Proclamar Libertação – Volume 47
Prédica: Gênesis 2.15-17; 3.1-7
Leituras: Mateus 4.1-11; Romanos 5.12-19
Autoria: Teobaldo Witter
Data Litúrgica: 1° Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 26/02/2023
O ano litúrgico nos insere no tempo na Quaresma. Do total de cinco, hoje é o primeiro Domingo na Quaresma. Os três textos bíblicos indicados partem da boa criação divina, atravessam pela destruição provocada pelo ser humano, conforme os textos de Gênesis. Apresentam a boa criação: Deus colocou o ser humano em sua boa criação para que a cuidasse e cultivasse. No entanto, houve desconfiança por parte do ser humano. A serpente é instrumento de sabotagem do sistema de vida digna pertinente ao ato de criação divina. Neste sentido, os textos das leituras são emblemáticos. Em Mateus 4.1-11, Jesus se encontra em tempos difíceis, de sofrimento, fome, dúvidas. Entra em cena outro personagem (tentador, v. 33; diabo, v. 5 e v. 8; satanás, v. 10). Parece ser sempre o mesmo personagem. Apesar de aqui não ser mencionada a serpente, a argumentação é idêntica nos dois casos. Mas as posturas são diferentes. No primeiro caso, o ser humano (mulher) permite ceder às argumentações da serpente. Com isso, o caos se instala. No segundo caso, Jesus Cristo não cede. Por isso é servido por anjos. Romanos 5.12-19, em resumo, expressa a condição humana e a generosidade de Deus, que nos oferece a nova oportunidade de amor, que se efetiva em Jesus Cristo, o novo Adão. Portanto, assim como uma só desobediência resultou na condenação de todos os seres humanos, assim também um só ato de justiça resultou na justificação que traz vida (Rm 5.18). Pela desobediência de Adão e Eva, a humanidade se fez pecadora, assim também por meio da obediência de Jesus Cristo muitos serão feitos justos. Agora, a misericórdia divina é o principal valor fundante do governo de Deus. No tempo na Quaresma, consideramos importante meditar sobre a trajetória humana a partir dos relatos da inserção na criação e da misericórdia divina. Portanto os textos nos confrontam com dois mundos, dois governos: o governo de Adão, seduzido pela serpente, fora do paraíso (o velho Adão e velha Eva), que nos faz seres pecadores pela desobediência; e o governo de Jesus Cristo (o novo Adão), o Justo, que nos liberta por sua obediência e nos leva de volta para a casa do Pai.
O texto indicado para a pregação, segundo estudiosos críticos, faz parte do conjunto conhecido por narrativa da criação, atribuída a tradições javistas (do hebraico Yahweh). Moldura do bloco é Gênesis 2.4b – 3.24, cuja composição aconteceu entre 960-930 a. C. Se esse for o caso, seria no tempo do reinado de Salomão. Em 1938, Gerhard von Rad colocou o javista na corte de Salomão (ano 950 a. C.). Argumentou que seu propósito ao escrever era fornecer uma justificativa teológica para o estado unificado criado pelo pai de Salomão, o rei Davi. Quanto à datação, há controvérsias. Alguns estudiosos suspeitam de sua existência e datam sua composição para o período do cativeiro babilônico (597-539 a. C.) u talvez um pouco mais tarde. Mas, seja como for, tratava-se de um escritor que contava com o apoio real, e sua narrativa exaltava a epopeia do reinado a partir da visão de Judá. O conhecimento constitui uma exclusividade de Deus, que teria sido usurpado pelo ser humano. O Sitz im Leben (lugar vivencial do texto) seria o reinado. Na época, os jardins enormes e bonitos dos palácios estavam na onda e eram muito valorizados. As princesas, por sua vez, bonitas e charmosas, serviam de objetos de negócios e barganhas dos reis.
Gênesis 2.15: E tomou o Senhor Deus o homem, e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e o guardar.
As sagas da criação em Gênesis 1 e 2, em duas versões, narram atos divinos extraordinários. A terra era sem forma, vazia, dominada por trevas sob a face do abismo (Gn 1.1) isto é, do caos. Deus, por sua palavra e atos, criou vida e as melhores condições para que ela fosse possível ser vivida com dignidade e respeito. A raça humana ganhou a missão de continuar a sinergia na criação.
