Proclamar Libertação – Volume 40
Prédica: Lucas 12.49-56
Leituras: Jeremias 23.23-29 e Hebreus 11.29-12.2
Autoria: Renato Küntzer
Data Litúrgica: 13º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 14/08/2016
Jeremias 23.23-29 apresenta um oráculo de Deus no qual expressa claramente uma palavra de condenação, de confronto e conflito em relação aos falsos profetas, gente que extravia “as ovelhas do rebanho” (Jr 23.1). O texto expressa a vivência de Jeremias, que se confrontou a vida inteira com profetas profissionais que procuravam agradar a todos, movidos por seus próprios interesses. Por isso profetizam mentiras e fantasias de sua imaginação. Nenhum deles tem serventia para Deus. A tarefa do profeta, segundo Jeremias, é anunciar a palavra de Deus, que necessita sacudir e desinstalar o povo e levá-lo à prática do direito e da justiça. É tarefa do profeta orientar a vida do povo em direção ao projeto de Deus.
Hebreus 11.29-12.2 confronta uma comunidade temerosa por seu testemunho. O autor recorre às raízes do Antigo Testamento, recuperando o testemunho e a fé dos antigos, essa “grande nuvem de testemunhas”, modelo para estimular à perseverança e à firmeza na fé. E, por último, faz referência ao modelo maior que é o próprio Jesus. A sua vida pública, a pregação e a firmeza na defesa da causa de Deus e, consequentemente, a sua morte e ressurreição por essa causa revelaram-no como o Deus vivo.
A perícope é antecedida por uma série de textos nos quais Jesus fala, alternadamente, com os discípulos ou com o povo. A nossa perícope é uma fala de Jesus direcionada, na primeira parte (v. 49-53), aos discípulos. Faz referência específica à sua missão. A perícope tem por objetivo dar atenção ao sofrimento futuro de Jesus. O gosto pela linguagem figurada e enigmática aponta para uma camada de tradição antiga.
O texto desdobra-se em três declarações ou atividades, entre as quais se estabelece uma relação de continuidade. Os dois primeiros versículos (v. 49-50) são bem próprios do ministério de Jesus. Estão ligados à sua vida e à pregação pública do reino de Deus. Envolvem vida e pregação. Diante disso, Jesus expressa algo bem humano e pessoal: a sua aflição em relação à perspectiva futura (como eu gostaria que ele já estivesse aceso). O que Jesus esperava no futuro deve ter como ponto de partida a sua convicção de que sua missão significava o prelúdio para a chegada do tempo escatológico da tribulação. Jesus está debruçado sobre a consequência de sua missão e dos seus sofrimentos.
– Eu vim para pôr fogo na terra; como eu gostaria que ele já estivesse aceso;
– Tenho de receber um batismo; como estou aflito até que isso aconteça.
A expressão “vim pôr fogo na terra” tem uma relação direta com o batismo que ele tem de receber. Nesse contexto, o batismo de Jesus é, claramente, uma alusão à sua cruz, um evento que domina todos os momentos da sua missão. Expressa a impressão pessoal de Jesus de como vai impactar o seu ministério. Esse batismo só ele vai receber. Só ele, Jesus, vai vivenciar tal experiência. É uma experiência e uma situação aflitiva para Jesus, que ele gostaria que já estivesse concluída. Está ligado à pregação e suas consequências. Tem a ver com o caminho da cruz, diferentemente do caminho da glória, que os discípulos desejavam. Há também uma falta de sintonia entre os discípulos e Jesus. Jesus vê o resultado do seu ministério com outros olhos do que seus discípulos. É o que ele expressa no momento seguinte.
“Vocês pensam que eu vim trazer a paz?”
Jesus faz uso de um paralelismo antitético para expressar essa falta de sintonia com os seus discípulos. O uso do paralelismo antitético assume uma grande importância nas palavras de Jesus. Caracteriza o ensino de Jesus nos evangelhos e talvez esteja próximo das palavras originais de Jesus. O paralelismo apresenta-se da seguinte forma:
Vocês pensam que eu vim trazer paz ao mundo?
Não vim trazer paz, mas divisão.
As duas linhas apresentam conteúdo equivalente, acrescido de uma nova informação: “mas divisão”.
Os versículos seguintes (v. 52-53) expressam as divisões que ocorrerão. Esse material também se encontra em Mateus 10.34-36. Não se trata somente de uma projeção para o futuro, mas retrata uma experiência vivida, num primeiro momento quando do atendimento ao chamado para o seguimento feito pelo próprio Jesus e depois na opção por participar da vida da comunidade. A experiência de divisão nas famílias, no primeiro século, parecem ter sido experiências frequentes. Portanto a divisão era entendida literalmente. Seguir Jesus, muitas vezes, determinava divisões nas famílias. A divisão não é objetivo do ministério de Jesus, mas é consequência das diferentes decisões de pessoas diante do chamado ao seguimento a Jesus.
