Proclamar Libertação – Volume 41
Prédica: Mateus 25.14-30
Leituras: Juízes 4.1-7 e 1 Tessalonicenses 5.1-11
Autoria: Nilo Christmann
Data Litúrgica: 24º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 19/11/2017
Estamos no penúltimo domingo do Ano Eclesiástico. Ao término do assim chamado período comum para a igreja, os textos previstos tematizam a escatol ogia. A comunidade é chamada a refletir sobre a vinda de seu Senhor. Vinda que, a um só tempo, é iminente e imprevisível. Importa, pois, estar preparado. Parafraseando uma música antiga: “é preciso saber viver” sob o cuidado e orientação daquele que diz: Eu sou o Alfa e o Ômega, […], o Todo-Poderoso, que é, que era e que há de vir (Ap 1.8).
Juízes 4.1-7 retrata o tempo dos juízes e das juízas(!) em Israel. A cena provoca a imaginação. Débora, profetisa e juíza, ficava sentada debaixo de uma palmeira. Ali o povo lhe trazia as causas a serem julgadas. O texto em questão, no entanto, trata de uma causa maior. O povo de Israel, como consequência do seu pecado, estava subjugado pelo rei de Canaã, cujo poderoso exército era comandado por Sísera. Débora anuncia que Deus se cansou de ver seu povo sendo oprimido. Baraque é chamado pela profetisa e recebe a ordem de reunir o exército e lutar contra Sísera sob promessa de vitória.
Em 1 Tessalonicenses 5.1-11, Paulo tematiza a vinda do Dia do Senhor, reafirmando não caberem especulações quanto à data, pois virá como ladrão da noite. Mesmo tempos de paz (aparente!) não são garantia de que o dia não esteja próximo. Por isso importa estar vigilante e sóbrio. As armas a serem usadas – a fé, o amor e a esperança da salvação – têm a marca da nova aliança. São as armas de quem está em Cristo.
Os dois textos são perpassados pelo agir amoroso de Deus, que, bem entendido, não dispensa o juízo. Em Juízes, depois de permitir o sofrimento por algum tempo, Deus ouve o clamor de seu povo e providencia o socorro e a libertação. Em Tessalonicenses, o alerta sobre a vinda do Dia do Senhor vem acompanhado da exortação à vigilância. Mas também vem acompanhado de alento, pois quem está em Cristo não tem o que temer. Os textos de leitura contêm lei e evangelho. É um dado a ser considerado, pois, como veremos adiante, o texto da pregação – mais conhecido como parábola dos talentos – é dureza!
A parábola dos talentos (Almeida e Bíblia de Jerusalém) ou dos três empregados (Bíblia na Linguagem de Hoje/BLH) está, em Mateus, no contexto do discurso escatológico dos capítulos 24 e 25. São as falas de Jesus sobre as coisas últimas. O texto imediatamente anterior é a parábola das dez moças. Por falta de juízo, cinco delas perderam a festa do Reino. A perícope seguinte trata do juízo de forma mais direta, quando serão separadas as ovelhas e as cabras, tendo por critério o que cada qual fez em relação aos doentes, presos, famintos, sedentos e estrangeiros. Percebe-se, pelo contexto imediato, que Mateus confere à parábola dos talentos sentido de “ajuste de contas”.
Mateus 25.14-30 encontra paralelo em Lucas 19.11-27. No entanto, as diferenças entre os textos são tantas, que os exegetas sugerem tratar-se de histórias distintas, razão pela qual não vamos nos ater a comparações. Não se verificam maiores problemas na tradução do texto. A BLH converte os talentos (na origem, uma medida de peso) em moedas de ouro. A alteração contribui positivamente, pois quem ouve o texto tem imediatamente a noção de que os valores recebidos pelos empregados eram muito expressivos.
Se não há maiores problemas com a tradução, o mesmo não se pode dizer sobre a interpretação da parábola. Talvez seja uma das razões para que o texto estivesse ausente como pregação no Lecionário por mais de dez anos.
