Chances e Perigos da Celebração de Ofícios na Comunidade – Estudo Temático
Guenter K. F. Wehrmann
I — Observações preliminares
A definição do termo ofícios não está clara. F. Kalb, por exemplo, diferencia três tipos de ofícios: a) Ofícios sacramentais (Batismo e Santa Ceia para doentes); b) Ofícios com caráter de bênção (Ordenação, Instalação, Confirmação, Admissão, Bênção Matrimonial, de certa forma inclusive o Batismo e — com restrições — também o Sepultamento; o ofício de Penitência localizar-se-ia entre a e b; c) ofícios com caráter de inauguração (são aqueles ofícios em que prédios ou objetos ou são dedicados ao uso eclesiástico ou são recomendados à proteção e à bênção de Deus). Essa subdivisão em três tipos de ofícios me parece boa. No presente estudo, porém, a delimitação é necessária. Por isso, enfocarei apenas os ofícios mais frequentes no pastorado paroquial, ou seja, Batismo, Confirmação, Bênção Matrimonial e Sepultamento.
Segundo Kalb, todos os três tipos são atos cultuais que não podem ser realizados regularmente; mas apenas de caso em caso (casus) quando for dada determinada motivação para tal… são casos especiais de uma pregação poimênica que é ordenada liturgicamente1.
Nessa definição, alguns aspectos chamam a atenção: a preocupação poimênica com o caso específico; a ordem litúrgica e, sobretudo, a ênfase na pregação (casos especiais de uma pregação). Essa ênfase na pregação caracteriza a maioria das definições. Nesse sentido, M. Metzger denomina os ofícios como casos especiais da pregação, da poimênica e do culto2.
Visto que também os membros afastados da vida comunitária requerem os ofícios, há teólogos que consideram a realização dos mesmos como a grande oportunidade missionária e evangelística3.
Essa tese, porém, já foi questionada com veemência, em 1960, por R. Bohren4. Segundo ele, os ofícios representam para o(a) pastor(a)5 a inoportunidade que é desumana e produz cristãos sem igreja e comunidades mortas6. Para acabar com a hipocrisia dos ofícios, alguns pastores ou se negaram a realizá-los ou proferiram alocuções provocadoras, com o intuito de aborrecer os ouvintes.
Ambas as tentativas, porém, não tiveram o êxito desejado. As pessoas continuavam solicitando, com máximo interesse, os ofícios. Segundo M. Josuttis, parece que o problema não existe para os consumidores, mas só para os produtores de ofícios, ou seja, os pastores7.
Esses receberam uma nova motivação pela psicologia pastoral. H. J. Thilo8 destacou a importância do aconselhamento pastoral no diálogo casual (Kasualgespraech). A partir disso, declarou os ofícios como nova oportunidade.
Em contraposição à clericalização dos ofícios, W. Buchweitz procura resgatar a dimensão comunitária dos mesmos9. E contra o automatismo mágico da realização dos sacramentos, W. Altmann pergunta, se eles se tornam túmulo ou berço da comunidade cristã10.
Essas poucas observações sobre definições e discussões em torno do assunto evidenciam sua atualidade e a urgência de enfrentá-lo, em todos os níveis da igreja. Dada a limitação de espaço, indicaremos apenas alguns subsídios que talvez ajudem para a melhor identificação dos seguintes aspectos: 1) O porquê da realização de ofícios; 2) Os perigos de nossa celebração de ofícios; 3) Chances de uma realização mais evangélica de ofícios na comunidade. Finalizaremos com teses em uma conclusão provisória.
II — O porquê da realização de ofícios
1. A razão antropológica e psicossocial
Diante de uma situação nova (p. ex., nascimento, adolescência, casamento ou morte), o ser humano, normalmente, experimenta um sentimento ambíguo: curiosidade — insegurança; fascinação —ameaça e medo11. Em tais situações de iniciação ou passagem, a pessoa sente, de uma ou de outra forma, que a vida e o mundo transcendem o cotidiano e o factível. Nessas situações limítrofes, por excelência, surge a pergunta pelo sentido da vida (de onde vim; por que estou aí; para onde vou?). Esse perguntar é tão antigo como a humanidade e, ao mesmo tempo, se coloca com urgência e peculiaridade e cada situação específica. Por exemplo, sempre nasce ou morre gente; mas o nascimento de minha filha ou a morte de meu pai é bem peculiar, incomparável e inconfundível.
As perguntas e necessidades que surgem em tais situações limítrofes levam a pessoa a procurar por outras pessoas, a fim de compartilhar sua alegria ou dor. Não é de se admirar, portanto, que em cada cultura e sociedade, seja ela pagã, cristã ou pós-cristã, há ritos de iniciação e de passagem, requeridos por pessoas individuais ou grupos.
A celebração de ritos é oficiada por pessoas devidamente incumbidas. Já que as situações limítrofes transcendem a vida, e a religião se preocupa com a pergunta pelo sentido da vida, é natural incumbir os representantes da religião (feiticeiro, sacerdote, padre, pastor) com a celebração dos ritos12.
Através da celebração do rito, o indivíduo ou grupo é reintegrado na sociedade ou comunidade, pois compromete-se com as regras instituídas e os comportamentos padronizados pela mesma. Nesse sentido, o rito de passagem é uma contribuição essencial para a estabilidade de estruturas sociais — sobretudo, quando o rito é fundamentado pela religião; nesse caso, o rito sacraliza e cimenta o sistema social vigente13.
G. U. Kliewer, porém, suspeita, com razão, que o cristianismo, nos primeiros séculos de sua existência, se constituiu, através de sua pregação e sua prática dos sacramentos, como um sistema social antagônico à sociedade estabelecida14. Isso se evidencia, acima de tudo, na liturgia batismal e eucarística. Por exemplo, a confissão batismal Jesus é Senhor se opunha à confissão oficial que proclamava César é Senhor. Essa dimensão de crítica ao sistema estabelecido também está presente nos cantos litúrgicos, constantes no livro de Apocalipse15, cantados na celebração da Eucaristia (Ceia do Senhor).
