Proclamar Libertação – Volume 45
Prédica: Ezequiel 2.1-5 (6-7)
Leituras: Marcos 6.1-13 e 2 Coríntios 12.2-10
Autoria: Nelson Kilpp
Data Litúrgica: 6° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 04/07/2021
O tema do domingo é dado pelo evangelho, Marcos 6.1-13: Jesus é rejeitado em sua própria terra, onde vive sua família e onde é conhecido desde pequeno. Em Nazaré não consegue realizar nenhum milagre senão algumas curas (v. 5). O texto do Antigo Testamento (Ez 2.1-5[7]) foi escolhido para corroborar o tema do insucesso do mensageiro de Deus: Ezequiel é enviado a um povo de “duro semblante e obstinado de coração” (v. 4), que dificilmente dará ouvidos à mensagem do profeta. A epístola (2Co 12.2-10) se insere no tema na medida em que Paulo precisa defender seu apostolado diante daquelas pessoas que, em Corinto, apreciam revelações fantásticas. Mas é na fraqueza do mensageiro – exemplificada no “espinho na carne” – que Jesus se torna forte.
O recorte homilético previsto (Ez 2.1-5) é possível, mas a estrutura do relato de vocação e envio do profeta (Ez 1.4 – 3.15) pede a inclusão dos v. 6-7 e a consideração do pano de fundo da unidade literária maior. O trecho foi tratado, com outro recorte, em Proclamar Libertação II, p. 96ss (Nelson Kirst: Ez 2.3-8a; 3.17-19) e Proclamar Libertação 25, p. 231ss (Ervino Schmidt: 2.1-8a) e, no recorte previsto, em Proclamar Libertação 36, p. 226ss, por Olmiro Ribeiro Junior. O trecho se enquadra bem no tempo após Pentecostes, em que a comunidade cristã cresce e amadurece pela atuação nem sempre visível do Espírito Santo.
2.1. Ez 2.1-5[6-7] deve ser visto dentro da unidade literária formada pelo relato de visão, vocação e envio do profeta Ezequiel, que abarca Ezequiel 1.4 – 3.15. É importante ter em mente esse contexto literário, pois ele dá parâmetros importantes para a compreensão da mensagem. 1) O relato inicia com a complexa visão do “carro” que leva o trono e a glória de Deus do templo de Jerusalém até a Babilônia, onde se encontra o profeta junto a um grupo de exilados judaítas (1.4-28). A visão evidencia uma mudança de mentalidade do profeta. No imaginário sacerdotal de Ezequiel, Deus tem sua morada terrena no Santo dos Santos do templo de Jerusalém. Esse imaginário é desconstruído quando, em visão, Deus se torna “móvel” e se desloca para onde está seu povo. Essa mudança na forma de conceber Deus é essencial na vocação profética de Ezequiel. 2) Ao relato de vocação segue nosso recorte (2.1-5[6-7]), que trata do envio do profeta à “casa rebelde”. Nesse trecho ainda não se fala do conteúdo da mensagem. 3) Esse aparece no relato do gesto simbólico visionário que segue (2.8 – 3.3): o profeta deve comer o rolo de um livro repleto de “lamentações, ais e suspiros”. A palavra de Deus deve necessariamente passar pelo “estômago” de Ezequiel antes de ser proferida ao povo. O profeta não é um autômato que transmite a palavra sem emoção ou envolvimento pessoal. 4) O trecho 3.4-11 desenvolve ideias mencionadas em 2.1-5[6-7] e conclui o momento do envio. 5) O relato termina mencionando que a glória de Deus se afasta e o profeta volta a Tel-Abibe, no canal Quebar (nahar kabari = “canal grande”), para junto das pessoas exiladas (3.12-15). 6) O restante do capítulo vai desenvolver a ideia do profeta-sentinela (3.16ss).
2.2. Não há necessidade de entrar em detalhes sobre época e lugar do texto. Apresento apenas os mais importantes. O sacerdote (ou filho de sacerdote) Ezequiel (“Deus te queira tornar forte”) fez parte do grupo de judaítas deportado à Babilônia, em 597, juntamente com a família real e parte da elite política e intelectual de Judá e Jerusalém. Sua vocação se deu no quinto ano do cativeiro, portanto em 593 (1.1s), às margens do “rio” Quebar, um canal do rio Eufrates que passava pela antiga cidade de Nipur. Documentos extrabíblicos atestam a existência de uma colônia de judaítas nessa região. A localidade de Tel-Abibe (“ruínas antigas”; 3.15) pode dar a entender que os exilados foram encarregados de reconstruir cidades em ruínas ou repovoar localidades desabitadas. O grupo de judaítas exilados tinha oportunidade de reunir-se para celebrações junto às águas (Sl 137; cf. At 16.13) ou na casa de Ezequiel (8.1; 14.1; 20.1).
1.28b) Então ouvi a voz de alguém que falava 2.1) e ele me disse: “Filho do homem, põe-te sobre os teus pés para que possa falar contigo!” 2.2) Então o espírito entrou em mim e me ergueu sobre os meus pés e ouvi aquele que falava para mim.