Concluído o diálogo com os discípulos, Jesus volta-se ao povo (v. 54-56). Inicia constatando que, em termos de previsão do tempo, a experiência das pessoas é eficiente. Em previsão do tempo, o pessoal sabe aproveitar bem as informações (v. 54-55). Há no meio popular uma habilidade em leitura de indicadores de tempo. Mas isso não é acompanhado de uma outra habilidade muito mais importante. A objeção de Jesus e sua crítica ácida e dura são contra a falta de habilidade popular para ler e interpretar os indicadores “dos sinais desta época”.
Jesus quer tematizar duas situações, que devem ser foco de leitura e interpretação por parte da comunidade: primeira, o reino de Deus vem por meio da cruz e somente pela cruz. É assim que se manifesta o tempo salvífico que irrompe em Jesus e tem sua continuidade na vida comunitária; segunda, Jesus sabia que os sofrimentos de seus discípulos estavam indissoluvelmente ligados a seu próprio. Eles seriam envolvidos em seu sofrimento. As falas e atitudes de Jesus, somadas às suas consequências, envolveriam os seus seguidores. Para esses sinais dos tempos deveriam estar preparados. O fato de que essa expectativa não se cumpriu tão precisamente indica que são ditos do período pré-pascal. Por isso Lucas reforça que o discipulado tem uma consequência e que o mundo não tem prazer em acolher o reino de Deus.
Temos na agenda comunitária uma série de assuntos que envolvem temas controversos. Esses temas são motivo de opiniões divergentes, que mereceriam espaços de diálogo. São assuntos necessários, mesmo que não desejáveis. Não soa muito estranho que Jesus afirme que a sua pregação e prática vieram para atear fogo na terra, trazer divisão e não uma paz fantasiosa que ignore conflitos latentes e diferentes posturas das pessoas em relação a esses conflitos.
Sintomas dessa situação emergem na vida das comunidades e são perceptíveis no desânimo daqueles que expressam o desejo de largar tudo, de outros que se acomodam e se adaptam à injustiça e à indiferença e de outros que se isolam em pequenos grupos de pertença. São situações que se apresentam em nossas comunidades. Há toda uma diversidade de ânimos e humores que transitam em nossas atividades comunitárias. Elas já são sinais de divisões que a própria vida provoca. É Jesus que provoca divisões? Ou as divisões já estão presentes e tão somente agora são expostas, sem maquiagem, por exigência do evangelho? E se nisso concordamos, essas divisões devem ser foco de nosso testemunho de fé e fidelidade à proposta de Jesus. E é aqui que a comunidade participa do caminho da cruz e da cruz somente no tratamento e envolvimento em temas conflitivos da atualidade. É aqui que a comunidade se une e vivencia a paixão de Cristo.
Conhecer o verdadeiro rosto de Jesus é o ponto de partida para uma nova postura de vida. A ação de Jesus não conhecia barreiras e nem preconceitos. Quando Jesus afi rma que veio para botar fogo no mundo, está se referindo à profundidade de sua intervenção, que vai à raiz da realidade, marcada por muitas divisões, opressão e marginalização. Está claro e explícito no Evangelho de Lucas que Jesus veio para devolver dignidade a muita gente sem vez e sem voz. Veio para libertar consciências manipuladas pelo poder, pela intolerância e pela indiferença. Essa ação de Jesus questiona e interpela muito a nossa prática e o ambiente em que vivemos, tão dividido quanto desigual. Por isso é tão necessário tornar presente a memória de Jesus e buscar nela luzes e inspirações para a nossa caminhada tantas vezes confusa, dividida e inquieta.
Misericórdia caracteriza a vida e a prática de Jesus. É seu modo de agir e de ser. A misericórdia de Deus sempre foi o critério radical e absoluto que orientou a prática de Jesus.
Conhecer Jesus significa segui-lo. Segue-se com convicção o que se ama. Nós usamos a expressão “estar no fogo” para referir-se a alguém que é apaixonado por alguma causa ou propósito de vida. E a expressão “botar fogo” é utilizada no sentido de extremo empenho e dedicação a uma causa. Em circunstância nenhuma dá margem ao desânimo, desistência ou volta para trás. Tira da zona de conforto, procura envolver com a realidade de vida dos outros. A nossa perícope impressiona pelas exigências necessárias ao seguimento de Jesus. Significa romper com mentalidades e modos de vida diferentes no caminho de Jesus, pois estamos em uma sociedade dividida e desigual.