Após a criação do ser humano do pó da terra (2.7), de ter formado um jardim do Éden entre quatro rios, com árvores de todo tipo, frutas boas para se comer e do conhecimento do bem e do mal (v. 2, 8-14), Deus colocou o ser humano para administrar, cultivar e cuidar. Éden está relacionado, originalmente, a uma área de abundância e riqueza de provimentos. Também hoje, segundo a cultura popular, no Éden se encontra tudo o que é bom, desde alimentos à vontade e demais elementos para a vida. É o paraíso, não tem nada melhor. Perfeito, é o lugar ideal. Pela descrição, o Éden é uma planície localizado entre os rios Tigre e Eufrates, com muitos canais e fluxos de água abundante. Tem abundância de mantimentos e demais condições de vida abundante.
Gênesis 2.16: E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente.
Após incluir a humanidade na sua criação, de forma contundente, Deus toma as providências para que o caos não retorne (Gn 1.1). Atribui ao ser humano a prática agrícola de semear, cuidar e preservar o jardim. Permite a liberdade de se relacionar bem e se alimentar abundantemente dos frutos da terra. Parece o sonho humano de viver em plena segurança alimentar, sem escassez e sem especulação financeira, com a produção de alimentos. Todos tinham o suficiente para viver com dignidade.
Gênesis 2.17: Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.
No versículo 9b, o texto menciona que, no meio do jardim, havia uma “árvore da vida”. Não é somente o javista que se refere a uma árvore da vida. A árvore da vida é um símbolo que atravessa gerações. Em diversas e antigas culturas ocidentais, como celtas, gregos, romanos, persas, até culturas orientais, como a chinesa e a japonesa, a narrativa literária a registra. A expressão “árvore da vida” provoca imaginações diversas em diferentes culturas, áreas de conhecimento como a religião, psicologia, sociologia, economia, filosofia, astrologia, yoga, cabala e outros. E tem seus significados próprios. A árvore da vida tem múltiplas ramificações. O símbolo da árvore da vida é uma metáfora de expansão, de edificação e crescimento dos seres. Pode ser como uma fonte da vida, generosidade e gratidão, sendo fonte que alimenta a vida.
A árvore perpassa a Bíblia do início ao fim. O Apocalipse de João retoma o assunto e faz referência à árvore da vida. No meio da sua praça, e de ambos os lados do rio, estava a árvore da vida, que produz doze frutos, dando seu fruto de mês em mês; e as folhas da árvore são para a cura dos povos (Ap 22.2). No Reino de Deus (na Nova Jerusalém), no projeto divino, está a árvore da vida, que tem frutos que alimentam, em todo tempo, e tem folhas que curam todos os povos.
No versículo 9c, de Gênesis 2, o texto narra que tem uma árvore do conhecimento do bem e do mal. Quando Javé apresenta o jardim aos humanos, simplesmente menciona que há essa árvore. Ao apresentar a árvore do conhecimento o bem e do mal, nesse passeio pelo jardim, Deus apresenta a árvore, nada mais. Não há menção a problemas.
Gênesis 2.17: Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.
Agora, sim, tem problemas. Dentro de toda boniteza e fartura no Éden, está uma árvore do conhecimento do bem e do mal. Em relação a essa árvore está o mandamento divino de não comer dela. Tem limites. As lutas justas pela vida digna contam com limites. A literatura traz poucos registros a respeito dessa árvore do conhecimento do bem e do mal. É entendimento pertinente que há um problema humano no sentido de fidelidade no cuidado na vida no jardim. O texto está conectado ao mandamento: não comerás. Alerta: “Se dele comeres, morrerás”. A proposição não pode ser refutada, questionada. O que está proposto pelo criador não se pode refutar, discutir, colocar em causa. É irrefutável. A fórmula utilizada pelo texto corresponde à mesma dos mandamentos, por exemplo, Êxodo 20.1-17. A redação é comum nos textos apodíticos. Para Garin (2011, p. 3): “Essa ordem vem acompanhada de outra fórmula: a condicionante da desobediência no dia em que dela comeres, certamente morrerás. É perceptível a força da palavra divina que ordena e não permite questionamentos”. O projeto divino da criação não pode ser mudado na sua raiz, porque se mudar, morre. Nesse projeto da boa criação (Gn 1.31) divina não há esculhambação. Se houver, será o caos (Gn 1.1). Em semelhança, pode-se afirmar: para viver com dignidade não pode haver desobediência.
Gênesis 3.1: Mas a serpente, mais sagaz que todos os animais selváticos que o Senhor Deus tinha feito, disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim?