Resumindo, podemos assegurar que o ser humano necessita do rito, principalmente em situações de iniciação e passagem. O rito exerce uma função psicossocial; contribui para a estabilidade emocional e social. Nem os teólogos mais críticos em relação à prática dos ofícios em nossas comunidades negam esse fato. Eles nos desafiam, porém, a perceber também o elemento crítico ao sistema estabelecido, elemento que estava presente nos ritos celebrados pela cristandade primitiva. (Esse aspecto deverá ser aprofundado mais adiante!) Além disso, os especialistas no assunto nos levam a perguntar pelas razões teológicas e implicações eclesiológicas da celebração de ofícios. A seguir serão indicados alguns aspectos nesse sentido.
2 — Razões teológicas e eclesiológicas
M. Metzger procura por referências bíblicas acerca da realização de ofícios. Ele afirma que o AT dá indícios para a existência e a forma de alguns costumes cúlticos (Gn 17.10ss.; 50.1ss.; 2 Cr 5-7; Tb 7.15ss.). Em geral, eram cultivados sem cooperação sacerdotal16 com exceção da circuncisão que existia fora do antigo Israel. Ela alcançou, no Israel exílico, um significado peculiar: segundo Gn 17.11, ela era considerada sinal da aliança17.
No NT são mencionados batismos (Mt 28.19; Rm 6.3; etc.), costumes de casamento (Mt 25.6ss.; Jo 2; etc. — porém, de bênção matrimonial não se faia!), costumes de sepultamento (Mt 27.59; Jo 11.44; At 5.6; 9.37; etc.), ordenações (At 6.6; 13.3; etc.), imposição de mãos (1 Tm 4.14; etc.), unção de doentes (Tg 5.14 -mas não Santa Ceia para doentes!). É duvidoso, porém, que esses costumes, exceto o Batismo, tenham sido obrigatórios e tenham tido formas litúrgicas definidas18.
Nesse contexto, é oportuno ressaltar que Jesus mesmo, embora tenha sido batizado, provavelmente não batizou (Jo 4.2). Em relação ao sepultamento posicionou-se criticamente (Mt 8.22) quando esse se opunha ao desafio do discipulado. O apóstolo Paulo, embora tenha dado muita importância teológica e eclesiológica ao Batismo (1 Co 12; Rm 6), por sua vez, batizou apenas Crispo e Gaio e a casa de Estéfanas. Sem desconsiderar a realização deste ofício, Paulo pondera que seu ministério consiste em pregar o Evangelho (1 Co 1.14-17).
Assim fica claro que a nossa prática de tantos ofícios não pode ser justificada diretamente a partir da Bíblia, como se cada ofício por nós realizado já tivesse sido praticado por Jesus, Paulo ou as primeiras comunidades cristãs. Essa constatação é importante para sermos honestos!
Alguém poderia concluir disso que nossa prática, então, não pode ter justificativa teológica e que ela, portanto, deve ser eliminada. Tal conclusão, porém, seria biblicista e simplista. Afinal, observamos, dentro da própria Bíblia, situações diferentes, para dentro das quais é dirigida, de maneira específica, a Palavra de Deus. Em situações específicas surgem formas distintas de vida e prática comunitárias. Esse fato evidencia que Deus é um Deus da história. A história de Deus com seu povo não pára com Abraão, nem com Israel, nem com o nascimento, morte e ressurreição de Jesus, nem com o processo de delimitação do número de livros que integram a Bíblia (formação do cânone). O Espírito Santo continua agindo em e através de sua Igreja. Ele a ilumina. Abre olhos e ouvidos dela para a realidade concreta em que vive. Ele a fez confrontar essa realidade com o testemunho do Evangelho, escrito na Bíblia19. Desse confronto, ele a fez tirar conclusões concretas com vistas à vivência e à prática da fé hoje.
Dessa forma podemos encontrar justificativa teológica para os ofícios, mesmo que não sejam explicitamente mencionados na Bíblia, mas surgidos ao longo da história, em determinados contextos, para corresponder a necessidades específicas. Ao mesmo tempo, porém, temos a liberdade e responsabilidade teológicas para avaliar criticamente a celebração de ofícios hoje, tanto em seu conteúdo quanto em sua forma20.
Tendo esclarecido esses pressupostos, podemos apontar alguns critérios norteados para a realização de ofícios:
a) Já que Deus se manifestou como Criador, Salvador/Libertador e Consolador na história específica de seu povo, não há nenhuma esfera da vida que não possa ou não deva ser relacionada com a fé nesse Deus. Todas as experiências de vida podem e devem ser celebradas na fé. Isso significa que teoricamente o número de ofícios distintos é ilimitado21.
b) Já foi dito que especialmente as situações limítrofes, as situações de iniciação e passagem, transcendem a si mesmas. Nelas as pessoas experimentam sua própria limitação, a pergunta pelo sentido de vida, em vista de um futuro obscuro, não-factível nem manipulável e, por isso, ameaçador. Em última análise elas perguntam pelo extra nos, pelo próprio Deus que parece estar ausente. A tarefa da teologia é a de anunciar a Boa Nova: Atrás daquilo que denominamos de obscuro, não factível e ameaçador, está o Deus obscuro que ama o que criou e quer que ‘todos tenham vida e a tenham em abundância’ (Jo 10.10). M. Seitz explica muito bem essa tarefa:
No decorrer do tempo (tempo cronológico = CRONOS), Deus dá oportunidades (= KAIROI) ao dispor de suas criaturas; ele as afortuna e ameaça; ele se retira e está presente. Ele é a plenitude e a qualidade do tempo. Mas ele o faz como o oculto e, com isso, ele próprio é o que ameaça, o ameaçador. A teologia bíblica faz perceber que Deus mesmo sofreu sob o fato de ser o ameaçador. Por isso apresentou-se, em Jesus Cristo, como o misericordioso — o misericordioso diante do ameaçador — e se colocou como KAIROS (oportunidade salvífica) para dentro do decorrer histórico do tempo. Desde então, todos os pontos cronológicos podem ser relacionados com ele e ser aceitos e enfrentados como vocação para n graça. Nos ofícios da Igreja, Deus quer mostrar-se como o misericordioso. Dizer e testemunhar isso — é tarefa da teologia22.