As pessoas já estão devidamente divididas. É o sintoma mais visível de nossa civilização. Há uma escola muito eficiente para isso. Essa foi a notícia de uma revista semanal, de circulação nacional, no dia em que estava concluindo esse estudo: Jovens latino-americanos criam a “nova direita”: defendem o uso da tecnologia (mas não o seu acesso amplo), meritocracia, liberdades individuais (incluindo o uso de drogas), mas nada de acesso amplo e gratuito a serviços básicos como saúde e educação. Querem impostos baixos e Estado mínimo, enquanto negam a existência de minorias e pedem a abolição de programas sociais para os mais pobres, porque não existe desigualdade: riqueza “não se transfere”, cada um “constrói a sua”.
A ilustração abaixo (Se os tubarões fossem homens, de Bertolt Brecht) ajuda na percepção acima esboçada.
Se os tubarões fossem homens, construiriam no mar grandes gaiolas para os peixes pequenos, com todo tipo de alimento, tanto animal quanto vegetal. Cuidariam para que as gaiolas tivessem sempre água fresca e adotariam todas as medidas sanitárias adequadas. Se, por exemplo, um peixinho ferisse a barbatana, ser-lhe-ia imediatamente aplicado um curativo para que não morresse antes do tempo.
Para que os peixinhos não ficassem melancólicos, haveria grandes festas aquáticas de vez em quando, pois os peixinhos alegres têm melhor sabor do que os tristes. Naturalmente haveria também escolas nas gaiolas. Nessas escolas os peixinhos aprenderiam como nadar alegremente em direção à goela dos tubarões. Precisariam saber geografia, por exemplo, para localizar os grandes tubarões que vagueiam descansadamente pelo mar.
O mais importante seria, naturalmente, a formação moral dos peixinhos. Eles seriam informados de que nada existe de mais belo e mais sublime do que um peixinho que se sacrifica contente e que todos deveriam crer nos tubarões, sobretudo quando dissessem que cuidam de sua felicidade futura. Os peixinhos saberiam que este futuro só estaria assegurado se estudassem docilmente. Acima de tudo, os peixinhos deveriam rejeitar toda tendência baixa, materialista, egoísta e marxista e denunciar imediatamente aos tubarões aqueles que apresentassem tais tendências.
Se os tubarões fossem homens, naturalmente fariam guerras entre si para conquistar gaiolas e peixinhos estrangeiros. Nessas guerras eles fariam lutar os seus peixinhos e lhes ensinariam que há uma enorme diferença entre eles e os peixinhos dos outros tubarões. Os peixinhos, proclamariam, são notoriamente mudos, mas silenciam em línguas diferentes, e por isso não se podem entender entre si. Cada peixinho que matasse alguns outros na guerra, os inimigos que silenciam em outra língua, seria condecorado com uma pequena medalha de sargaço e receberia uma comenda de herói.
Se os tubarões fossem homens, também haveria arte entre eles, naturalmente. Haveria belos quadros, representando os dentes dos tubarões em cores magníficas e as suas goelas como jardins onde se brinca deliciosamente. Os teatros do fundo do mar mostrariam valorosos peixinhos a nadar com entusiasmo rumo às gargantas dos tubarões. E a música seria tão bela que, sob os seus acordes, todos os peixinhos, como orquestra afinada, a sonhar, embalados nos pensamentos mais sublimes, precipitar-se-iam nas goelas dos tubarões.
Também não faltaria uma religião se os tubarões fossem homens. Ela ensinaria que a verdadeira vida dos peixinhos começa no paraíso, ou seja, na barriga dos tubarões.
Se os tubarões fossem homens, também acabaria a ideia de que todos os peixinhos são iguais entre si. Alguns deles se tornariam funcionários e seriam colocados acima dos outros. Aqueles ligeiramente maiores até poderiam comer os menores. Isso seria agradável para os tubarões, pois eles, mais frequentemente, teriam bocados maiores para comer. E os peixinhos maiores detentores de cargos cuidariam da ordem interna entre os peixinhos, tornando-se professores, oficiais, polícias, construtores de gaiolas etc.
Em suma, se os tubarões fossem homens, haveria uma civilização no mar.
Por enquanto, há uma civilização em terra, marcada por divisões, intolerâncias e sofrimentos. Convém que a comunidade não se identifique pela indiferença como um pedaço de tição fumegante. Antes que saiba botar fogo em questões essenciais para uma caminhada responsável na condição de seguidora dos passos de Jesus. Não há espaço para meio-termo e vacilo. Indiscutivelmente resultará em diferenças e divisões, consequência da postura diferenciada das pessoas diante da proposta do evangelho, confrontado com a realidade em que vivemos.
GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. Petrópolis: Ed. Vozes; São Leopoldo: Ed. Sinodal, 1983.
MOSCONI, Luís. Leitura segundo Lucas. Série A Palavra na Vida. Belo Horizonte: CEBI, 1991.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).