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Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: Lucas 19.1-10
Leituras: Isaías 1.10-18 e 2 Tessalonicenses 1.1-4, 11-12
Autora: Ana Isa dos Reis
Data Litúrgica: 24º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 03/11/2013

1. Introdução

O presente conjunto de textos está dentro do chamado Tempo Comum, que se estende do fi m do ciclo pascal (que encerra no Domingo de Pentecostes) até o início do Advento, somando 28 a 30 semanas. Esse tempo após Pentecostes, diz James White, “sinaliza o longo ínterim da igreja da nova aliança até a vinda de Cristo em glória”. Os textos bíblicos lembram a continuação das obras salvíficas de Deus e chamam as pessoas a ser seguidoras de Jesus Cristo por meio de suas palavras e ações.

 

2. Exegese

2.1 – O autor

A autoria do Evangelho de Lucas e do livro de Atos dos Apóstolos é atribuída, pela tradição da igreja, ao médico chamado Lucas, companheiro de Paulo em suas viagens missionárias (Fm 24; Cl 4.14; 2Tm 4.11). Lucas não é uma testemunha ocular dos acontecimentos que narra, mas um cristão grego culto que dá seu testemunho de fé a uma comunidade cristã não judaica. Seu evangelho está baseado em Marcos e na fonte Q, porém apresenta material próprio, sendo que quase a metade do evangelho apresenta material exclusivo dele, como o texto em questão. O Evangelho de Lucas foi escrito por volta dos anos 80.

2.2 – Estrutura do Evangelho de Lucas

Como mostra a estrutura abaixo, a perícope está inserida na terceira parte do evangelho, que narra o deslocamento de Jesus da Galileia para Jerusalém.

I – Narrativas iniciais e preparação: 1.1-4.13

II – A atuação de Jesus na Galileia: 4.14-9.50

III – Relato de viagem: 9.51-19.27

– envio dos setenta e ditos contra as cidades: 9.51-10.24

– relato da atuação em viagens: ditos, curas, parábolas, ações diversas: 10.25-18.14

– a caminho de Jerusalém: 18.15-19.27

IV – A atuação de Jesus em Jerusalém: 19.28-21.38

V – Paixão, morte, ressurreição e ascensão de Jesus: 22.1-24.53

2.3 – Observações exegéticas sobre perícope

V. 1 – Jesus passou por Jericó para ir a Jerusalém. Nos tempos de Herodes Magno, Jericó era usada como sua capital de inverno. A arquitetura da cidade era romana, ornamentada de árvores, incluindo sicômoros. Jericó era uma próspera cidade comercial, dispondo, inclusive, de um centro de coleta de impostos.

V. 2 – O nome Zaqueu pode ser visto como uma forma abreviada de Zacarias, que significa “Deus lembra”. Ele era o responsável pela cobrança de impostos. Certamente, como chefe, ele tinha subordinados, que cobravam impostos nos diferentes lugares. Em sua posição, era fácil enriquecer a custa dos outros. Ele deveria entregar ao poder romano uma determinada soma de impostos. Mas arrecadava muito além do contratado, enriquecendo assim rapidamente. Zaqueu, como publicano, era desprezado pelo povo, odiado por sua fama, marginalizado, sozinho.

V. 3 e 4 – Não é dito o motivo que levou Zaqueu a querer ver Jesus. Certamente também já ouvira falar de Jesus e de sua amizade com pecadores. Pode ser que seus motivos foram movidos pela curiosidade. Zaqueu era rico, dotado de autoridade, mas vivia longe de Deus, descontente, quem sabe até com ele mesmo. Por ser de pequena estatura e uma multidão acompanhar Jesus, dificultando sua visão, Zaqueu sobe em um sicômoro, uma árvore frutífera que produz um fruto semelhante ao figo. O sicômoro produz diversas safras ao ano, mas, como seu fruto era de qualidade inferior, era consumido geralmente pelas classes mais pobres da Palestina. Os galhos dessa árvore são bem grossos e começam em um nível bem próximo do chão, o que facilitou subi-la. Zaqueu arriscou ser considerado um tolo ao subir naquele sicômoro.

V. 5 – Jesus vê Zaqueu e chama-o pelo nome. É provável que isso tenha desconcertado Zaqueu e feito estremecer. Jesus convida-se para fi car em sua casa. Desafia Zaqueu a abrir as portas de sua casa, local em que ninguém queria estar. Jesus vai ao encontro de Zaqueu.

V. 6 – Zaqueu responde à ação primeira de Jesus. Desce rapidamente e hospeda Jesus em sua casa com alegria. Alguém o havia visto e desejava ter comunhão com ele. Zaqueu não podia perder a chance de sua vida.

V. 7 – Simultaneamente, iniciam os murmúrios. Como podia Jesus querer ficar na casa de um homem desses? Será que não conhece sua fama? Não sabe quem ele é? Muitos, certamente, achavam-se no direito de hospedar Jesus. Afinal, tinham uma conduta irrepreensível. E como pode Jesus ter quebrado essa expectativa?

