz não prestou atenção, mas diz: “Sobre o pecado”. A avó insiste: “Sim, mas o que foi que ele disse?” – “Que ele é contra…” A avó insiste: “Ele não falou de Jesus?” –“Ah sim, falou que Jesus é o Salvador…”.
Existe uma dificuldade humana em reconhecer e confessar culpa. Políticos e governantes jamais admitem erros em público. Pelo contrário, negam tudo, ainda que comprovado. O “animal político” cuida da sobrevivência como tal. Entretanto, no contexto eclesial, deveria ser diferente. Igreja é o espaço em que a verdade liberta. É a reunião de pecadores perdoados, acolhedores de outros pecadores, apoiadores uns dos outros. Infelizmente, porém, nela também não acontece livremente a confissão. Nem sequer se fala de arrependimento. A súplica por perdão a Deus e ao próximo acontece somente em orações gerais, coletivas, inespecíficas. Igualmente genérico e inexpressivo é o anúncio do perdão de Deus, deixando de ser experiência real de libertação. Pedidos públicos de perdão pelas igrejas ocorrem apenas excepcionalmente quando há escândalos por demais vergonhosos (p. ex., o papa diante dos casos de pedofilia).
A primeira das 95 Teses de Lutero fala do arrependimento diário. As demais são explicações da primeira. Há décadas, a IECLB não publica um reconhecimento público de nossa omissão em termos de responsabilidade sociopolítica e ambiental, nem de nossas mazelas internas. Mas, ao deixar de lado a primeira tese, todo o conjunto das 95 Teses torna-se letra morta, e cabe duvidar da sinceridade confessional luterana.
No tempo de Lutero, predominavam o sentimento de culpa e a ignorância; daí o comércio das indulgências e a manutenção delas para facilitar a exploração do povo. Lutero foi contundente: Arrependimento é atitude fundamental de cada dia, e perdão não pode ser comprado com dinheiro. Hoje, no entanto, somos uma geração sem sentimento de culpa. Raramente, e a duras penas, aprendemos que atos têm consequências (p. ex., na relação entre pais e filhos ou na atual crise ambiental). Cada um tem o direito de fazer e deixar de fazer o que lhe agrada ou convém, ou usufruir o que o dinheiro puder comprar. Conquistamos o direito de ser coniventes com nossas próprias falhas e incoerências. Talvez isso se deva a uma psicologia que desconstrói a culpa, ao liberalismo, à pós-modernidade etc. Independentemente das explicações, o fato é que nos aproximamos do problema do pecado e do perdão a partir do lado oposto de Lutero. Sem dúvida, porém, podemos convergir com ele em uma ruptura crítica com o estado vigente, que ele expressou nas 95 Teses. É marcante que os teólogos mais destacados do século passado (Paul Tillich, Karl Barth, Dietrich Bonhoeffer, Jürgen Moltmann e outros) foram relevantes porque em determinado momento de suas biografias realizaram uma ruptura com a teologia liberal, ruptura essa acompanhada de profunda crítica ao pensamento da época, de autocrítica e de crítica à realidade da guerra, da degradação social etc.
Humanamente, é mais fácil reconhecer e confessar o pecado uns aos outros quando se sabe que o outro lado está disposto a perdoar: “O pecado é reconhecido à luz de Deus, mas igualmente é movido na direção dele. O primeiro passo para isso é a confissão que irrompe do pecador, justamente confiante no Deus que perdoa (cf. Sl 32.3-5). A admissão do pecado já se situa na Sagrada Escritura no horizonte da fé no Deus, junto do qual há perdão (cf. Sl 130.4), sim, que é um ‘Deus dos perdões’ (cf. Ne 9.17). Ao mesmo tempo, ele é aquele que já abre o caminho para o arrependimento e convida para andá-lo” (FABER, Eva-Maria. Doutrina Católica dos Sacramentos. S. Paulo: Loyola, 2008. p. 175).
Entretanto, anunciar e apropriar-se da reconciliação com Deus, o próximo e a natureza maltratada, sem que tenha havido arrependimento (“meia-volta”), é uma atitude que se situa em algum ponto entre a falta de lógica e a desonestidade teológica, mas que infelizmente é recorrente em textos eclesiásticos e em liturgias atuais. A experiência existencial do perdão liberta não somente da culpa ou da ausência de sentimento de culpa, mas também do esforço de “conhecer a Deus” e de “ensiná-lo”, tentando enquadrá-lo racionalmente, algo impossível: Não é lógico um Deus que, ao mesmo tempo, defende o injustiçado e está disposto a perdoar o injusto.