Três elementos que estão na composição desse texto são significativos lembrar: a serpente, o jardim e a humanidade. A serpente faz parte da tradição de Israel e é mencionada em diferentes contextos, mas também em diferentes culturas religiosas, políticas, sociais, econômicas. Não podemos esquecer que a serpente é o símbolo do poder do Faraó, o poder da maior potência mundial da época. Os reis Davi e Salomão, entre outros, alimentam-se da fonte de sabedoria e do poder egípcio. O jardim faz parte do território do palácio. E as princesas são importantes para assegurar o poder do rei. A monarquia de Israel cedeu aos encantos dos grandes impérios da época. Nesse contexto é que se realiza a idolatria da monarquia em Israel. A acumulação da terra, as guerras com os povos, vizinhança, expansão do território, a exploração do próprio povo.
Gênesis 3.2-3: Respondeu-lhe a mulher: Do fruto das árvores do jardim podemos comer, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Dele não comereis, nem tocareis nele, para que não morrais.
Não houve contestação por parte da mulher, nem defesa contundente do projeto da criação, mas disposição para dialogar. Deus é a medida de todas as coisas. Comer do fruto da árvore que está no meio do jardim significa usurpar a ordem da criação. Não se cogita isso.
A mulher, ao responder a indagação da serpente, repete a ordem que Deus havia dado ao casal, além de reforçar e ampliar a proibição que Deus fez em Gênesis 2.17: nem tocareis nele (fruto). Ela amplia a dimensão da proibição. Percebe Deus como aquele que dá uma proibição, empurrando para o valor menos importante o aspecto da promessa. A narrativa humana cria condições para que a serpente construa a sua interpretação e argumentação da ordem de proibição, negativamente. Afinal, “Deus só proíbe”. E o faz para enganar vocês. Essa é uma conclusão possível.
Gênesis 3.4-5: Então, a serpente disse à mulher: É certo que não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal.
Com sábia estratégia de comunicação e de convencimento, a serpente, esperta, sedutora, sagaz, sem agredir, contra-argumenta. Ela inicia sua fala pelo final da afirmação da mulher: É certo que não morrereis. Vocês estão sendo enganados. Deus tem algo muito importante que ele esconde de vocês. Dessa forma, a serpente cancela a afirmação de Deus, em Gênesis 2.17. E coloca dúvida no raciocínio da mulher. Essa semente da dúvida nasce e cresce. Para Garin (2011, p. 3), pode-se perceber que, tanto no discurso de Deus como no da serpente, há um jogo de sentido entre a morte “mediata” e morte “imediata” (3.6 e 3.19). A certeza dada pela serpente de que o casal não morreria não se efetiva (22-24). Entretanto, agindo dessa forma, a serpente coloca sob suspeita a ordem de Deus, afasta o respeito provocado pela ameaça e prepara o caminho para a satisfação do desejo, pois coloca no seu raciocínio a possibilidade de conhecer o bem e o mal. Além dessa possibilidade, a serpente desperta na mulher o desejo de ser deus, viver eternamente. Os grandes impérios precisam dessa desobediência para garantir o poder em outra ordem: o rei conhece, manda e exige obediência.
Essa medida quer considerar que o ser humano deseja agir no mesmo nível de Deus no cenário do conhecimento. Dessa forma, a serpente nivela-se a Deus ao demonstrar que sabe tanto quanto ele sobre o certo e o errado. Essa narrativa está presente também em mitos de outras culturas, como no caso do mito de Prometeu, na Grécia.
Gênesis 3.5: Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal.
O bote, o lance fatal da serpente: Deus está enganando vocês. Deus tem estratégia que não revelou para vocês. A serpente semeou a desconfiança. Ser conhecedor do bem e do mal significa, nesse contexto, ser deus. A serpente prega o golpe, a usurpação contra Deus. O projeto da serpente é projeto idólatra. Estão conjugados egoísmo, idolatria e desconfiança em relação a Deus e ao projeto da criação divina.
Gênesis 3.6: Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu e deu também ao marido, e ele comeu.
Em sua tomada de decisão, a mulher é seduzida pela serpente para fundamentar sua visão de que a árvore era boa para se comer e seu fruto era agradável. Em segundo lugar, pela beleza da árvore, que era agradável à vista. Esses dois atributos correspondiam às outras árvores do Éden (2.9; 3.2). Para Garin (2011, p. 3), o terceiro argumento distingue-a das demais árvores do Éden: desejável para dar entendimento. Assim, a serpente argumenta com a visão (agradável à vista), o sabor (frutos bons) e o entendimento (ética). O processo de autoconvencimento, que a leva a uma dupla decisão: comer e dar ao companheiro. Os dois primeiros argumentos são construídos pela própria mulher – são autoconvencimento. Porém o terceiro é o argumento construído pela serpente e destina-se ao desejo humano. Outro aspecto que chama a atenção é que na narrativa não aparece qualquer menção ao diálogo travado entre homem e mulher. Garin (2011, p. 3) entende ser estranho que a decisão dela (mulher) representa a decisão dele (homem). Esse silêncio da narrativa pode estar associado ao fato de que 3.1-6 seja a continuação de 2.17, material proveniente de outra fonte.