Após a visão da glória de Deus, o profeta cai sobre sua face. Nesse momento de fraqueza, a palavra de Deus alcança seus ouvidos. Não se menciona o nome de Deus, mas simplesmente “alguém que fala”. Nem sempre é possível perceber de imediato que a palavra ouvida tem origem divina. A palavra não o interpela pelo nome nem pela posição, mas por “filho do homem”, ou seja, representante da espécie humana. Não é um título especial como em Daniel 7.13 ou no Novo Testamento (cf. Mt 8.20), mas expressa, como no Salmo 8.5, a humildade e a pequenez do ser humano diante da majestade do Criador. Esse pequeno ser humano precisa erguer-se do chão em que está deitado e assumir a postura de um mensageiro digno diante daquele que lhe fala. Mas a fragilidade do ser humano necessita da ajuda do Espírito para colocar-se de pé. Aqui vislumbramos o mistério que sustenta o ministério: a ordem de Deus sempre vem acompanhada da força vital que capacita o vocacionado a realizar o que lhe é ordenado.
2.3) Ele me disse: “Filho do homem, eu te envio aos filhos de Israel, os rebeldes que se rebelaram contra mim, eles e seus pais romperam comigo até o dia de hoje, 2.4) A estes filhos de duro semblante e coração obstinado é que te envio. Tu lhes dirás: ‘Assim disse o Senhor!’, 2.5) quer eles escutem ou não – pois são casa rebelde – a fim de que reconheçam que houve um profeta entre eles.”
A estrutura do trecho é clara: eu te envio – tu dirás – eles reconhecerão! O que dá legitimidade à atuação profética não são capacidades retóricas nem habilidades mânticas, nem peculiaridades físicas ou psíquicas de uma pessoa, mas o envio. Quando o profeta precisa defender seu ministério, ele recorre à sua experiência visionária e a seu envio. A fórmula do mensageiro (“Assim diz o Senhor”) acentua que a mensagem que o profeta transmite não é dele, mas de quem o envia. Os destinatários da mensagem são os “filhos de Israel”. Os judaítas deportados recebem o título de honra “Israel” e, com isso, a dignidade de “povo de Deus”. Mas esses “filhos” são rebeldes, são “casa rebelde”. O termo “rebeldia” é ambíguo. Rebeldia pode ser algo positivo. O Jó rebelde, p. ex., consegue romper com a ditadura da ideologia da retribuição e, assim, experimentar Deus de maneira bem nova, um Deus que se coloca ao lado da pessoa sofredora. Nos profetas clássicos, a “rebeldia” tornou-se uma chave de leitura de toda a história do povo de Israel com seu Deus (cf. Os 7.13; 8.1; Jr 2.8; 3.13; Ez 16; 20; 23). O termo vem da área da política internacional: rebeldia é a ruptura unilateral e consciente de um acordo entre duas nações. Toda a história de Israel é entendida como “rebeldia” por ter sido, de acordo com os profetas, marcada por uma obstinada oposição ao projeto de Deus. O povo tem um “duro semblante”, um “coração empedernido ou obstinado”, uma “dura cerviz”. Essa dureza revela falta de emoção, incapacidade de sentir empatia e solidariedade.
Na situação de pessoas exiladas, a “obstinação” recebe dupla conotação: de um lado, conscientiza as pessoas de que o exílio não foi mera casualidade, mas provocado pela própria conduta; de outro lado, a obstinação em não querer ouvir o profeta significa não mais acreditar na possibilidade de que Deus possa vir ao encontro de seu povo e mudar a situação de miséria dos exilados. “Casa rebelde” e “casa de Israel” se contrapõem: os escolhidos para serem povo de Deus rejeitam obstinadamente essa oferta. Mas a rejeição da mensagem não é critério para a validade da atuação profética. Mais cedo ou mais tarde, as pessoas reconhecerão sua validade. Os frutos podem demorar.
2.6) Mas tu, filho do homem, não temas diante deles, quando espinhos te cercarem e estiveres sentado sobre escorpiões, não tenhas medo de suas palavras e não te assustes de seu rosto, pois são casa rebelde. 2.7) Mas dirás a eles minhas palavras quer escutem quer não, pois são casa rebelde!”
O profeta é estimulado a não se deixar desanimar diante da oposição que receberá (cf. Jr 1.8). As metáforas para as dificuldades que o aguardam e os inimigos que o cercarão são fortes (“espinhos”, “escorpiões”). Palavras acusadoras e rostos desaprovadores acompanharão a mensagem do profeta. Sem receber nenhuma promessa explícita de ajuda por parte de Deus, o profeta é deixado com a exortação: “Não temas!”.
4.1. Pelo fato de as comunidades terem pouco conhecimento do profeta Ezequiel, julgo oportuno aproveitar as imagens do relato de vocação (Ez 1 – 3) para exemplificar a função de um profeta. A visão do carro da glória do Senhor recebe um significado importante na situação de exilados e na própria compreensão de vocação. O estilo barroco dessa visão mostra como a experiência com Deus transforma mentes. O sacerdote Ezequiel conhecia um Deus que mora no céu, mas se manifesta em sua glória no templo de Jerusalém. Em sua vocação profética, teve que desconstruir seu imaginário teológico para perceber que seu Deus não se prende a nenhum santuário, mas peregrina com sua gente. O sacerdote revive a experiência teológica dos pais e mães de Israel: o Deus dos patriarcas e matriarcas não está preso a um santuário, mas acompanha seu povo em suas migrações e lhes abre perspectivas de um novo futuro. Vocação profética é uma mudança radical de perspectiva.
