Proclamar Libertação – Volume 47
Prédica: Números 11.24-30
Leituras: João 20.19-23 e 1 Coríntios 12.3b-13
Autoria: Alberi Neumann, Paulo Sergio Macedo dos Santos
Data Litúrgica: Domingo de Pentecostes
Data da Pregação: 28/05/2023
O livro de Números é o quarto livro do conjunto da Torá, não devendo ser considerado como uma obra isolada. Ele tem similaridades com narrativas contidas nos livros de Gênesis, Êxodo e Levítico, e prepara para o desfecho da história de Moisés, que se dará em Deuteronômio.
O nome atribuído ao livro se justifica pelo censo mencionado no início dele (Nm 1.20-54). No hebraico, é chamado “No deserto”, que constitui o ambiente no qual as narrativas são situadas. São três os desertos citados: Sinai (Nm 1.1), Farã (Nm 10.12) e as planícies de Moabe (Nm 22.1; 36.13). As narrativas tratam do período da história em que Israel recebe a Lei, indicando que, para ocupar a terra prometida, os princípios e as atitudes de comportamento são condições prévias para a posse e o desfrute dela. A condição de escritos de deserto é determinante para a compreensão das narrativas constantes no livro de Números. Deserto é aqui entendido também como espaço de desterro e de reflexão.
conjunto de textos pode ser dividido em três partes:
a) A primeira parte inicia-se nas proximidades do Sinai (Nm 1.1 – 10.10), onde o recenseamento e a organização do acampamento sugerem a estruturação de uma hierarquia sacerdotal.
b) A segunda parte (Nm 10.11 – 36) inicia-se com a saída do Sinai até o deserto de Farã, uma jornada de três dias, com a nuvem de Javé guiando o povo, entre os murmúrios do povo que contestam a liderança de Moisés. Este envia espiões para explorar a terra e, por causa da fraqueza desses, com exceção de Calebe e de Josué, o povo se revolta e atrai a ira de Javé, que pune essa geração com a permanência de quarenta anos no deserto, indicando que ela não entrará na terra prometida (Nm 14). A segunda parte encerra-se com o povo em Cades, onde Miriam é sepultada, e com o episódio das águas de Meribá, em que Moisés e Aarão são punidos.
c) A terceira e última parte traz questões que dizem respeito à terra e que serão essenciais nesse último bloco. A expansão de limites com as tomadas de Horma e da Transjordânia, bem como a definição desses limites, caminham ao lado de regras que observam o uso da terra. Estão presentes o direito a herdar as terras pelas mulheres (Nm 27), o voto feminino (Nm 30) e a partilha dos despojos da guerra (Nm 31 – 32). Nesse último bloco, também se configura a liderança de Josué como sucessor de Moisés.
A perícope de Números 11.24-30 consta no segundo bloco do livro e mostra o contexto em que Israel inicia a segunda etapa da marcha pelo deserto rumo às fronteiras de Canaã.
Ela está inserida na jornada que narra a caminhada rumo à terra prometida, em que carregam a arca da aliança e sob a presença da nuvem de Javé, que pairava sobre o povo com a função de orientá-lo nas partidas e nas chegadas. Podemos delimitar a narrativa da seguinte forma:
O versículo 11.23 delimita o início da perícope em questão pelo enredo da narrativa e também pelo tema. Nota-se, nos v. 11-23, um diálogo entre Moisés e Javé. Moisés se queixa do peso de liderar o povo, pois não sabe de onde tirará carne para dar de comer a ele (v. 11-14), e também apresenta certa dúvida quanto à intervenção de Javé (v. 21-22). Por sua vez, Javé promete a Moisés que o peso da liderança será dividido com os setenta anciãos e que dará carne ao povo, e convida-o a confiar na sua palavra (v. 16-20, 23). A mudança da narrativa se dá a partir do v. 24, quando o termo “saiu” tem a posição de mudança de tema dando início ao tema dos setenta anciãos.
Números 11.24-30 possui duas subdivisões: a primeira compreende os v. 24-25, e a segunda, os v. 26-29, tendo o v. 30 como conclusão.
