Proclamar Libertação – Volume: 46
Prédica: Lucas 15.1-10
Leituras: Êxodo 32.7-14 e 1 Timóteo 1.12-17
Autoria: Beatriz Regina Haacke
Data Litúrgica: 14º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 11/09/2022
As três leituras bíblicas para este domingo apontam para a misericórdia de Deus. No Antigo Testamento, a perícope de Êxodo 32.7-14 narra a conversa entre Deus e Moisés após o povo ter feito o bezerro de ouro para adorar. Inicialmente, Deus deseja castigar, descarregar sua ira para acabar com o povo. No entanto, Moisés intercede em favor do povo e Deus muda de ideia. Ele tem misericórdia do povo teimoso e cabeça dura, que se corrompe facilmente.
Já o evangelho traz duas parábolas das coisas perdidas (a ovelha e a moeda), dirigidas aos fariseus e mestres da lei que murmuravam contra Jesus por causa da sua atitude acolhedora em relação às pessoas pecadoras. Tal atitude era reprovada por aqueles que tinham conhecimento das leis de Deus e eram responsáveis por seu ensino e aplicação. Porém Jesus procura mostrar que Deus vai ao encontro justamente daquela pessoa que está perdida e se alegra ao encontrá-la.
E, para completar, em 1 Timóteo 1.12-17, o pior dos pecadores, como Paulo assim se intitula, reconhece em sua vida a graça de Deus, que transbordou em Jesus Cristo. E, de perseguidor, ele passa a pregador. Sua própria história se torna exemplo para seus ouvintes.
Jesus está viajando a caminho de Jerusalém. Durante essa viagem, Lucas registra diversos episódios, iniciando com “certa vez” ou “certa ocasião” (na sinagoga, na casa de um fariseu, na companhia de uma multidão). Em nosso texto, a ocasião é caracterizada pelo fato de Jesus reunir-se com pessoas de má fama (pecadoras) e tomar refeições com elas. Jesus, então, é criticado pelos fariseus e mestres da lei. Diante dessas críticas, ele conta três parábolas.
As parábolas são empregadas por Jesus como ponte de ligação entre a realidade do ser humano e a realidade do reino de Deus. Jesus não apenas fala sobre Deus em suas parábolas. Ele aproxima Deus dos seres humanos, a ponto de estes serem transformados pelo seu encontro com Deus. As parábolas de Lucas 15 poderiam ser chamadas de parábolas das coisas perdidas (a ovelha, a dracma e o filho) e estão conectadas com a própria compreensão de Jesus e seu ministério, conforme Lucas 5.29-32: Não vim chamar justos, e sim pecadores ao arrependimento.
O conjunto de três parábolas do capítulo 15 tem, em sua conclusão, palavras voltadas aos mestres e fariseus que contestavam Jesus (Lc 15.25-32). Nossa perícope abarca as duas primeiras parábolas desse conjunto.
Os publicanos ou cobradores de impostos não eram benquistos, porque costumavam cobrar além do que era justo. Eles também representavam a opressão romana pelo sistema de coleta de impostos. Já as pessoas pecadoras eram aquelas consideradas sem lei. Estavam fora da sociedade israelita, seja por sua conduta, por levar uma vida de vícios, por não observarem todas as regras farisaicas, seja por apresentarem alguma condição que era tida como consequência de pecado (p. ex. deficiências, doenças, possessões).
Às pessoas excluídas Jesus se abre e abre as portas do reino de Deus. A afirmação dos fariseus e escribas de que Jesus comia com essas pessoas denota seu espanto. Participar de uma refeição indicava profunda comunhão e identificação entre as pessoas. O julgamento dos fariseus e escribas demonstra o quanto eles mesmos se consideravam justos e, de forma alguma, pecadores. Ao mesmo tempo, lhes parece que o próprio Jesus é um pecador por misturar-se com tais pessoas. O termo “este” para referir-se a Jesus (este aí recebe os pecadores e come com eles) no v. 2 demonstra seu desprezo.
O tema central dessas duas parábolas é a busca pelo que estava perdido e a alegria do reencontro. Essa alegria não se dá unicamente pelo reencontro com o pastor, mas com todo o rebanho, nem só pelo reencontro com a dona das moedas, mas pelo retorno da moeda perdida ao conjunto das dez moedas. Jesus deixa claro para aqueles que murmuravam sobre ele o porquê de ele ter comunhão com pessoas pecadoras. Elas pertencem a Deus e ao seu rebanho.
Será que alguém, de fato, largaria 99 ovelhas no campo para ir em busca de uma única ovelha que se perdeu? Qual o valor de uma ovelha? Fica claro pela narração de Jesus que uma ovelha representa grande valor. Assim também um pecador arrependido. Tanto ou até mais do que 99 pessoas justas. Ovelhas forneciam carne, lã, pele e também eram usadas como sacrifícios (Ez 34.3). Das ovelhas provém o sustento do pastor e de sua família. Por isso um bom pastor levava a sério o seu trabalho e ia atrás das ovelhas desgarradas (Ez 34.12). O rebanho, novamente completo com o resgate daquela que estava perdida, é motivo de alegria. Essa alegria é comunitária: do pastor, dos seus amigos e vizinhos e até de todo o rebanho, considerando que o povo de Deus é representado por esse rebanho.
