Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: Efésios 1.15-23
Leituras: Ezequiel 34.11-16, 20-24 e Mateus 25.31-46
Autoria: Renato Küntzer
Data Litúrgica: Domingo Cristo Rei
Data da Pregação: 22/11/2020
O Domingo Cristo Rei faz parte da tradição litúrgica recente e foi incluída na nossa liturgia pelo lecionário ecumênico. Celebra a Jesus Cristo como Rei, que foi ressuscitado dentre os mortos e está sentado à direita de Deus, foi colocado acima de todo principado, autoridade, poder, domínio, de todo nome que se nomeia, não só neste século, mas também no vindouro. Jesus Cristo é confessado como o rei soberano de todo o universo. O texto sugerido para a pregação é acompanhado pela leitura de Ezequiel 34.11-16,20-24, onde, ao contrário de autoridades e poderes que abusam do povo, a autoridade que vem de Deus projeta liberdade, vida e segurança para todas as pessoas. A leitura do Evangelho de Mateus 25.31-46 compromete a comunidade ao reconhecimento e compromisso com a pessoa concreta de Jesus e às suas práticas de amor e justiça. A igreja, como corpo de Cristo, reflete valores e práticas de Jesus dentro do mundo.
A Carta aos Efésios é difícil de ler e compreender. Mais do que uma carta, é um tratado teológico minuciosamente elaborado. Por isso é necessário retroceder ao tempo do texto, ao fundo sócio-cultural-religioso no ambiente do Império Romano, antes de fixar os olhos no tempo presente, para dentro da realidade brasileira.
A Epístola aos Efésios não é, provavelmente, de autoria do apóstolo Paulo, nem é endereçada à comunidade de Éfeso, cuja referência falta em importantes manuscritos gregos. Os exegetas propõem sua datação por volta do ano 90, pois o conjunto de assuntos da carta são os problemas da igreja pós-apostólica. É uma síntese teológica formada a partir do entusiasmo litúrgico dos discípulos de Paulo, que vivem da herança deixada pelo apóstolo (Ef 2.20). Paulo está entre os apóstolos que servem de fundamento para a igreja, estando presente nas comunidades pela sua herança. A carta também não trata de nenhum problema específico da comunidade de Éfeso. Não há polêmicas, nem perseguição, nem infiltração de heresias ou erros frequentes nas comunidades pressupostas na carta. Antes, trata de problemas globais das comunidades. Lida com a questão da identidade e pertença. Importante é consolidar a igreja una e santa totalmente ligada a Cristo, a pedra angular do fundamento, e participante de sua santidade.
A intenção teológica da epístola é animar a pertença à santidade da igreja para compensar as fraquezas das comunidades locais. É uma igreja que tem suas raízes e sua cabeça nos céus, que venceu os poderes e é superior a todos os poderes terrestres. Assim ajudou a resistir e a desafiar o mundo romano. “O mundo cristão rompeu com o paganismo e caminha na Igreja, associada intimamente a Cristo, mergulhando na santidade desta Igreja, longe da corrupção do sistema romano. A Igreja separa-se por uma vida santa que admite as estruturas fundamentais da sociedade, mas confia em que pode santificá-las pelo modo de vivê–las. Este é o desafio de todos os cristãos instalados numa sociedade estruturada” (COMBLIN, 1987).
Não se trata de uma proposta de igreja missionária. É um tratado eclesiológico. É uma igreja santa e incorruptível em meio à cultura romana. Ela tenta achar seu papel na sociedade.
Conforme os comentários, há um consenso em identificar na carta dois temas teológicos. Eles estão colocados qual uma imagem dentro da moldura da saudação inicial (1.1-2) e das saudações finais (6.21-24)
– Ef 1.3 – 3.21: Cristo, a igreja e a revelação do plano de Deus.
– Ef 4.1 – 6.20: Exortações éticas.