As ações de Moisés são essenciais para a compreensão do texto: saiu (v. 24a), falou (v. 24b), reuniu (v. 24c) e colocou (v. 24d). O v. 25 indica outras ações: retirou, falou, desceu e pôs. Esses dois versículos introdutórios cumprem o que foi anunciado nos v. 16-17. A partir das ações de Moisés, o texto descreve as consequências das ações de Javé, o repouso sobre os setenta anciãos e o dom de profetizarem. Os v. 26-29 iniciam outra subseção com os personagens Eldade e Medade. Esses estavam entre os inscritos para irem à tenda, mas, mesmo não indo, profetizaram no acampamento. Tal situação causou uma agitação no acampamento, e um jovem correu para comunicar a Moisés o que havia acontecido com Eldade e Medade (v. 27). Josué, ao ouvir o fato, sente ciúmes e pede a Moisés que os impeça (v. 28). A história se encaminha para seu desfecho com a advertência de Moisés a Josué por causa dos ciúmes dele (v. 29b) e com o desejo de Moisés de que todo o povo o receba e se torne profeta. O v. 30 encerra a perícope relatando que Moisés e os setenta anciãos se retiraram da tenda, retornando para o acampamento.
O centro de preocupação da perícope de Números 11.24-30 é oferecer uma palavra desafiadora: vencer os ciúmes nas relações humanas por meio da partilha dos dons, da descentralização de poder, apostando na sinergia e na cooperação dos muitos saberes. Na narrativa, Moisés compartilha o dom de sua liderança com os setenta anciãos e não se sente ameaçado com o profetismo de Eldade e Medade, pois não se deixa “contaminar” com o ciúme de Josué. A partilha não fragilizou nem diminuiu a liderança de Moisés, pelo contrário, revelou a sua habilidade e sabedoria em envolver mais pessoas, que, capacitadas pela rûaḥ (Espírito) de Deus, foram reconhecidas como importantes cooperadoras. Assim, as pessoas são chamadas a deixar de lado as disputas pelo poder, as hierarquias, as vaidades de se considerarem mais íntimas de Deus, e ampliar a sua ação e visão agindo como Moisés, valorizando a sinergia, a cooperação de outros saberes, o trabalho em equipe, a liderança democrática e compartilhada.
O texto propõe que a pessoa cristã tome maior consciência de sua vocação profética que recebeu em seu batismo. Isso significa denunciar as injustiças e o ódio e anunciar a justiça e a paz. Assim como Moisés desejou que todo o Israel se tornasse profeta (v. 29), o batismo nos vocaciona como povo profético da nova aliança. Dessa forma, cada pessoa cristã é convidada a viver o seu profetismo, não de maneira extática, tampouco como adivinho do futuro, mas sim na experiência viva do Evangelho. Agindo, orando e meditando-a, com ouvidos de profeta, para anunciar uma palavra de vida e esperança para a sociedade, principalmente para os que vivem às suas margens. Num mundo dividido e ameaçado pelas desavenças, o texto de Números 11.24-30 tem uma palavra provocativa, pois mostra, na soberana liberdade proposta por Deus, um ir além das estruturas eclesiásticas, fora de templos e igrejas, assim como na narrativa de Eldade e Medade (v. 26).
Seguir esse chamado proposto pelo texto é desejar que cada pessoa cristã seja uma emissária da mensagem proposta por Cristo. É buscar ser uma igreja que não se apequena em seus templos e não cristaliza em seus dogmas, mas que se preocupa com a oikumene, com a casa comum, com a criação como um todo. Deus não limita sua manifestação a espaços predeterminados pelo ser humano. Ele se manifesta nos encontros do povo de fé. Urge sermos uma igreja que dialogue cada vez mais com o mundo, com outros saberes e com outras religiões.
Consciente de seu papel profético, a igreja é chamada a ser uma igreja “em saída”, em caminhada, construtora de pontes, descentralizadora, diaconal, envolvente, que convida pessoas para compor um grande mutirão pela vida, valorizando os diferentes saberes, respeitando a diversidade, a pluralidade religiosa e promovendo a paz, a justiça e o amor na sociedade. A igreja é chamada a ter o seu júbilo no anúncio da palavra de vida para o mundo conectada com as demandas sociais, que busca a sua transformação, que articula bem a relação entre fé e vida,
que não atua nos limites dos seus templos.
Hinos: LCI 605 – Deus chama a gente pr’um momento novo – Momento novo; LCI 566 – Que estou fazendo?; LCI 25 – Quando o povo se reúne; LCI 56 – Pelas dores deste mundo, ó Senhor.
ANDRADE, Carlos Alberto Mesquita de. A rûaḥ YHWH: análise exegética de Nm 11.24-30. 2020. 103 p. Dissertação (Mestrado) – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.
SKA, J. L. Introdução à leitura do Pentateuco: chaves para interpretação dos cinco primeiros livros da Bíblia. São Paulo: Loyola, 2003.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).