V. 8 – Ao sentir-se acolhido por Jesus, Zaqueu tem seus olhos “descascados”. Podia, agora, enxergar sua vida, suas ações injustas, sua péssima conduta.
Dispõe-se a distribuir seus bens àqueles que estão à margem. E quer restituir de forma quadruplicada a quem tiver defraudado. Defraudar significa exorbitar, cobrar uma taxa exorbitante à base de evidências falsas. A restituição quadruplicada era uma medida requerida dos ladrões, de acordo com as leis judaicas (cf. Êx 22.1). Ordinariamente, a lei judaica exigia a mera restituição, além de um quinto do valor do objeto roubado (Nm 5.7).

V. 9 – Jesus reconhece a sinceridade de Zaqueu. Estende-lhe seu perdão. Embora fosse pecador notório, Zaqueu ainda era uma pessoa especial, um filho de Abraão. Jesus enfatiza a natureza especial do ser humano.

V. 10 – Jesus lembra sua missão: buscar e salvar a pessoa perdida. A ideia de Jesus sobre sua própria missão é a de que Ele é o Salvador. Ele vai ao encontro e convida a pessoa a deixar-se envolver por sua graça, seu amor, seu perdão.

 

3. Meditação

É Jesus quem dá o primeiro passo. Ele é quem vem ao nosso encontro de forma espontânea e surpreendente. É Ele quem olha para nós e oferece-se para ir conosco, ficar em nossa casa. Por meio de sua palavra, ainda hoje Jesus está a caminho por este mundo. Precisamos estar atentos às passagens de Jesus.

Zaqueu ouvira falar que Jesus passaria por Jericó. Ele era rico, mas não tinha ninguém; estava sozinho, isolado; era odiado. O dinheiro não é tudo. Ele pode comprar uma porção de coisas, mas não garante felicidade, nem cumplicidade, nem amizade, nem saúde, nem satisfação própria. Era preciso algo de verdade, perene, que fizesse a vida pulsar e valer a pena. A oportunidade estava aí. E Zaqueu não a deixou passar. Teríamos aproveitado a oportunidade? Teríamos nos desinstalado? Teríamos sido motivo até de chacota porque não queríamos perder a chance de ver Jesus?

Jesus não passa ao largo. Ele tem olhos e vê verdadeiramente. A iniciativa é de Jesus; não pergunta por nossa disposição ou preparação para recebê-lo. Jesus “tem que ficar em nossa casa hoje”. Qual nossa reação? Alguns fogem, outros estão ocupados demais, outros preocupados demais com o supérfluo, outros estão desanimados demais, cegos demais, outros são exigentes demais, querem um Jesus de seu jeito. Outros, no entanto, assim como Zaqueu, descem depressa e recebem Jesus com alegria, mesmo que tenham a “casa da sua vida” bagunçada. Jesus quer entrar hoje em nossa casa. Sejamos quem formos, estejamos como estivermos, Ele se convida para ficar conosco. Jesus ama todos, restitui-nos nosso valor, reconcilia-nos com Deus. Ele quer encontrar-se com as pessoas em situação de vulnerabilidade: pobres, homens e mulheres, crianças, jovens e idosos, doentes, injustiçados, desempregados, desenganados. Mas também quer encontrar-se com os que praticam injustiça, com os desonestos, com os que pensam só em si mesmos, com os que só reclamam, com aqueles que não conseguem encontrar sentido na vida, com as pessoas que participam ativamente na igreja e com aquelas que nem igreja têm. Enfim, Jesus quer chegar a todo o povo, a todos nós. Também aos Zaqueus.

Algumas vezes, essa postura de amor, misericórdia (e justiça) de Jesus nos incomoda. Por vezes, tornamo-nos como aqueles “murmuradores”. Apoderamo-nos de Jesus, colocamo-nos como modelo para os outros e não aceitamos que Jesus acolha nos mesmos braços que nós os Zaqueus da vida. Também aos murmuradores Jesus quer chegar, quer abrir-lhes os olhos e ensinar que, assim como Ele, precisam ir ao encontro dos Zaqueus que estão por aí. Ao invés de nos colocarmos no pedestal, precisamos fazer caminho, ir ao encontro, levar a palavra de Jesus aos que estão pelo caminho, aos Zaqueus de hoje.

É Jesus quem dá o passo em nossa direção. A ação primeira é dele. E qual nossa resposta? Ao hospedar-se na casa de Zaqueu, Jesus rompe o seu isolamento. Resgata Zaqueu. E Zaqueu deixa-se resgatar. Em gratidão e amor, porque é amado primeiro, porque é recordado, porque é visto, porque é procurado, Zaqueu experimenta uma transformação. Ele não só reconhece seu passado, como resolve encará-lo e fazer justiça. Ele chega à conclusão de que sua grande propriedade é fruto de roubo. Quer consertar essa situação. Dispõe-se a vivenciar o perdão e a exercitar a justiça, restituindo com o quádruplo do que havia defraudado. Por meio da ação primeira de Jesus, Zaqueu consegue enxergar a outra pessoa como sendo seu próximo. Ele rompe com o incurvatus in se, como dizia Lutero. Consegue tirar os olhos de seu próprio umbigo e alcançar os olhos dos outros. Entende que o “ser humano não é ilha, mas partilha” (L. Bell). Compreende que é possível viver vida nova e transformada, que a vida tem sentido, que é possível ser feliz.