Nossa perícope faz parte do primeiro tema teológico da carta (1.3-23), que é uma síntese única e original do cristianismo de tradição paulina. Ela anuncia a soberania de Deus: tudo procede de Deus. Deus recapitulou todos os acontecimentos e as coisas na terra e nos céus, e tudo conflui para o Cristo crucificado (1.10) e ressuscitado, por amor à humanidade.
Agora a perícope prevista para a prédica: 1.15-23. De modo resumido podemos afirmar que ela aborda internamente dois assuntos: v. 15-19 expressam ações de graça pela atuação da comunidade, e v. 20-23 tematizam o triunfo, a primazia de Cristo e da igreja.
Sugiro utilizar a versão atualizada de João Ferreira de Almeida.
15 – Por isso também eu, tendo ouvido falar da fé que entre vós há no
Senhor Jesus
e do vosso amor para com todos os santos,
16 – não cesso de dar graças por vós,
lembrando-me de vós nas minhas orações,
17 – para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória,
vos dê o espírito de sabedoria e
de revelação no pleno conhecimento dele;
18 – sendo iluminados os olhos do vosso coração,
para que saibais qual seja a esperança da sua vocação,
e quais as riquezas da glória da sua herança nos santos,
19 – e qual a suprema grandeza do seu poder para conosco,
os que cremos,
segundo a operação da força do seu poder,
20 – que operou em Cristo,
ressuscitando-o dentre os mortos e
fazendo-o sentar-se à sua direita nos céus,
21 – muito acima de todo principado,
e autoridade,
e poder,
e domínio,
e de todo nome que se nomeia,
não só neste século, mas também no vindouro;
22 – e sujeitou todas as coisas
debaixo dos seus pés, e
para ser cabeça sobre todas as coisas
o deu à igreja,
23 – que é o seu corpo, o complemento daquele que cumpre tudo em todas as coisas.
A atuação da comunidade é motivo de agradecimento e de oração por suas ações de amor em relação aos irmãos e às irmãs. Não se expressa nada de particular em relação às ações de amor. Não se nomeiam ações concretas, somente uma referência geral (v. 15-16).
Na sequência há uma série de petições endereçadas a Deus de nosso Senhor Jesus Cristo o Pai da glória, o qual foi a razão do bendito que anuncia com convicção a soberania de Deus e que tudo procede de Deus (1.3-14). Pede pelo espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele (de Deus). Aqui dá para sublinhar o caráter trinitário das petições. Primeiro vem Deus, depois o Cristo e por fim o Espírito Santo. Dessa presença decorre a luz dos olhos do coração para que a comunidade enfim entenda que tudo procede de Deus:
para que saibais qual seja a esperança da sua vocação,
e quais as riquezas da glória da sua herança nos santos,
e qual a suprema grandeza do seu poder para conosco.
A comunidade (vós) é espaço de esperança, herança e poder. Há nela vocação, riquezas e suprema grandeza.
Qual é a origem dessa esperança, herança e poder? Cristo, ressuscitado de entre os mortos e sentado à direita de Deus nos céus. A esperança, a herança e o poder da comunidade advêm da presença da suprema grandeza, do poder e força de Deus em Cristo. Esse Cristo glorificado, à direita de Deus nos céus, identificado por meio de termos exuberantes, com suprema grandeza, poder e força, torna a comunidade uma experiência totalmente superior a qualquer outra experiência. Isso, por meio da esperança, por meio da herança na glória de Deus e por meio do poder das obras que Deus realiza. Toda essa extraordinária experiência é para vós. Quantas maravilhas, grandeza e riquezas em vós!
Há um conhecimento da esperança, herança e poder superior que é o conhecimento
da realidade da comunidade (vós) unida por Deus ao Cristo que está:
acima de todo principado,
e autoridade
e poder,
e domínio,
e de todo nome que se nomeia,
e sujeitou todas as coisas
debaixo dos seus pés, e
para ser cabeça sobre todas as coisas
Deus exaltou Jesus acima de todos os poderes (principado, autoridade, poder, domínio). Há uma superioridade do poder de Cristo. Deus sujeitou todas as coisas debaixo dos pés de Cristo e o fez cabeça sobre todas as coisas. Acima de todos os poderes, de todas as coisas e cabeça sobre tudo e todos, significa que o universo e tudo que nele está, nada escapa da soberania de Cristo. Agora e no século vindouro. Espaço e tempo estão sob a soberania de Jesus Cristo ressuscitado e à direita de Deus. Tudo está debaixo dos seus pés e ele é cabeça sobre todas as coisas.