Assim me parece estar bem resumido o Evangelho a ser veiculado nos ofícios, tanto em termos de diálogos preparatórios, em aconselhamento poimênico, quanto pela própria liturgia (da qual a pregação/alocução é apenas uma parte!). De maneira alguma, porém, podemos ignorar que esse Evangelho também implica Lei (denúncia, juízo) e Imperativo (comprometimento com o novo caminhar na missão de Deus)23. Em caso contrário, os ofícios perdem seu caráter evangélico, salvífico/libertador e sua dimensão comunitária; tornam-se uma baalização24. Não deve ser esquecido, porém, que, enquanto vivermos aqui na terra, persistirá a luta entre o novo e o velho, entre promoção da vida e da morte, entre justiça e injustiça, entre viver segundo os preceitos de Deus e viver segundo o mal/diabo. Cristo veio libertar as pessoas para que surjam justiça, paz e vida. Esse testemunho deve perpassar e nortear todas as tarefas da Igreja, inclusive a celebração de ofícios. O Evangelho neles testemunhado, portanto, só pode ser o Evangelho que liberta do velho para o novo, Evangelho que implica Lei e Imperativo. Afinal, a graça, a dádiva de Deus, veiculada nos ofícios, sempre compromete aqueles que os recebem com a novidade de vida, com o discipulado. Toda a Bíblia dá testemunho disso (p. ex.: Js 24.13-15; Jo 8.11; Rm 6.3s.; Ef 2.8-10; etc.).
c) Já que esse testemunho é confiado à Igreja de Cristo, não é concebível que uma pessoa, um casal ou uma família se adone de algum ofício. É verdade que sua situação específica deve ser considerada, no sentido de que o testemunho possa encarnar nela. Mas quem promove e realiza o ofício, é a comunidade. Por isso, o pastor igualmente não é dono do ofício, mas apenas instrumento incumbido, por Deus, através da comunidade25. É evidente, portanto, que ofícios devem ser realizados pela e na comunidade e não fora dela, sem a participação da mesma. Somente dessa forma, o nosso ser Corpo de Cristo (1 Co 12.26s.; Ef 1.23) ganha forma e expressão visível. Os ofícios, portanto, devem ser considerados uma oportunidade cultual26, realizados na e pela comunidade em situações limítrofes.
d) Eles não têm sua razão de ser apenas na tarefa de pregação, ou na tarefa poimênica, ou na tarefa diacônica, nem só na tarefa catequética. Pelo contrário, nos ofícios todas essas tarefas da comunidade se condensam numa só tarefa, dentro de determinada forma litúrgica. É preciso estar atento a esse fato para que a nossa prática casual seja integral27. Isso não exclui que, em determinados casos, uma dessas tarefas possa ou deva ter maior peso.
Com essas razões teológicas e eclesiológicas, embora ainda incompletas28, temos quase uma visão ideal da celebração de ofícios. À luz dessa fundamentação, deve ser enfocada criticamente a prática de nossa celebração de ofícios nas comunidades hodiernas. Nesse sentido, serão apontados, a seguir, alguns dos principais perigos de desvirtuamento e alienação.
III — Perigos de nossa celebração de ofícios
1. O perigo da clericalização
Ao longo da história, a realização de ofícios tornou-se monopólio do pastor. Ele acaba sendo ator principal e, muitas vezes, único. As pessoas envolvidas são meros objetos. E. L. Brand, ao refletir sobre a crise do culto, compara a relação entre pastor e comunidade com o jogo de futebol no estádio. Nele os jogadores estão atuando com corpo e alma, ao passo que os espectadores estão apenas olhando. O espectador experimenta apenas a catarse do desembarque da rotina diária. O jogador, porém, está totalmente envolvido; sua vida está sendo marcada pelo exercício do esporte. Já que a comunidade no culto tem o papel de espectadora, o culto não a envolve, nem a marca. Para mudar isso, a comunidade deve passar a ser jogadora participante29.
Se em nossos cultos a comunidade não tem um papel suficientemente participativo, muito menos ela o tem nos ofícios. Neles o pastor (desconsiderando, p. ex., o coveiro ou o organista) é o único que atua; os envolvidos (p. ex., noivos, enlutados) são apenas objetos da atuação dele. O pastor se torna mestre de cerimônia que faz desenrolar o espetáculo. Os envolvidos têm a preocupação com o comprimento fiel e bonito do rito. A comunidade, muitas vezes, por não ser atingida pelo rito, se satisfaz em observar os vestidos bonitos ou outras exterioridades. É mais do que claro que essa maneira de realizar ofícios não marca a vida nem a transforma.
A situação se agrava mais ainda, se consideramos o acúmulo de serviços, realizados por um pastor, num só dia de semana, em diferentes comunidades da mesma paróquia. Vejamos, p. ex., o seguinte programa:
Sábado:
8.00h — Plantão na secretaria no centro
10.30h — Bênção Matrimonial na comunidade rural B
13.00h — Ensino Confirmatório no centro (grupo 1)
14.00h — Ensino Confirmatório no centro (grupo 2)
16.00h — Culto na comunidade rural C que dista 40 km do centro
17.00M — Sepultamento na mesma comunidade rural C
19.30M — Ensino Confirmatório na mesma comunidade rural C (e posterior pernoite na mesma)
Domingo:
7.30h — Viagem de 2h para o ponto de pregação D que dista 125 km do centro
10.00h — Culto no ponto de pregação D e posterior almoço
13.00h — Retorno para a comunidade do centro (2.30h de viagem);
Posterior descanso de 45 min; revisão do preparo do próximo culto
18.00M — Culto na comunidade do centro.