Os povos tinham suas divindades domésticas, deusas da fertilidade, deuses para abençoar os negócios e justificativas religiosas para o poder opressor. Desde os tempos dos faraós, toda vez que a religião, também a cristã, se associou ao poder econômico e político, ela tentou aprisionar “Deus” em seu discurso e sua prática religiosa, inclusive beneficente. Mas graças a Deus, o Deus de Israel e de Jesus não se deixa aprisionar. Javé, “socorro bem presente nas tribulações” (Sl 46.1), age nas cruzes e encruzilhadas da vida, defendendo a justiça e posicionando-se ao lado do pobre e necessitado. Foi esse caminho que o moço rico não conseguiu tomar (Mc 10.21s). O povo de Israel aprendeu tropeçando e recomeçando que seu Deus Javé não é como as demais divindades, mas que age na história em prol dos que sofrem. Conhecer a Deus é conhecê-lo como Deus da história, que age em e por meio dos fatos históricos em defesa dos atribulados.
Apesar de controles e rearranjos democráticos, as sociedades humanas trazem em seu bojo injustiças, desenvolvem assimetrias de poder e institucionalizam a violência. É evidente que a “nova aliança” tinha de ser outorgada unilateralmente pelo Deus que não esmaga a cana quebrada (Is 42.3), porque não existe ninguém isento de iniquidades. Todos são reprovados no vestibular. Deus precisa criar um acesso novo, não dependente de esforço, ensino, disciplina, mas da aceitação por fé. É esse um aspecto em Jeremias que aponta e “impulsiona” (Lutero) para a obra de Cristo.
Manoel, descendente de escravos, é um dos líderes quilombolas que lutam para recuperar sua terra ancestral, ocupada por colonos de origem alemã (talvez alguns luteranos). Após vários anos, os quilombolas ganharam na justiça o direito à terra, mas não podem ocupá-la porque não têm dinheiro para indenizar as benfeitorias dos brancos. Há oito anos, Manoel perdeu um olho e não pôde continuar trabalhando na construção civil. Mas havia conseguido comprar uma terra de posse. Ali, a agricultura mecanizada havia acabado com todas as nascentes. “De joelho no chão” todas as manhãs, ele pediu a Deus por uma fonte de água para poder sobreviver na terra. Na área em que deixou crescer capoeira como mata ciliar, em breve apareceu uma nascente. Hoje tem água boa e cede parte da terra para outros plantarem. Vontade de Deus inscrita no coração.
Jeremias vive em conflito com religiosos, de um lado, e governantes, do outro. Onde encontramos pessoas assim hoje?
A dramaticidade da biografia de Jeremias e sua esperança audaciosa podem ser comparadas à espiritualidade inabalável de Lutero: durante toda a vida, ele esteve diante da possibilidade real da chegada do exército de Carlos V, em luta contra os mouros na Península Ibérica, para acabar com a Reforma protestante.
Penitência:
“Não, a mão do Senhor não é curta demais para salvar, seu ouvido não é mouco demais para ouvir! Mas são as vossas iniquidades que levantaram uma separação entre vós e vosso Deus; são as vossas faltas que mantiveram seu rosto escondido longe de vós, longe demais para que ele vos ouça” (Is 59.1s – Tradução Ecumênica da Bíblia/TEB).
Perdão:
“Nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1).
Intercessão:
– Pelas poucas pessoas combativas e combatidas que vivem um testemunho profético diante de chefes da religião e donos do poder.
– Por nós, para que não caiamos no reducionismo de transformar o Deus vivo em divindade doméstica abençoadora de relacionamentos e negócios.
– Pelo país, para que as lutas por transformação social e por políticas públicas justas sejam eficazes no combate à miséria e não nos façam esquecer que o sistema vigente produz um novo bilionário por mês (de janeiro de 2010 a janeiro de 2011, os bilionários no Brasil passaram de 18 para 30 – enquanto 16,2 milhões de brasileiros/as vivem com menos de R$ 70,00 por mês).
– Pelas pessoas aflitas, vítimas do descaso de autoridades e da indiferença do semelhante, para que não se conformem com a ideologia que transforma vítimas em culpados de sua própria desgraça.
– Por todos os que se professam cristãos, para que saibam contrapor-se serenamente ao espírito da época, tendo “em Cristo”, fora de si, seu ponto de equilíbrio.
GUNNEWEG, Antonius H. J. Teologia Bíblica do Antigo Testamento. São Paulo: Teológica/Loyola, 2005.
VOIGT, Emílio. Auxílio Homilético para o 5º Domingo da Quaresma, in: Proclamar Libertação XXII. São Leopoldo: Sinodal, 1997. p. 85-92.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).