No texto há uma construção teológica crescente. Ela chega ao ápice da sua construção ao afirmar:
o deu à igreja,
que é o seu corpo,
o complemento daquele que cumpre tudo em todas as coisas.
A igreja é o corpo de Cristo. Portanto ela goza da mesma grandeza, poder e honra que Cristo. Toda essa extraordinária riqueza é para vós.
O auge da formulação teológica é celebrar a igreja que é unida a Cristo. Cristo está acima de tudo e dirige tudo. E se a igreja é o corpo de Cristo, ela também está acima de tudo. Por causa da cabeça, Cristo, se exalta o corpo, a igreja. Cristo é, para a igreja, a cabeça. Daí a dignidade da igreja. Ela tem como cabeça a suprema autoridade do universo. A igreja é o complemento daquele que cumpre tudo em todas as coisas. Todos os bens de Deus que estão em Cristo são identificados na igreja. Todas as coisas que Deus envia para o mundo passam pela igreja e por intermédio da igreja vão se realizar no mundo. “A igreja, como plenitude de Cristo, reflete valores e práticas de Jesus dentro do mundo. Dessa plenitude de Cristo ela é receptora, sendo convidada a repassá-la e vivenciá-la cada vez melhor na sociedade circundante” (WEGNER, 2016).
A primeira afirmação teológica da Carta aos Efésios é que o universo inteiro está subordinado a Cristo. Todos os bens de Deus, o Pai, estão em Cristo. Nele está tudo o que Deus destina ao universo. Eis um assunto bom para pregação. Como se dá isso na atual conjuntura? Ali, no contexto da influência do Império Romano, a comunidade procura se definir e situar. O projeto de Deus é superior ao projeto imperialista dos romanos.
Ainda hoje continuamos cercados por forças e poderes. Não mais oriundos de uma cosmovisão mitológica da época bíblica. Hoje, forças e poderes decidem o curso deste mundo segundo os seus interesses e desejos. Sistemas corporativos e políticos se apoderam de pessoas e instituições e controlam vida e morte. Em nosso contexto brasileiro, esses poderes se manifestam nas estruturas injustas, nos mecanismos de exclusão e na lógica de morte que justifica a miséria da maioria da população.
Como, dentro dessa realidade, podemos verificar a manifestação da autoridade de Cristo e que tudo e todos estão sob o domínio de Deus?
Toda a plenitude que está em Cristo está também na igreja. Segundo Lutero, a igreja é corpo místico de Cristo. Essa igreja não coincide necessariamente com a igreja visível, reconhecida na diversidade das comunidades cristãs ou na igreja institucional. A verdadeira igreja é invisível aos olhos humanos; somente Deus a conhece. É por meio da igreja invisível, na qual somos enxertados pela vida em comunidade, que nos tornamos membros da mesma e assumimos a responsabilidade de refletir valores e práticas presentes em Jesus de Nazaré. Essa é a extraordinária riqueza para nós.
O que se destaca é a tarefa inclusiva da igreja por meio da experiência comunitária e não a exclusividade por meio da instituição, qualquer que seja. A igreja reflete valores e práticas de Jesus, orientada especialmente pela cruz. Nessa comunidade, tudo se vive em Cristo, imagem constante na carta. O rosto humano de Deus, Jesus Cristo, é a razão da construção da igreja/comunidade universal e que se define como serviço à paz (2.14). Deus, por meio de Cristo, sabe na própria carne o que é a violência, a tortura e a traição causadas pelo poder político, econômico e religioso. Por isso o caminho da igreja/comunidade é o caminho de Jesus.