A conjunção “ou” no início do versículo 8 conecta as duas parábolas, de maneira que a segunda não apresenta uma nova mensagem, porém sua essência se equipara à da primeira e a reforça. A mulher, assim como o pastor de ovelhas, investe todos os seus esforços para procurar sua moeda perdida. Uma dracma equivalia a um denário, que era o pagamento por um dia de trabalho. Com uma moeda era possível comprar alimento para dois dias, dependendo do tamanho da família.
A mulher trabalhou para receber seu salário. No entanto, vale ressaltar que essa dracma valia ainda mais para ela, pois as diárias das mulheres não tinham o mesmo valor das dos homens, chegando a pouco menos da metade do pagamento que era dado aos homens (SCHOTTROFF, 2007, p. 189). Ela “suou dobrado” para receber aquela moeda. Portanto as dez dracmas correspondiam ao pagamento por mais de vinte dias de trabalho. Assim, fica ainda mais claro o quanto a moeda perdida era importante para o sustento da mulher e de seus dependentes. Uma moeda, num total de dez, representava grande valor. Não pode ser comparado a perder uma moeda de um real, por exemplo.
A fala de Jesus no v. 8 (Ou qual é a mulher […]) pressupõe que haja mulheres no grupo de ouvintes de Jesus. Além disso, Cristo coloca uma figura feminina como personagem principal da parábola, revelando marcas importantes na ação divina: zelo, trabalho, amizade e alegria.
É quase contagiante a alegria da mulher e de suas vizinhas e amigas. Da mesma forma que acontece com a alegria dos homens na parábola da ovelha, aqui também é valorizada a alegria conjunta. Provavelmente não houve festa e banquete, pois as condições não permitiam. Mas certamente houve conversa, comunhão e partilha. Mais uma vez encontrar a que estava perdida foi motivo de alegria para muita gente. Mais uma vez Jesus apresenta a alegria de Deus ao encontrar quem estava perdido. Alegria partilhada é alegria multiplicada. Deus se alegra, os anjos se alegram, nós nos alegramos.
Três verbos se repetem nessas parábolas: perder, achar e alegrar-se. Esses verbos podem formatar a estrutura da pregação. Perder-se ou estar perdido refere-se ao ser humano em sua condição de pessoa pecadora, afastada de Deus e da comunhão com irmãos e irmãs na fé. A ovelha encontrava-se longe do rebanho. Podemos relacioná-la com as pessoas que se encontram afastadas da comunidade ou que não querem saber do evangelho, ou até mesmo que ainda não conhecem a boa-nova. Para os mestres da lei e fariseus, essa ovelha era a pessoa de má fama e o publicano. E para nós, quem são as pessoas que consideramos ovelhas perdidas? Antes de tudo, é necessário reconhecermos que não cabe a nós realizar nenhum tipo de julgamento entre as ovelhas.
Interessante destacar que a moeda estava perdida dentro da casa de sua dona. Assim também há pessoas que se encontram perdidas mesmo que estejam dentro das igrejas. Até mesmo aquela pessoa que se considera uma cristã exemplar pode estar, na verdade, perdida, se ela coloca sua confiança em si mesma. Somos pessoas justas e pecadoras simultaneamente. Facilmente podemos cair na tentação de entender que somos unicamente parte das nove moedas ou das 99 ovelhas (as pessoas justas) que não se perderam. Quando, na verdade, também somos aquele ou aquela perdida que precisa ser achada.
A murmuração não nos torna mais santos e santas. Sobre o que são os nossos murmúrios? Murmúrios ferem e podem facilmente tornar-se violência em nossa sociedade polarizada, que está perdendo a capacidade de dialogar e de sentir compaixão. O desafio, a partir da fé, é acolher assim como Deus nos acolheu, ir ao encontro sem murmurações e com o coração aberto.
Achar é ação divina. O pastor e a mulher que vão em busca das suas coisas perdidas são metáforas para Deus, em sua busca pelo ser humano perdido. É Deus quem acha! Deus nos achou por meio de Jesus, seu Filho, enviado para encontrar o ser humano que está no buraco, no fundo do poço, perdido. Jesus Cristo é o braço estendido de Deus que apanha a moeda caída, é o bom pastor que traz a ovelha de volta para casa. Em Cristo, Deus demonstra atenção para com cada ovelha e cuidado para com todo o rebanho.
Sua vida, morte e ressurreição reconciliaram-nos com Deus e também com as outras pessoas. Deus realiza a ação de achar a pessoa perdida por meio da sua igreja, da pregação da palavra, dos sacramentos, da diaconia e da evangelização. Somos ovelhas que podem participar da busca. Somos moedas que atraem a que está perdida.