Certamente há pastores da IECLB que conhecem tal programa exaustivo; alguns talvez possam apresentar uma agenda mais desumana. Digo desumana! Pois nenhuma pessoa tem condições psíquicas, físicas e espirituais para realizar, regularmente, com dedicação, criatividade e responsabilidade necessárias, tal programa. Pensa-se, contudo, que não há saída; pois a paróquia está estruturada desse jeito e atendê-la é a tarefa do pastor.
Os efeitos desastrosos de tal sobrecarga e concentração de serviços na mão de uma só pessoa são flagrantes. Facilmente os ofícios são realizados com um automatismo funcional. Esse cimenta, na comunidade, a opinião de que importa somente a realização correta e bonita do rito. Da pregação, por exemplo, não se espera nada de transformador. Ela tem que ser apenas bonita. Da liturgia, em todos os casos, não se entende muita coisa.
De tal conjuntura de condicionamentos decorre quase automaticamente…
2. O perigo da comercialização de ofícios
Pessoas mais ou menos distante da vida comunitária ainda não deixaram de ser membros contribuintes da comunidade, simples e unicamente por não desejarem perder o direito aos ofícios, principalmente o direito ao Batismo, à Confirmação, à Bênção Matrimonial e ao Sepultamento. Mesmo a contragosto, mas com xingações que se repetem anualmente, pagam a contribuição financeira para não perderem o direito a esses ofícios. Realmente pagam muito caro para terem, durante toda a vida, apenas em quatro ocasiões o serviço da Igreja.
Não faltam presbíteros que, nesse caso, recomendam o desligamento da comunidade. Normalmente, porém, tal recomendação surte naquelas pessoas, em vez do efeito almejado, só aborrecimento e maior afastamento interior. Então, aquelas pessoas começam a exigir os ofícios, argumentando que estão em dia com sua contribuição financeira. Assim sendo, o ofício que deveria ser um veículo da graça e do amor incondicionais de Deus, tornou-se uma simples mercadoria de supermercado. Segundo tal raciocínio, ela jamais pode ser negada, visto que foi paga até antecipadamente.
De fato, o esvaziamento do bom significado de ofícios é flagrante e alarmante. Realizá-los sob tais condições, humanamente falando, é fabricar cristãos mortos e matar a comunidade do Cristo.
3. O perigo de fazer dos ofícios a grande oportunidade missionária (ou seja, a absolutização da pregação)
Preocupado com a indiferença e alienação de tantos cristãos, F. Niebergall desafiou, já em 1905, os pastores a reconhecerem e aproveitarem os ofícios como a grande oportunidade missionária:
Inúmeras pessoas, hoje, não mais são alcançadas pela prédica (se. dominical). Elas simplesmente não vêm (se. ao culto); mas da participação dos ofícios da Igreja elas não querem nem podem desistir. Assim sendo, os pastores da cidade média e, especialmente da cidade grande, pegam na mira uns tantos que de outra forma ficariam inatingíveis pela influência eclesiástica. Que oportunidade de vender o seu peixe, de anunciar – sem coagir – o Evangelho e mostrar que valor ele tem para a vida! …As alocuções em ofícios são as posições avançadas da Igreja, avançadas para dentro do campo da indiferença e adversidade, campo a ser conquistado30.
Nessa formulação transparece o inconformismo legítimo com uma situação eclesiástica insustentável. Chama a atenção, porém, o linguajar agressivo e militarista e o fato de os ouvintes serem considerados simples objetos da pregação eclesiástica, ou seja, objetos de caça. Não transparecem, contudo, a preocupação litúrgica, a poimênica, a diacônica, nem a comunitária. O pastor é o único ator (caçador) e como tal corre perigo de manipular os ouvintes. Esses, provavelmente, não serão considerados em suas perguntas, dúvidas, dores e alegrias; pois a atenção maior está em convertê-los. Em consequência disso, a pregação incorre em diferentes perigos:
Ou a pregação não liga o Evangelho com a vida concreta das pessoas em evidência; propaga-se apenas o amor e a graça de Deus. Nesse caso prega-se de maneira aérea, graça barata que não compromete com a novidade de vida e não transforma as pessoas.
Ou a pregação parte da graça e do amor de Deus para enfatizar primordialmente a conversão, seja ela apenas individual e interior, ou coletiva e social. Provavelmente a pregação terá uma forte tendência apelativa e legalista.
Ou a pregação parte do caso concreto e procura mostrar às pessoas a vantagem de viver com Cristo, apresentando-o como garantidor da felicidade. Nesse caso, Cristo deixa de ser o Senhor que chama para o discipulado sob a cruz.
Segundo R. Bohren, os três tipos de pregação, acima mencionados, não seriam outra coisa do que uma baalização (idolatria). Pois, ou não levam a sério a santidade e a honra de Deus, ou não levam a sério a dignidade e honra humanas31.
A pregação evangélica, portanto, está comprometida com a dimensão divina e a dimensão humana, visto que o próprio Deus se tornou pessoa, sem deixar de ser Deus. A alocução deve levar a sério o caso específico. Confronta-o com o Evangelho, em cuja luz se evidencia a denúncia do pecado individual e coletivo (LEI). Anuncia o Evangelho da aceitação, de cuja graça decorre o comprometimento com a novidade de vida individual e social (IMPERATIVO). Esse Evangelho que implica LEI e IMPERATIVO, é a força libertadora e transformadora.
Por mais que a teologia luterana insista nesse último tipo de pregação por ocasião de ofícios, ela não deve iludir-se, porém, sobre os efeitos dela. Importa lembrar que fazer discípulos permanece sendo obra do Espírito Santo. Além disso, nós luteranos temos que redescobrir que a pregação, por mais importante que seja, é apenas uma parte do todo da liturgia do ofício que requer nosso preparo e a participação comunitária. Ainda deve ser lembrado que um estímulo para a mudança, porventura dado pela pregação, se esvaziará rapidamente, se a realização do ofício não estiver inserida num trabalho comunitário mais amplo (p. ex., diálogos e cursos pré-batismais e pré-nupciais, grupos específicos, etc.). Finalmente convém lembrar que a muito enraizada opinião de que a simples realização do rito faz o cristão, representa um sério empecilho para o ouvir de uma pregação. Nesse sentido R. Bohren é radical ao afirmar que a prática casual e a fala casual não coadunam e que a prática se sobrepõe à fala32.