Jesus foi reconhecido em seu tempo como Mestre. Sua sabedoria e sua capacidade de ensinar eram magistrais. Recorrer a parábolas foi uma das suas marcas. Situações do cotidiano ou do imaginário popular eram para Jesus elementos preciosos para falar das coisas de Deus ou, mais especificamente, para falar do reino de Deus. Afinal, como poderiam as pessoas daquele tempo (e também as de hoje) entender as coisas de Deus se a fala não fosse mediada pela linguagem e pelo simbólico compreensíveis aos humanos? Jesus foi mestre em simplificar as coisas. Mas também sabia falar difícil e ser enigmático e usou esse expediente como meio pedagógico para levar à reflexão.
Muitas parábolas de Jesus têm a inspiração na vida do campo, relacionadas a pastores, ovelhas, sementes, semeadores, vinhas… Já a parábola dos talentos se inspira no meio urbano. Ela tem a ver com negociar, fazer o dinheiro se multiplicar, cobrança de juros e sistema bancário. Faz todo o sentido que a parábola tenha sido proferida em Jerusalém. A um público predominantemente urbano cabe relacionar a mensagem com seu cotidiano. Coisa de mestre!
Para Brakemeier, “se deve concluir ser a proximidade do reino de Deus na pessoa do Nazareno a chave hermenêutica das parábolas. Elas exigem a interpretação cristológica”. Ora, a parábola dos talentos está entre aquelas cujo início faz alusão direta ao reino dos céus, expressão preferencial de Mateus para reino de Deus: O reino dos céus será como um homem que ia fazer uma viagem […] (v. 14), o qual chama três empregados para tomar conta dos seus bens durante sua ausência. Os valores diferenciados repassados aos servos são irrelevantes para a interpretação da parábola. Servem apenas para dizer que as quantias foram distribuídas conforme a capacidade de cada um. O mérito de um e outro não é maior no acerto de contas, uma vez que os recursos pertencem ao proprietário. A recompensa, de fato, pela fidelidade do primeiro e do segundo servos é fazer parte da festa (v. 21 e 23).
Um cuidado necessário na interpretação das parábolas é perceber para qual ou para quais aspectos a analogia quer apontar. A parábola dos talentos não se presta para fazer apologia da esperteza na multiplicação de recursos financeiros. Também não se presta para justificar a desigualdade social, legitimando o acúmulo de alguns e a miséria de outros.
Observa-se também que a parábola original já está acrescida de elementos interpretativos. O proprietário dos bens do início da parábola no final já se transformou em um senhor que joga o terceiro servo na escuridão, onde vai chorar e ranger os dentes (v. 29). Ali o texto já deixou de ser parábola, dando lugar ao linguajar característico de Mateus para expressar o que acontece com os infiéis (assim em 8.12 e 22.13). Por isso, sem ignorar o juízo de Deus, o final do texto não ocupa lugar central.
Cabe ainda o cuidado para não dar razão ao terceiro servo quanto à imagem que ele tem de seu senhor. O empregado justifica a atitude de enterrar o dinheiro pela severidade do patrão, atribuindo-lhe dureza de coração e a propensão a colher onde não plantou e a juntar onde não semeou (v. 14). Retoricamente, o senhor faz uso da imagem que o empregado tem a seu respeito para explicar o que deveria efetivamente ter feito com os recursos que lhe foram confiados. Mas isso não quer dizer que o patrão de fato fosse assim. Aliás, fazendo a leitura cristológica do texto, esse aspecto de forma alguma faz jus ao agir de Jesus e a seu ensino sobre justiça.
Feitas essas considerações, o acento da parábola recai sobre a forma como três servos administraram os bens do seu senhor, que lhes foram entregues em confiança durante o período de sua ausência. Destaca-se que o primeiro empregado não perde tempo, não fica divagando; ao contrário, imediatamente se põe a negociar. Ele honrou o seu senhor naquilo que lhe cabia. Da mesma forma agiu o segundo servo. Ambos tiveram a confiança e ousaram. Em nenhum momento dão sinal de que o patrão era um carrasco.