Gênesis 3.7: Abriram-se, então, os olhos de ambos; e, percebendo que estavam nus, coseram folhas de figueira e fizeram cintas para si.
Consequência da ação de comer do fruto efetiva-se como estava descrito em 3.5b: abriram-se, então, os olhos de ambos, e o resultado não tem a ver com a alerta divina de Gênesis 2.17: certamente morrerás, nem com o restante da promessa da serpente em 3.5b: sereis conhecedores do bem e do mal. Ao contrário disso, descobrem a própria nudez. Porém o v. 22 relata a aquisição desse conhecimento, que deveria estar em 3.7. A narrativa parece localizar na constatação da nudez a aquisição do conhecimento ético, visto que, em 3.8, a narrativa apresenta a capacidade de distinção entre o certo e o errado. Para Garin (2011, p. 4), tudo isso aponta para a possibilidade dessa narrativa focar uma explicação etiológica da vestimenta humana, mas isso é desmontado pelo v. 21: Fez Deus vestimenta de pele para Adão e sua mulher e os vestiu. Outro elemento estranho é que a nudez descrita em 2.25 constituía um elemento importante de aproximação entre homem e mulher, de tal sorte que constituía sua intimidade. Agora, no v. 7, a nudez passa a ser um elemento que afasta um do outro, a tal ponto que fazem disfarces para cobrir-se. A nudez parece não ser o problema, mas a desconfiança construída pela serpente e que, agora, faz parte das relações com Deus e entre os humanos. Não apenas separa o casal, como separa ambos da companhia divina, conforme v. 10. É importante notar que o conjunto 3.1-7 não inclui Deus em nenhum momento; aparece apenas em 3.1, na boca do narrador.
1. Cultura religiosa: Fui ao Sul do Pará, seguindo pela BR 163. Próximo à divisa entre MT e PA, na época, havia grandes florestas, rios e igarapés. No rio Braço Sul, havia alguns posseiros que ocupavam uma pequena área e possuíam suas lavouras. Não era expressivo. Tudo feito com machado, foice, facão e serrote. Como saí de madrugada de casa, em Sinop, cheguei ao local ainda antes do almoço, aí pelas 10h. Depois do culto, alguns homens vieram conversar comigo. Cobraram, porque não mencionei o “fruto da forquilha” que Eva deu para Adão. Não entendi imediatamente, mas um deles fez o gesto de que estavam se referindo ao ato sexual entre os humanos. Minha argumentação foi que essa narrativa não é pertinente ao texto (Gn 3.1-7). Não chegamos bem a um consenso. Os homens possuíam vários argumentos a favor deles. Mas dialogamos em “alto nível”. Depois de um tempo razoável de discussão e reflexão, inclusive durante o almoço comunitário debaixo das árvores, concluímos temporariamente o tema. Depois disso, um dos homens disse: Agora o senhor pode continuar com a pregação. O significado dessa sua conclusão e afirmativa é que até aquele momento ele estava procurando somente o “fruto da forquilha” na mensagem. Tudo o que foi ensinado até então ele simplesmente não captou.
O tema suscitado pelos textos esbarra em conclusões fechadas e sedimentadas na cultura popular religiosa. A pregação deve contar com essa realidade. No caso por mim enfrentado, eu voltei a pregar e dialogar em outros momentos com base no texto em questão. Sugiro que quem ensina/prega a partir desse texto verifique o contexto cultural religioso da comunidade. E procure seu jeito para que a pregação encontre corações mais leves e livres de conceitos que atrapalhem.