4. O perigo da absolutização do caso (ou seja, a absolutização da poimênica)
Segundo M. Seitz, os ofícios ganharam nova importância desde que H. J. Thilo, em 1971, desafiou para a poimênica de aconselhamento … apresentada no diálogo casual (Kasualgespraech)33. Desde então realizam-se também em muitas comunidades da IECLB diálogos pré-batismais e pré-nupciais, criam-se grupos de casais, etc. Esses são complementos importantes ao lado dos ofícios. Mas aí também podem surgir perigos:
Ou o conteúdo desses diálogos se torna tão centrado nas pessoas que o Evangelho (que implica Lei e Imperativo!) fica em segundo plano ou até desaparece. Então o diálogo pastoral não se distingue mais de um diálogo entre não-cristãos; ele não mais liberta e nem transforma, mas acomoda. Nesse caso a Igreja deixa de lado a sua razão de ser. R. Bohren a chamaria de idólatra.
Ou o diálogo casual se torna mais importante do que o próprio ofício. Nesse caso, não se valoriza a necessidade humana de celebrar ritos de iniciação e de passagem.
Ou o diálogo casual realmente é norteado pelo duplo compromisso com o Evangelho e com as pessoas e suas necessidades. Prepara-as para o ofício e as acompanha após a realização do mesmo. Nisso reside a grande importância da preocupação poimênica e sua relação com ofícios.
Resumindo: Apontei para a clericalização dos ofícios que faz das pessoas envolvidas meros objetos e espectadores. Essa clericalização, além do problema estrutural que paróquias numérica e geograficamente grandes representam, contribui para um acúmulo de serviços e uma sobrecarga desumana do pastor. Identifiquei o problema do esvaziamento do significado evangélico dos ofícios que culmina na comercialização dos mesmos como mercadoria de supermercado. Mencionei algumas tentativas de enfrentar o problema através da pregação e apontei para perigos, chances e limitações das mesmas. Finalmente falei dos perigos e da importância da preocupação com o caso, ou seja, com diálogos poimênicos por ocasião de ofícios. Em todos esses perigos — e certamente há outros mais — se manifestam problemas sérios de idolatria, de desrespeito à honra e dignidade humanas e problemas de estrutura eclesiástica.
Diante de tantos perigos, desvios e alertas, há pastores que se sentem resignados e frustrados. Alguns procuram por outra paróquia. Outros até chegam a desistir do pastorado. Há estudantes de teologia, desiludidos com toda essa situação desanimadora, que não se dispõem ao assim chamado pastorado tradicional e reivindicam um pastorado alternativo em que não precisam celebrar ofícios.
Vimos no bloco II desse artigo, entretanto, a razão de ser dos ofícios, destacando a sua necessidade em termos teológicos, antropológicos e sociológicos. Será que podemos simplesmente desistir da realização deles? — Isso alguns já fizeram, outros o recomendaram34. Ou temos que perguntar corajosamente por aquilo que pode e deve ser mudado, para que a celebração de ofícios realmente condiga ao ser-lgreja de Cristo neste mundo? Penso que só essa pode ser a saída.
Ciente de minha própria limitação, tentarei enfocar algumas chances da reforma de nossa prática casual e indicar algumas pistas concretas de ação.
IV — Chances de uma realização mais evangélica de ofícios na comunidade
1. Remendos isolados não resolvem
Vimos a importância de se preocupar com uma homilética que faz jus tanto ao Evangelho quanto ao caso específico, considerando as pessoas envolvidas e a comunidade. Esse esforço isolado, porém, não é suficiente; ele é como um remendo em vestido velho.
Igualmente percebemos o fato de que a alocução é apenas uma parte do todo da liturgia que requer preparo, com vistas à sua contextualização e expressão corporativa, ou seja, a participação comunitária. Nem esses dois esforços bastam para reformar a prática casual.
Percebemos também a importância da poimênica que deve ganhar forma na oportunização de grupos específicos (p. ex.: grupos de diálogo pré-batismal e pré-nupcial; grupos de casais; grupos de viúvos e viúvas; etc.). Nesses grupos deve acontecer o ensino sobre os ofícios e sua ligação com a vida e deve ser ensaiada a comunhão fraterna (KOINÕNIA).
Somando todos esses esforços, ainda permanece a pergunta se não estamos remendando, apenas. R. Bohren responderia com um categórico sim35. Pois, enquanto tudo isso for feito pelo pastor ou depender dele, estaremos fundamentando o catolicismo interior: o pastor age no papel principal, a comunidade permanece em seu papel de comparsa (Statistenrolle). O pastor continuará sendo fatalmente sobrecarregado, a comunidade não experimentará a tão almejada comunhão fraterna; ela será tratada como criança dependente, apesar de nossos bons discursos sobre sacerdócio universal de todos os crentes. Portanto, está na hora de tirarmos as consequências práticas dessa bela redescoberta de Lutero. R. Bohren nos desafia:
O pastorado deve ser libertado do cativeiro dos ofícios; a comunidade deve ser ordenada para a realização de ofícios, para que aconteça comunhão em alegria e sofrimento 36.
Estou ciente de que isso é extremamente difícil por mexer substancialmente com a estrutura eclesiástica, estabelecida em forma paroquial, cujo centro é o templo e seu chefe (segundo opinião muito enraizada no povo) é o pastor. Já vislumbro, contudo, alguns sinais de esperança, com vistas a mudanças fundamentais na concepção e vivência de IECLB:
2. Sinais de esperança
a) O Documento Discipulado Permanente — Catecumenato Permanente37, aprovado pelo Concílio Geral da IECLB em 1974, já prevê o resgate do sacerdócio universal de todos os crentes e a importância da permanente vivência e aprendizagem da fé em núcleos. De maneira crescente estão surgindo tais experiências concretas em comunidades da IECLB.
b) Nossa Fé —Nossa Vida38, embora ainda destaque bastante a importância do pastor, indica o lugar desse como sendo no presbitério, cujo presidente é outra pessoa. O que é mais alvissareiro é o fato de que se prevê a possibilidade de, além do pastor, outra pessoa da comunidade, devidamente incumbida, realizar o Batismo39, a Bênção Matrimonial40 ou o Sepultamento Eclesiástico41. De fato, já existem experiências nesse sentido, em algumas comunidades, embora o preparo e a ordenação de tais pessoas, às vezes, não sejam devidamente levados a sério.