O argumento do terceiro servo para não negociar com os recursos que recebeu é o medo do patrão. Trata-se de argumento que soa a desculpa. O senhor diz simplesmente que o servo foi mau e preguiçoso. O problema desse empregado foi ter desconfiado do patrão. Desse empregado, assim como dos outros, não foi exigido nada além do que era capaz de fazer. O patrão conhecia seus empregados e considerava-os dignos de dar conta da tarefa que receberam. Não cabia, pois, desconfiança e apatia. O bem que receberam era muito precioso para ficar enterrado. O transcurso da parábola permite supor que, caso o terceiro servo tivesse ousado e tivesse perdido o dinheiro, ainda assim teria sido convidado a participar da festa. A falta de confiança e a apatia foram os motivos de sua condenação.
É provável que, na origem, os endereçados da parábola fossem os fariseus e os escribas, especialmente os últimos. Eles eram os “fiéis depositários” da Lei de Deus, ou seja, dos mandamentos. Mas, com sua casuística, conseguiram enterrar o tesouro precioso. Não fizeram render o amor, a justiça e a misericórdia de Deus contidos nas orientações passadas de geração em geração. Mateus já escreve a parábola reinterpretando-a para sua comunidade. De que forma ela fala para nosso tempo?
A parábola dos talentos é inquietante por várias razões. De um lado, parece justificar a desigualdade presente em nosso meio, na qual alguns têm muito e outros têm pouco ou nada. Como se não bastasse a diferença inicial nos recursos que cada um recebeu, no fim das contas quem já tinha muito recebe ainda mais e quem já tinha pouco fica sem nada. Imaginar-se na pele do terceiro servo talvez levasse à conclusão de que se faria o mesmo que ele fez.
Por outro lado, quase de imediato, identifica-se o proprietário/patrão com Deus. No início e meio da parábola, a identificação parece coerente. Mas quando o “pobre coitado” (terceiro servo) recebe o veredito, fica-se um tanto indignado. É estranho que Deus possa agir dessa forma, e tem-se a impressão de que alguma coisa nessa história está fora do lugar. Onde está o Deus que se compara ao bom pastor e vai em busca da ovelha perdida, colocando-a sobre os ombros? Onde está o Deus que mostra especial misericórdia pelos pequenos e pelos mais fracos?
Qual será a impressão da comunidade ao ouvir o texto? Um ouvido atento poderá fazer perguntas e ter sentimentos semelhantes aos expressos acima. Por outro lado, há de se considerar que a parábola é relativamente conhecida. Ainda assim, o título parábola dos talentos pode estabelecer relação imediata com talentos e capacidades pessoais, fazendo lembrar pessoas talentosas para uma ou outra tarefa. Mesmo que a associação não seja de todo negativa, pois tangencia o sentido da parábola, ainda assim pode desviar do foco principal.
O penúltimo domingo do ano eclesiástico confronta a comunidade com o juízo de Deus. É um tema que fica na contramão na pós-modernidade. É quase tão esquisito quanto falar de pecado. Nem por isso deve ser evitado. A Bíblia não esconde que chegará o momento do ajuste de contas. Deus é misericordioso, como vemos no texto de Juízes e em 1 Tessalonicenses, mas não deixa de confrontar o ser humano. Se a graça fosse barata, o terceiro servo teria recebido um afago e o senhor se teria dobrado ao papel de vítima do medo que aquele tentou assumir e deixá-lo-ia igualmente participar da festa.
O fermento do reino de Deus está entre nós a partir de Jesus Cristo. Trata–se de mensagem preciosa, libertadora e transformadora. A mensagem preciosa, contudo, não pertence às pessoas. Não é sua propriedade. Pertence ao Criador da vida. Pertence àquele que era, que é e há de vir. A boa-nova vem daquele e pertence àquele que trilhou o caminho da cruz em favor da salvação das pessoas. O reino é de Deus, e não nosso.
Mesmo assim, Deus não dispensa as pessoas, dizendo que são inúteis. Ao contrário, no linguajar de Paulo (2Co 4.5-7), Deus coloca esse tesouro em frágeis potes de barro. Ele cria os seres humanos à sua imagem e semelhança e vem a seu encontro oferecendo-lhes o privilégio de serem feitos seus filhos e suas filhas.