Assim como fez com Zaqueu, Jesus ainda faz hoje. Importa aceitarmos seu convite, seu amor. Importa nos deixarmos resgatar. Ao experimentarmos verdadeiramente a presença do Senhor em nossa vida, também experimentaremos transformação, rompimento com o incurvatus in se, rompimento com o capital que brutaliza e marginaliza. Porque nos sentimos amados, recordados e somos vistos, porque Jesus vem a nós, é que podemos responder alegremente a seu chamado, e ali haverá sinais do reino de Deus.

Como igreja, fomos encontrados por Cristo, reconciliados, amados, recordados, chamados pelo nome, resgatados. Essa ação amorosa de Cristo encontra eco em nossa postura? Conseguimos enxergar o Zaqueu transformado – a partir da ação primeira de Cristo – em nossas igrejas? Como igreja, temos a tarefa de ser Cristo para o outro. Precisamos ser igreja a caminho, igreja que vê, que vai ao encontro, que convida a fazer parte e que não fica murmurando. Teremos sido um “pedaço” desse Jesus que vai ao encontro dos Zaqueus da vida?

Ao termos comunhão com Jesus, nossa comunhão com o próximo ganha um novo sentido. O encontro com Jesus necessariamente me transforma. Ser cristão verdadeiramente me exige um rompimento do incurvatus in se. Leva-me a olhar para os olhos de Cristo, porque Ele está olhando para mim primeiro, e leva-me a olhar nos olhos de meu irmão e de minha irmã.

 

4. Subsídios litúrgicos

Recepção: uma equipe pode estar à porta, recebendo as pessoas que chegam para a celebração.

Confissão de pecados:

(Um momento de silêncio para a confissão individual, e depois o liturgo ou liturgia dirige a confissão comunitária):

Bondoso Deus, confessamos que somos pessoas pecadoras e que carecemos de teu perdão. A teu convite nem sempre respondemos com alegria. Perdoa quando não queremos te receber em nossa casa. Tua presença quer transformar-nos. Perdoa quando não nos deixamos transformar. Tu abres nossos olhos para nos enxergarmos como somos. Perdoa quando não queremos ter nossos olhos abertos. Teu amor ensina-nos a romper com nosso egoísmo. Perdoa quando não nos dispomos a romper o círculo em torno de nós mesmos e continuamos olhando apenas para nosso próprio umbigo. Tu vens a todas as pessoas. Perdoa nosso murmúrio e quando não queremos que tu sejas para todos. Tu nos conheces, Senhor, e sabes tudo o que pesa em nós. Livra-nos de nossos pecados e guia nossa vida. Por Jesus Cristo, o Salvador. Amém.

Anúncio da graça:

Antes de tudo e de todos está o amor de Deus. Em Jesus Cristo, Deus vem ao nosso encontro, nos reconcilia, ouve nossa confissão sincera, perdoa nossos pecados e nos chama a andar em vida nova e transformada. Anuncio o perdão dos pecados em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amém.

Oração do dia:

Misericordioso Deus, agradecemos porque vens ao nosso encontro em Jesus Cristo. Obrigado porque tu nos amas, te recordas de nós e nos vês. Ajuda-nos a responder à ação primeira que parte de ti, em Jesus. Desejamos ouvir teu convite e te receber em nossa casa. Transforma a nossa vida! Que a história de Zaqueu nos lembre de que tu vens a nós e nos resgatas e que, em gratidão a ti, podemos viver vida nova. Por Jesus Cristo, nosso Salvador, que vive e reina contigo e com o Espírito Santo hoje e sempre. Amém.

Sugestão: A história de Zaqueu é bastante conhecida. A mesma poderia ser encenada pelas crianças do Culto Infantil ou por um grupo da comunidade. A música “Como Zaqueu” (de Regis Danese) – que ainda faz sucesso – poderia fazer parte da celebração.

 

Bibliografia

BAESKE, Albérico. Auxílio homilético sobre Lucas 19.1-10. In: Proclamar Libertação I e II. São Leopoldo: Sinodal, 1983.
BRUNKEN, Werner. Auxílio homilético sobre Lucas 19.1-10. In: Proclamar Libertação. Volume 14. São Leopoldo: Sinodal, 1988.
CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. São Paulo: Milenium, 1986.
EST/Departamento Bíblico. Roteiro para a Leitura da Bíblia. 2. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1996. p. 92-93.

 

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Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).