Esses sinais de esperança —certamente há outros —desafiam para a continuação e intensificação da caminhada, com vistas ao aceleramento do processo de mudança na prática casual. Nesse sentido, pretendo arrolar, de maneira sintetizada, algumas pistas concretas:
3. Pistas e dicas para uma ação transformadora42
3.1 Subdividir a estrutura paroquial em núcleos
A estrutura paroquial (também a de comunidade) é por demais massificante, inflexível e pesada. Nela as pessoas permanecem no anonimato, o que impede comunhão e consolação fraternas. Pelo fato de essa estrutura não permitir um trabalho com profundidade, ela cansa, frustra e mata os obreiros (catequista, diácono(a), pastor(a)) e também dificulta imensamente o surgimento e envolvimento de obreiros leigos. A subdivisão da paróquia em dois pastorados pode ser uma solução momentânea. A médio e longo prazo, porém, isso parece cimentar a hierarquia pastoral e manter a comunidade na dependência dos pastores. Além disso, esse tipo de estrutura paroquial está se tornando cara demais para comunidades do Terceiro Mundo.
Por essas razões — e outras mais —muitos antes de mim já insistiram na subdivisão de paróquias em núcleos em que realmente possa acontecer comunidade43. Em muitas comunidades já foram e continuam sendo feitas experiências nesse sentido. É urgente colher, avaliar, aprofundar e divulgar experiências que paróquias fizeram com o assim chamado zoneamento. Quer parecer, porém, que tais núcleos existentes ainda não foram considerados nem declarados Igreja plena, assim que tivessem o direito de realizar ensino confirmatório, disciplina fraterna e celebrar ofícios e cultos eucarísticos. Mas justamente isso reivindica R. Bohren, para que o núcleo não se torne dependente, nem um gueto, mas seja comunidade missionária com todos os direitos e deveres. Segundo ele, o núcleo também deverá assumira celebração de ofícios, desde que realize o ensino em seu meio. Em tais núcleos os ofícios ganhariam seu devido lugar. As pessoas que pediriam por um ofício, não somente receberiam o querigma, mas também a koinonia e a diaconia (que a grande paróquia normalmente lhes fica devendo)44.
Os líderes de tais núcleos, sejam eles presbíteros ou não, devem ser devidamente vocacionados, preparados, ordenados e acompanhados pela paróquia. Devem ser considerados e tratados, por ela e pela Igreja, como obreiros eclesiásticos e não apenas colaboradores ou quebra-galho do pastor. Ultimamente, tais obreiros leigos, em número crescente, vêm reivindicando tal reconhecimento e valorização45.
3.2 Ensinar com vistas ao exercício do sacerdócio universal
No decorrer dessa reflexão, temos nos confrontado com o alarmante esvaziamento do significado dos ofícios. Há membros que os consideram mercadoria de supermercado; eles nem percebem como a dádiva de graça e bênção os compromete com a vivência nova. Eles não se sentem impulsionados a lutar contra a instalação do desamor, da injustiça e morte, para que surjam sinais concretos de amor, paz, justiça e vida — na família, comunidade e sociedade. Em última análise, não são esses membros que podem ser culpados por tal deturpação e dicotomia entre fé e vida. Muito antes, importa percebermos que o nosso ensino eclesiástico/catequético — e a nossa pregação46 — falharam ou nem aconteceram.
Já vimos que a estrutura paroquial existente dificulta muito ou até impede um ensino mais intensivo e eficaz. Esse, porém, não é o único problema. É preciso perguntar: O que temos ensinado — p. ex., no Culto Infantil, Ensino Confirmatório, nos grupos de JE, etc.? A questão de ofícios fez parte dos conteúdos tratados? A didática foi um mero repetir das palavras do Catecismo ou ela ligou as perguntas, dúvidas e experiências das pessoas com o testemunho da fé? Temos que perguntar também, se a formação catequética de nossos obreiros (catequista, diácono e pastor) é suficiente e adequada. Será que ela tem o espaço devido dentro do currículo do estudo?
Urge reconhecermos que o nosso jeito de ensinar fez do ensino uma coisa só para especialistas. A relação primária e mais natural que é a família (mãe, pai, avós) foi destruída em grande parte. Salvo poucas exceção, a criança ouve sobre seu Batismo (p. ex.) só no Culto Infantil ou no Ensino Confirmatório. R. Bohren lamenta:
O ensino eclesiástico tem como consequência que os pais de casa (‘Hausvaeter’)47 são castrados espiritualmente. O ‘pater familiae’ (‘pai de família’) não tem mais nada a dizer a seu filho. O ‘pater eclesiae’ (‘pai de comunidade = pastor’) sabe tudo melhor …Assim, o ensino eclesiástico dispensou totalmente os pais da tarefa de ensinar espiritualmente os filhos. Naturalmente, eles (sc. os pais) de vez em quando são lembrados, com palavras comoventes, de que eles têm também uma responsabilidade espiritual de pai. Mas a prática da Igreja lhes testifica, com insistência, que eles são imbecis espiritualmente, visto que só o pastor dá o ensino48.