Mas, além disso, entrega em suas mãos algo que apenas cada um pode fazer para que a graça preciosa ganhe corpo neste mundo. Não há por que duvidar da justiça de Deus; por isso o que ele espera de cada um não está além da sua capacidade.
Assim como os empregados da parábola, também hoje não se sabe quando o Senhor virá. Nesse tocante, não cabem especulações. Mas é certo que virá. Enquanto isso, não cabe duvidar daquilo que o Senhor confiou nas mãos das pessoas cristãs e das comunidades. Cabe confiar que ele fez cada um assim como é e con- cedeu dons que, por essa razão, não são fruto do acaso. Há que se cuidar com o medo e com a apatia, pois tesouro precioso existe para ser multiplicado e não para ser enterrado. Aqui há, sim, o risco de ser desqualificado para a festa do Reino.
A parábola dos talentos confronta com o juízo de Deus e faz perguntar seriamente o que cada pessoa e comunidade têm feito com aquilo que recebeu de seu Senhor. E aí há um detalhe interessante: na parábola dos talentos, fica a impressão de que o patrão se ausentou deixando que os empregados dessem conta de sua tarefa sozinhos. Nesse ponto, ao lado da tarefa que recebemos, há um grande alento. Se aguardamos a volta do Senhor, não a aguardamos em solidão. No próprio Evangelho de Mateus, quando os discípulos recebem a ordem de pregar o evangelho, eles recebem também a promessa: Eis que estou convosco todos os dias até a consumação do século (28.20).
Aquele que vem ao encontro, que salva, que concede dons, que confia o tesouro nas mãos dos seus servos, discípulos e discípulas, é o mesmo que promete estar com eles em todos os momentos. Quem se percebe nas mãos de Deus pode confiar, ousar e lançar fora todo o medo.
Uma possibilidade de abordagem da parábola é convidar a comunidade para refletir sobre o que considera ser uma pessoa talentosa. A reflexão pode incluir exemplos de pessoas especialmente talentosas em alguma área. Mas pode considerar também em que aspectos cada qual se considera talentoso. A partir disso, esclarecer que na origem a palavra talento significava um peso ou uma quantia em dinheiro. A parábola dos talentos “alterou” o sentido original do termo, dando-lhe o significado de uma aptidão distinta ou uma habilidade natural. Pode-se concluir preliminarmente que todos são talentosos.
A questão central que a parábola coloca é o que as pessoas e a comunidade fazem com o conjunto dos talentos que receberam. Uma opção é considerá-los propriedade pessoal e particular, utilizando-os com esperteza para render em benefício pessoal e para ter o reconhecimento por parte das outras pessoas. Aliás, realidade e tentação nada incomuns quando o ser humano se deixa seduzir pelo velho Adão e pela velha Eva presentes em sua vida. Aos olhos de Deus, essa é uma forma clássica de enterrar os talentos. Merece a reprovação e seu juízo.
O ensinamento de Jesus sublinha que ninguém é talentoso por si mesmo. Se os talentos estão aí, é porque, em última análise, eles apenas foram confiados às pessoas por algum tempo. Não lhes pertencem como se fossem sua propriedade. Importa, pois, que estejam a serviço daquilo que sinaliza a presença do reino de Deus neste mundo. Eles se expressam por meio da fé, do amor e da esperança (1Ts 5.8). Essa é a postura que alegra o Senhor enquanto aguardamos por sua volta.
A pregação deveria ainda sinalizar, de acordo com a realidade de cada contexto, para oportunidades concretas que pessoas e comunidades têm para “investir” os talentos em seu meio.
Reconhecer nossa tendência de achar que aquilo que temos e somos é nossa propriedade particular. Reconhecer que nossa gratidão é minguada. Reconhecer nossa falta de ousadia e negligência com os dons e possibilidades que Deus nos concede de anunciar seu Reino neste mundo.
HPD 2 – 413: Senhor, se tu me chamas HPD 2 – 359: Te ofertamos
BRAKEMEIER, Gottfried. As parábolas de Jesus: imagens do reino de Deus. São Leopoldo: Sinodal, 2016.
JEREMIAS, Joachim. As parábolas de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1980.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).