Já o verbo alegrar-se está relacionado à alegria celeste, de Deus e de seus anjos, porém também podemos compreendê-la como uma alegria coletiva estendida a nós. O contraste entre os números um e 99, bem como a conduta do pastor de deixar as 99 para ir em busca de uma perdida são empregados por Jesus para expressar a dor da perda – tão grande que mobiliza uma busca – e a alegria pelo reencontro – tão expressiva que se estende aos amigos e vizinhos (SCHNELLE, 2010, p. 123). Os termos gregos para o verbo alegrar-se trazem consigo o prefixo syn, indicando o caráter comunitário da alegria. É um convite para alegrar-se em conjunto. Deus se alegra por resgatar quem estava perdido e estende o convite para nos alegrarmos com ele.
Trata-se de uma alegria de caráter escatológico, pois aponta para a realidade na plenitude do reino de Deus. Todavia, já é também alegria experimentada aqui. Felicidade e alegria já agora, mesmo em meio à dura realidade. Que alegria saber que Deus acolhe todas as pessoas em seu rebanho! Que alegria saber que todas as pessoas são de grande valor para Deus. Deus vai reunir todo o seu povo, as pessoas perdidas e justas. Essa grande festa não será lugar para o ser humano julgar quem merece ou não estar ali, qual pessoa é digna ou não. Pelo contrário, será lugar de uma grande alegria para todos.
A parábola que vem em sequência, nos versículos 11-32, fecha esse bloco também narrando uma festa. E assim Jesus mais uma vez ressalta a alegria do Pai pelo retorno daquele que estava perdido. Mais uma vez a festa é comunitária e o convite está aberto. Se é convite, há a opção de participar da festa ou não. O que iremos escolher? Não somos todas nós também pessoas pecadoras que foram recebidas pelo Deus amoroso e gracioso? Vamos colocar-nos entre o grupo dos que murmuram e julgam, que reclamam e excluem? Ou nos deixaremos contagiar pela alegria do Reino, alegria conjunta pela salvação e pela comunhão proporcionadas por Jesus?
Para ler ou encenar pela pregadora (se for uma mulher) ou por uma mulher da comunidade ou ainda gravar e transmitir no culto:
Alegrem-se comigo!
Amigas, venham! Alegrem-se comigo! Entrem e vamos conversar!
Eu já vou contar o motivo de tanta alegria: lembram como ontem vocês me viram aflita? Pois eu estava com um peso enorme sobre os ombros.
Vocês sabem o quanto cada uma aqui trabalha duro. As coisas não estão fáceis para nenhuma de nós e colocar o pão na mesa de nossas crianças é nossa maior preocupação. Nem sempre nosso trabalho tem pagamento justo. Nem sempre conseguimos trabalho todos os dias. Quem é diarista como eu sabe bem como é!
Imaginem como é perder uma parte desse salário! Foi o que me aconteceu. Quando fui pegar as dez moedas que recebi neste mês e que havia guardado na minha carteira, adivinhem! Apenas nove estavam lá! Onde estaria a décima moeda? Será que perdi na rua? Será que fui roubada? Não me lembro de ter tirado nenhuma delas daqui! Só pode ter caído em algum canto da casa.
Procurei em todos os lugares, dentro do armário, no bolso do casaco. Varri toda a casa. E nada de encontrá-la. Já era tarde, mas antes de pensar em desistir, acendi uma lamparina e achei a moeda que faltava! Ela estava embaixo da cama! No fim das contas, ela nem estava tão longe assim das demais. Apenas escondida, perdida por um momento.
Há quem pense que era só uma moedinha. Mas vocês sabem que não! Vocês compreendem o valor de cada moeda para mim, o quanto cada uma significa.
Ah, minhas amigas! Que bom compartilhar essa alegria com vocês! Sei que vocês me entendem e sua companhia neste momento me deixa ainda mais contente!
Sabem, estive pensando sobre isso ontem à noite, depois que encontrei minha moeda perdida: assim também é Deus! Ele sente uma alegria imensa quando uma pessoa se arrepende dos seus pecados.
Oração do dia: Deus de amor e bondade. Em tua graça infinita, acolhes cada pessoa, ainda que sejamos orgulhosas, desobedientes, egoístas, fracas na fé e no amor. Tu nos acolhes e nos perdoas sem que o mereçamos. Envia a nós o teu Espírito Santo, para tornar nossos ouvidos abertos à tua Palavra, nossa mente despojada de nossos preconceitos, nossos corações dispostos à alegria e à comunhão. Em nome de Jesus Cristo, que vive e reina, e na unidade do Espírito Santo é que te pedimos. Amém.
Sugestão de hinos: Corações em fé unidos (LCI 13); Sou cordeiro de Jesus (LCI 600); Meu bom pastor (LCI 619); Alegrai-vos sempre no Senhor (LCI 153); Ensina-nos, Senhor (LCI 112).
SCHNELLE, Udo. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2010.
SCHOTTROFF, Luise. As parábolas de Jesus: uma nova hermenêutica. São Leopoldo: Sinodal, 2007.
Proclamar libertação (PL) é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).