2. Desobediência/obediência: O texto escolhido para pregação está carregado de significados. Por isso é importante estudar sobre significados e pensamentos gerais que são transmitidos pela cultura. O mesmo se pode afirmar sobre o evangelho. Mateus 4.1-11 contém elementos bem conhecidos. E metem medo: tentador, diabo, satanás. Há, ainda, o ambiente da sedução, debate. Enquanto que a discussão em Gênesis 3 era, de maneira geral, sobre conhecimento do bem e do mal, os temas são atuais como fome, pão, pedras, anjos, poder, arriscar a vida. Mas tem muito em comum como, por exemplo, desobediência, tornar-se poderoso, ser dono do próprio negócio. Nos dois casos, são apresentados projetos alternativos ao Reino de Deus. A resposta à sedução da serpente foi dada pelos seres humanos, inclusive nós. Caímos para valer. A resposta à sedução do tentador, diabo, satanás foi dada por Jesus Cristo. Venceu, assim como venceu a morte. O velho Adão cedeu, caiu e continua caindo. O novo Adão foi simples e radical: “somente a teu Deus prestarás culto”. Romanos 5.19 conclui que pela desobediência de um só homem (Adão: nós, humanidade) muitos se tornaram pecadores, assim, também, pela obediência de um só homem (Jesus Cristo) muitos se tornarão justos.
3. Cancelamento do Éden: O projeto de vida digna para o ser humano e a natureza foi pensado e criado por Deus. Estava perfeito. Era o paraíso, ou seja, lugar, território de bem-aventurança e plena felicidade. Deus, o Criador, estabeleceu alguns limites para que a vida funcionasse como pensado em seu princípio. Isso exige fidelidade ao princípio de não comer dos frutos da árvore que está no meio do Éden. Mas o ser humano entra em cena e confronta-se com um projeto diferente daquele traçado por Javé. Está aí a novidade: o projeto da serpente. Faz parte da criação divina. Ela é personagem estranha, mas conhecida do ser humano. Ela se apresenta para cancelar a ordem do Criador. Esse versículo está diretamente relacionado a 2.16-17 ao recuperar os “mandamentos” ali declarados. Nessa narrativa, a serpente apenas relembra as instruções dadas por Deus. Portanto ela conhece o texto sagrado e faz uso dele para seduzir, enganar e transformar os termos dos valores. A serpente faz parte da tradição de Israel e é mencionada em diferentes contextos. Nos textos das Escrituras ela é mencionada mais de vinte vezes. Mas também em diferentes culturas religiosas, políticas, sociais, econômicas ela não é apenas um animal ágil, prudente, sagaz, esperta, de sentidos aguçados. Sua imagem é símbolo de poder, glória e honra. A serpente é o símbolo do poder do soberano do Egito, Faraó, a maior potência mundial da época. Os reis Davi e Salomão, entre outros, alimentam-se da fonte de sabedoria e poder egípcio. O jardim faz parte do território do palácio. E as princesas representam um sentido de sedução, no jardim. São importantes para assegurar o poder do rei. A monarquia de Israel cedeu aos encantos dos grandes impérios da época. A humanidade, representada em Adão e Eva, cedeu às palavras, às melodias e aos encantos da serpente e dos impérios.
4. Gabinete paralelo: A serpente montou um gabinete paralelo no governo de Deus. Esse gabinete cresceu e criou suas próprias estratégias para impor seus interesses. A argumentação para o convencimento envolve o belo, agradável e desejável. De qualquer forma, Eva e Adão se deixaram convencer pela serpente, que apresentou a tese sobre Deus que teria suas estratégias e mantém oculto o que há de melhor. E não permite que eles tenham parte plena no reino divino. De qualquer forma, eles têm tudo, mas querem mais. O que querem não são direitos à vida, direitos humanos, mas privilégios de dominar, de explorar, de ser deus, de ter todo domínio sobre a natureza. Quando conseguiram, se tornaram seres naturais, sem condições de viverem no paraíso de Deus. E veio a condição humana que exige atividades próprias: a vida biológica, a mundanidade, a natalidade, a mortalidade, o condicionamento e o cuidado. O campo de luta, que seria batalha pelo conhecimento do bem e do mal e se tornar deus, não deu certo. Contudo, Deus permitiu que o ser humano tivesse continuidade. O conhecimento, nessa realidade pós-serpente, significa a capacidade humana de entender, apreender e compreender as coisas e viver na realidade de conflitos, de morte e de vida. Para Arendt, “o conhecimento é capacidade humana de apreender algo. A partir do que for apreendido, pode criar as condições de vida. O homem quando nasce precisa de cuidados, precisa aprender e apreender, para sobreviver”. Portanto as condições humanas são as condições nas quais a vida é dada ao ser humano na Terra, e cada uma gera e exige atividades próprias. Tocar a vida excluída do Éden significa vida natural, sujeita às leis da natureza. Por vida natural, a Confissão de Augsburgo exclui Jesus Cristo (Nota 12 do Artigo 2: Do pecado original). Desse abismo ninguém sai sozinho, nem por forças humanas ou da natureza, somente pela ação na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, mediante o Batismo e o Espírito Santo. Portanto o gabinete paralelo da serpente deu golpe em Deus e jogou a humanidade no abismo da morte e do sofrimento.