4.2. Mas, afinal, o que é ser profeta? Temos poucos indivíduos profetas nos tempos atuais. A função profética talvez seja assumida mais por igrejas, grupos ou movimentos. São comunidades, movimentos e pessoas que têm a incômoda tarefa de apontar erros e responsabilidades. São pessoas ou grupos que acentuam o imperativo mais do que o indicativo, que apontam para o Deus da justiça mais do que para o Deus da misericórdia. Por isso os profetas ou movimentos proféticos são geralmente incômodos, mal recebidos, rejeitados e até perseguidos – não só em sua própria casa. Sua mensagem soa, às vezes, demasiadamente parcial, já que não busca acomodar os opostos. Por isso são recebidos com “rebeldia” e obstinação; com indiferença e desprezo. Mas são necessários para que uma sociedade não resvale para o individualismo, a indiferença, a falta de compromisso, a ilusão e a insanidade. É uma rebeldia que não quer ouvir. A rebeldia não é aquela legítima briga com Deus por causa das dores e dos males do mundo. Rebeldia é antes a indiferença “obstinada” de não querer saber de um Deus livre em suas decisões e justo em seu agir. Rebeldia é preferir a versão light de Deus, um Deus domesticado, que afaga o meu ego, mas não se intromete em meus negócios.
4.3. A outra imagem forte é a do rolo engolido pelo profeta. Também ela pode clarear a função do profeta. O rolo repleto de “lamentações, ais e suspiros” é algo marcante. O livro contém as lágrimas de Deus por seu povo rebelde. Deus chora por causa do sofrimento do povo e também por sua indiferença e rebeldia. O fato de o profeta ter que engolir o livro significa que também o profeta compartilha as lágrimas de Deus, também ele sofre pelo povo e com o povo. Não basta que o profeta leia o que está escrito no rolo; a mensagem tem que passar pelos seus intestinos. O amargor da mensagem deve ser sentido nas entranhas do mensageiro de Deus. Diante de Deus, o profeta também carrega a culpa do povo que ele denuncia. Durante 390 dias, ele dorme sobre o lado esquerdo para “carregar” a culpa do Reino do Norte, e 40 dias sobre o lado direito pela culpa do Reino do Sul (Ez 4.4ss). O profeta denuncia, mas, ao mesmo tempo, sofre sob sua denúncia juntamente com a comunidade. A pessoa vocacionada defende Deus diante da comunidade, mas também defende sua comunidade diante de Deus. Essa paixão de Deus que verte lágrimas por nós recebeu, afinal, um nome: Jesus de Nazaré. Esse Jesus teve que comer todos os rolos amargos na cruz para que pudéssemos sentir a doçura de seu perdão.
4.4. Depois de Pentecostes, todas as pessoas cristãs têm a tarefa de profetizar e testemunhar. Não há como furtar-se dessa tarefa. Por isso, muitas vezes, os verdadeiros profetas e as verdadeiras profetisas não são reconhecidos de imediato. Mas a indiferença obstinada com que são recebidos é a mesma. Verdade é que Deus não elimina as adversidades que surgem no caminho das pessoas que ele envia, mas ele as ampara em meio à adversidade. Os espinhos e os escorpiões não vão sumir. Mas a força vital do Espírito fará com que não prevaleçam contra as testemunhas do reino de Deus.
L: Senhor, perdoa nossa indiferença, comodidade e falta de compromisso com tua Palavra, com o chamado que nos diriges de sermos testemunhas de teu amor em meio a ódio, discriminação e egoísmo. Perdoa, quando por teimosia, medo, vergonha ou comodismo, nos afastamos de ti e te negamos como Pedro te negou. Perdoa, Senhor, quando nos omitimos e nos esquivamos de falar a verdade por temor de represálias, e quando não te anunciamos com firmeza e convicção a vinda de teu Reino.
C.: Amém
Intercedemos pelas comunidades, sua liderança, seus ministros e ministras, obreiros e obreiras, a fim de que testemunhem com ousadia tua vontade e tua promessa. Dá-lhes perseverança na tarefa de semear e concede-lhes a alegria da colheita. Intercedemos pelas pessoas que são desprezadas e perseguidas por assumirem a tarefa profética de anunciar um reino de justiça e paz. Anima-as para que não esmoreçam, conforta-as com teu santo Espírito.
Que a paz do Senhor te acompanhe no caminho da vida,
que te dê forças nas lutas diárias que terás,
que essa mesma paz te dê um sono restaurador
e que possas ver em cada amanhecer um sinal do amor de Deus.
Amém.
ZIMMERLI, Walther. Ezechiel. 2. ed. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener, 1979. (BKAT XIII/1).
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).