É preciso, portanto, resgatar o ensino primeiro e natural que acontece na família, de maneira imediata e direta. Para isso poder acontecer, pelo menos duas coisas serão necessárias: Primeiro, nós obreiros devemos reaprender que o Espírito Santo também fala através de mãe, pai, avó e avô. Temos que depositar confiança neles e caminhar com eles em sua tarefa educacional. Certamente experimentaremos que ele tem muito a ensinar, até para nós que nos considerávamos especialistas. Assim acontecerá verdadeira troca de saberes. Segundo: Temos que reaprender que esse ensino requer uma aprendizagem permanente, ou seja, um discipulado permanente —catecumenato permanente, como reza o já referido documento da IECLB. Isso implica na criação de grupos de distintas faixas etárias e na elaboração de materiais específicos de estudo. O desafio da elaboração de tal material está sendo assumido apenas em parte por alguns departamentos da IECLB (p. ex., Depto. de Catequese, Centro de Elaboração de Material, Curso Redescoberta do Evangelho). Mas a produção ganharia em qualidade e quantidade, se fosse investido nela muito mais em termos de recursos financeiros e humanos, visando inclusive a descentralização e regionalização dessa produção…
Essa preocupação com o resgate do ensino na família talvez seja mais importante e mais premente do que o ensino no Culto Infantil ou no Ensino Confirmatório, visto que os primeiros anos de vida em família são os que mais marcam a pessoa para o resto da vida.
A já mencionada subdivisão da paróquia em núcleos só pode favorecer esse tipo de ensino, pois neles há mais aconchego, confiança, abertura e espontaneidade.
3.3 Formar teologicamente obreiros leigos
A criação e o acompanhamento de referidos núcleos não pode e nem deve depender tão-somente do pastor. Ele não teria força, fôlego, tampouco tempo suficiente para isso. E mesmo se tivesse, esses núcleos tornar-se-iam dependentes dele.
É preciso, portanto, investir na formação teológica de obreiros leigos. Não penso em mini-pastores que mais cedo ou mais tarde talvez ambicionem por status e vínculo empregatício com a igreja. Isso seria cimentar e agravar a atual situação. Penso, contudo, em obreiros que têm sua profissão ou aposentadoria e dedicam parte de seu tempo livre à coordenação de seu núcleo. Um outro tipo de obreiro leigo seria alguém que fosse chamado e preparado para, em seu tempo livre, realizar determinado ofício em seu núcleo ou em sua comunidade. Assim cada núcleo, ou pelo menos cada comunidade, teria um obreiro casal que fizesse diálogos pré-nupciais e Bênçãos Matrimoniais; outro casal que fizesse Sepultamentos; etc. Tais pessoas deveriam ser vocacionadas na e pela comunidade, preparadas, ordenadas e acompanhadas pelo Distrito Eclesiástico ou pela Região Eclesiástica. A Escola Superior de Teologia (ou o Instituto de Capacitação Teológica Especial) deveria dar assistência e assessoramento na tarefa de formação e acompanhamento.
3.4 Contextualizar o Manual de Ofícios
Nossos formulários litúrgicos para ofícios, em grande parte, são traduções de formulários antigos da Alemanha, confeccionados numa época de extrema necessidade (Segunda Guerra Mundial). Aproximadamente 40 anos depois já deveríamos ter o nosso próprio Manual, com liturgias mais condizentes ao nosso contexto social, cultural e religioso.
A Comissão de Liturgia da IECLB, preocupada com a situação calamitosa, já se ocupou com a revisão, respectivamente criação, de uma liturgia para Bênção Matrimonial e Batismo. Faltam-lhe, contudo, melhores condições de trabalho para intensificar, ampliar e acelerar esse processo. Eis mais um desafio para a direção da IECLB e, por que não dizer, para todas as comunidades.
3.5 Ensaiar, com responsabilidade evangélica, a disciplina fraternal
Justamente com a disciplina fraternal temos imensas dificuldades, das quais menciono apenas algumas:
No caso de sepultamento de um suicida, havia ou ainda há presbíteros, pensando que devem impor sanções. Para tornar visível o repúdio, por causa da transgressão do 5o Mandamento, ou mandam sepultar o cadáver sem o toque do sino, fora do cemitério; ou o pastor deve realizar a cerimônia sem usar o talar. Nesse tipo de disciplino, contudo, não mais se atinge quem deveria ser atingido, mas sim os familiares. O sofrimento dos enlutados, portanto, que já se sentem acusados, traídos e abandonados, aumenta ainda mais pelo fato do que a comunidade os castiga.
Também acontece que a realização do Batismo é condicionada ao pagamento da mensalidade ou anuidade de contribuição financeira. Se ela não estiver em dia, não haverá Batismo. Assim a comunidade cimenta a compreensão errônea dos ofícios como mercadoria. Por mais difícil que, às vezes, seja o problema financeiro da comunidade, jamais ela pode condicionar, dessa forma, a dádiva divina do Batismo que é de graça.
Mais difícil o problema se torna em casos de blasfêmia flagrante, quando um par de noivos, p. ex. no diálogo pré-nupcial, blasfema sobre a bênção que compromete os que a recebem. Aí a direção da comunidade (presbitério, do qual o pastor faz parte) deve assumir sua responsabilidade e negar o ofício49.
Esses casos mostram que o exercício da disciplina fraternal nos ofícios é um problema muito complexo. Ele requer um estudo sério do respectivo caso, à luz do Evangelho.
A disciplina fraterna! jamais pode ter como objetivos de separar o joio do trigo (cf. Mt 13.24-30). Deve estar comprometida, outrossim, com a santa vontade de Deus que quer salvar o pecador. Se queremos começar a ensaiar a aplicação da disciplina fraternal, devemos começar com isso em relação aos fiéis da comunidade, antes de pretender aplicá-la aos afastados50.
Um ensaio mais evangélico de disciplina fraternal seria favorecido numa estrutura eclesial baseada em núcleos. Pois, onde não há comunhão, não há razão de excluir da comunhão!
V — Teses em uma conclusão provisória
1. A prática da celebração de ofícios em nossas comunidades é muito preocupante. Salvo poucas exceções, ela não contribui para o ser-lgreja de Cristo no mundo. Ela não ajuda para que Deus possa fazer surgir, em e através de sua comunidade, sinais do amor, da paz e da justiça. Para enfrentar o problema não bastam remendos isolados.
2. É preciso resgatar o significado teológico dos ofícios, em termos de Evangelho, Lei e Imperativo. A dialética entre bênção e maldição, graça e juízo deve ser redescoberta e testemunhada em forma de palavra e ação comunitária.