5. Confiança: O texto não tem nenhum fundamento para ser pensado e interpretado como texto do “fruto da forquilha”. Mas, sim, a confiança em Deus que proporciona sua criação de vida digna. A confiança é necessária e fundamental em todas as relações. Não há relações livres se não forem construídas com base na confiança. O verbo confiar tem origem no latim confidere, que significa “acreditar plenamente, com firmeza”. O sufixo “fidere” significa fé, por isso a palavra confiar é usada, também, como sinônimo de fé. A palavra fé tem origem no grego pistis, que indica a noção de acreditar e no latim, fides, que remete a uma atitude de fidelidade. No Éden, Deus criou todas as coisas para que a bem-aventurança fosse possível, completa e plena. Mas a serpente, sagaz, desconstruiu as relações de confiança, lançando as dúvidas na cabeça e no coração humano. A esperança, hoje, é reconstruir a confiança em Deus. Jesus, o novo Adão, ensina: Tenham fé em Deus (Mc 11.22b). E Deus confirma: Este é meu Filho amado, a ele ouviu (Mc 9.7). O paraíso não é somente saudade, mas também esperança. Em nossa obediência à Palavra, Deus possibilita nosso acesso ao novo céu e à nova terra (Ap 21.1ss).
Pode ser elaborado um cartão para ser entregue pelos grupos de confirmandos e confirmandas às pessoas que entram pela porta da igreja. Num dos lados do cartão, desenhar ou escrever a ÁRVORE DA VIDA. E no outro lado, desenhar ou escrever ÁRVORE DO CONHECIMENTO DO BEM E DO MAL. As pessoas são convidadas a escreverem seu nome nos dois lados do cartão. No momento da confissão dos pecados, cada pessoa traz seu cartão e o coloca debaixo da cruz, no altar. Um dos sentidos do cartão é a afirmação de que todas as pessoas são, ao mesmo tempo, justas e pecadoras. Somos o velho Adão e a velha Eva. Mas em Cristo Jesus somos feitas novas criaturas. O perdão de Deus as acolhe em seu reino de justiça e paz.
Confissão comunitária
Deus Criador, tu criaste todas as coisas belas, agradáveis, desejáveis. Mas eu quero tudo para mim mesmo. E quero sempre mais acumular, acumular, acumular. Por que não? De qualquer jeito, importa minha felicidade.
Por acumular para mim mesmo, tem piedade de mim, Deus.
Deus Salvador, tu me pedes prática da misericórdia. Mas estás pedindo algo muito pesado. Não vejo sentido em sofrer por causa das dores dos outros e das outras. Eu tenho minhas próprias dores, meus próprios problemas. Não posso ser misericordioso.
Por te desobedecer, tem piedade de mim, Deus.
Deus Santificador, tu me pedes fé e confiança em ti. Mas eu tenho minha própria fé, minha própria vida, meus sonhos, minhas estratégias e minha própria santidade. Tu queres me tolher no meu pensar, agir e fazer. Por isso não posso ir contigo.
Por não confiar em ti, tem piedade de mim, Deus.
Deus Trino, tem muita miséria e sofrimento no mundo. E já não posso sair de casa que sou importunado por essa gente sem caráter e preguiçosa. Foste tu que criaste esse vale da sombra da miséria.
Por não assumir meus compromissos de fé e vida com a tua criação, tem piedade de mim, Deus.
Deus, eu, pobre e miserável ser humano, confesso todos os meus pecados que cometi em pensamentos, em pronunciamentos, em ações e em omissões. Todos eles te ofendem e me oprimem. Peço, por tua infinita misericórdia e graça, pelo amor de Jesus Cristo, perdoa-me e transforma minha vida. Assim seja.
GARIN, Norberto da Cunha. Gênesis 2.15-17; 3.1-7. In: Proclamar libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2011. v. 35.
CABRAL, João Francisco Pereira. Teogonia e a origem dos deuses gregos. Brasil Escola. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2022.
CONFISSÃO DE AUGSBURGO. Do Pecado Original. Disponível em: https://www.luterano.org.br/confissao-de-augsburgo/
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).