O triunfo da igreja está na sua pobreza e fraqueza. Nessa comunidade de alcance universal, o corpo de Cristo, não há armas, e os pesadelos de conflitos armados e guerra ficaram para trás, assim como os muros das separações. Não há violência, e sim comida, trabalho e dignidade. Nela, não se alimenta a discriminação, pois não há divisão entre excluídos e incluídos. Todos e todas se acercaram da comunidade (2.13). Não há eleitos, mas membros do corpo de Cristo, onde sobressaem a paz e a reconciliação. O critério do amor mútuo. O que diferencia a pessoa cristã é que ela sabe de antemão. Na igreja visível se manifesta a realização do plano de Deus para com toda a humanidade. O plano de Deus consiste em que o ser humano participe da vida divina em e por Cristo.
Jesus concretizou uma opção fundamental e uma causa da qual não abriu mão. A luta de Jesus por uma causa não o tornou um homem eclesiástico, religioso, preso aos estreitos limites do que é conveniente. Sua causa revelou as regras religiosas legalistas de época e as limitadas esperanças dos líderes religiosos e políticos. Sua causa o conduziu à vida, à profecia, às praças, ao encontro com as massas populares, da dor humana, do conflito público, ao confronto com os líderes religiosos e autoridade políticas. Será que a prática de Jesus não consegue sequer nos criticar quando tentamos estreitar e domesticar o evangelho, confinando-o aos limites estreitos da instituição e do que é socialmente conveniente? Vale a pena a causa de Jesus, ou é melhor abandoná-la? Quando iremos confiar que o Espírito Santo também pode descer sobre nós, chamando-nos à esperança, à gestação e ao nascimento de um tempo novo? Ou nossa esperança depende somente de nosso próprio entusiasmo, de nosso otimismo, ou do animado fervor das multidões?
Jesus chama ao seguimento e à vivência de uma igreja da misericórdia. Uma igreja que se esvazia, assumindo a condição de serva. Essa igreja serva necessita de líderes que não se identificarão pelo poder, mas essencialmente pelo serviço.
Senhor,
existem cristãos mudos, que,
enquanto não se mexe com eles,
ficam tranquilos, por mais que o mundo se arrebente.
Não protestam contra as injustiças,
porque estão escravizados e foram seduzidos,
comprados pelo medo ou pelo oportunismo.
Outros, porque nada têm como serviço,
para eles a fé é uma coisa
que nada tem a ver com a vida;
vale só das nuvens para cima…
Nós te pedimos, Senhor,
pelos cristãos que estão em silêncio;
que tua palavra lhes queime as entranhas
e os faça superar sua indiferença.
Que não se calem como se nada tivessem a dizer.
Senhor, sabes o que convém à tua igreja,
se um fervor de catacumbas
ou a rotina de uma proteção oficial.
Dá-lhe o que seja melhor,
ainda que seja a perseguição ou a pobreza.
Livra-nos do silêncio daquele que “boceja”
diante da injustiça.
Livra-nos do silêncio prudente
para não nos comprometer.
Receamos ter limitado teu evangelho;
agora já não tem mais arestas, nem espanta ninguém;
temos pretendido convencer-nos
que tudo é possível e tudo é permitido,
servir a ti, privilegiar a si próprio e ignorar o próximo.
Senhor,
livra a tua igreja do desejo de ser igual a tudo,
que não pareça uma sociedade a mais
com seus donos, acionistas,
privilégios, profissionais e burocracia.
Que tua igreja nunca seja muda e cega,
uma vez que ela é instrumento da tua palavra,
que prega livremente,sem rodeios nem covardias.
Que jamais se cale diante dos que se escondem debaixo de peles de ovelha
nem daqueles que se portam como lobos famintos.
(Tradução livre de um poema de Luiz Espinal, Bolívia.)
COMBLIN, José. Epístola aos Efésios. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal; São Bernardo do Campo: Metodista, 1987.
WEGNER, Uwe. Ascensão do Senhor: Efésios 1.15-23. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2016. v. 41, p. 181-184.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).