3. A Igreja não se desincumbe de sua missão, quando apenas realiza ofícios. Esses devem estar inseridos na tarefa de oportunizar comunhão (Koinonia), poimênica e serviços (diaconia).
4. Isso implica na subdivisão da estrutura paroquial em núcleos, onde o carregar os fardos uns dos outros (Gl 6.2) possa acontecer.
5. O testemunho (querigma), a Koinonia e a diaconia (que formam o tripé da Igreja) devem acontecer simultaneamente. Assim pode surgir uma celebração de ofícios que contribui para a missão de Deus no mundo.
6. Por isso é necessário investir mais no ensino e na formação teológica dos membros de comunidade, em todas as faixas etárias. Mãe, pai, avó e avô deverão ser motivados e capacitados a exercerem o ensino primeiro e natural em casa.
7. Urge criar meios de formação teológica específica para que obreiros leigos, devidamente chamados, preparados, ordenados e acompanhados, possam assumir a realização de ofícios em seu núcleo.
8. Está mais do que na hora de elaborar um Manual de Ofícios mais condizente ao nosso contexto brasileiro.
9. É necessário ensaiar a disciplina fraternal de maneira mais evangélica, começando sua aplicação primeiramente junto aos fiéis da comunidade.
10. Trabalhando na direção acima exposta, algo de substancial mudará: os ofícios deixarão de ser idolatria; contribuirão para a vivência da fé em família, comunidade e sociedade; representarão um testemunho evangélico contra o velho mundo, marcado por desamor, injustiça, morte e desesperança; a estrutura eclesiástica em forma de núcleos dará calor humano para se experimentar comunhão, consolo, diaconia e a força necessária para a luta transformadora; o pastorado deixará de ser um desgastante correr atrás da máquina, sendo caracterizado, acima de tudo, por treinamento e assessoramento teológicos; então, não mais haverá necessidade de tantos pastores, mas de melhores.
Essas ideias quase se assemelham a uma visão. Muitas certamente precisam ser testemunhadas, outras necessitam de mais detalha-mento, especificação ou complementação. Isso implica outros estudos específicos sobre cada ofício. Alguns já constam no presente volume e outros deverão seguir. Sobretudo seria necessário discutir o assunto, talvez em forma de consulta nacional, da qual participassem—além de teólogos, catequistas, diáconos, sociólogos, psicólogos,… — também presbíteros, outros obreiros leigos engajados na vida comunitária e, por que não, também leigos afastados da mesma.
VI – Notas bibliográficas:
1 Cf. Friedrich KALB, Grundriss der Liturgik, p. 203.
2 Cf. Manfred METZGER, Kasualien, Evangelisches Kirchenlexikon, v. 2, p. 546.
3 P. ex., F. Niebergall, H. G. Haack, M. Kaiser, citados apud Rudolf BOHREN, Unsere Kasualpraxis — eine missionarische Gelegenheit? p. 11ss.
4 Id., ibid.
5 Faço questão de mencionar que, na IECLB, temos também obreiras (pastoras, catequistas, diáconas, diaconisas e assistentes comunitárias). Essas irmãs queiram sentir-se consideradas também, mesmo se for falado apenas em pastores, por questão de fluência de estilo.
6Assim é resumida a crítica de R. Bohren por Manfred SEITZ, Unsere Kasualpraxis — eine gottesdienstliche Gelegenheit? In: Praxis ddes Glaubens, p. 42.
7 Cf. Manfred JOSUTTIS, Prática do Evangelho entre Política e Religião, p. 199
8 Apud Manfred SEITZ, op. cit., p. 43.
9 Wilfried BUCHWEITZ, Ofícios casuais – uma ação comunitária, p. 93 – 101.
10 Walter ALTMANN, Sacramentos — Túmulo ou berço da comunidade cristã. p. 127-142.
11 Cf. Gerd Uwe KLIEWER, O sacramento — passagem para outro mundo, p. 167.
12 Nesse sentido chama a atenção o fato de que pessoas de uma sociedade secularizada, como em Hamburgo/Alemanha, talvez dispensem a presença do pastor no sepultamento, mas não desistem do rito, nem da fala de um orador livre. Cf. Juergen JEZIOROWSKI, Der Pfarrer und das Wort am Grabe, p. 468.
13 Gerd Uwe KLIEWER, op. cit., p. 168.
14 Id.. ibld.
15Cf., p. ex.. Ap 4.8,11; 5.9-10,12s.; 7.10,12.
16 Manfred METZGER, op. cit., p. 546.
17 Cf. R. BORCHART, Beschneidung, Evangelisches Kirchenlexikon, v. 1, p. 412.
18 Cf. Manfred METZGER, op. cit., p. 547.
19 Segundo a boa tradição luterana, o testemunho do Evangelho é norteado pelo tripé somente a fé — somente a graça — somente a escritura; é somente isso que move a Cristo.
20 Deveríamos perguntar aqui: Como e onde surgiu cada ofício – em que contexto – com que Intenção – como era fundamentado teologicamente – como evoluiu ao longo da história — qual é a sua crise hoje e quais são as causas da mesma…? Nesse momento, porém, isso não é possível por requerer um aprofundado estudo à parte. Aqui atenhamo-nos ao tecer linhas mestras que querem servir para o tratamento de cada assunto específico.
21 Por isso posso concordar com a sugestão de se criar também novos ofícios tais como: despedida de um estudante que ingressará na Escola Superior de Teologia, início da aposentadoria, etc.; cf. Gerd Uwe Kliewer, op. cit., p. 173.
22 Manfred SEITZ, op. cit., p. 46.
23 Justamente a dimensão de comprometimento, inerente aos sacramentos, Walter ALTMANN procura resgatar, em seu citado artigo, para que a Igreja não propague uma graça barata. Sobre esse perigo será refletido mais adiante.
24 O termo baalização (Idolatria) é usado por Rudolf BOHREN, op. cit., p.19.
25 Esse aspecto comunitário é enfatizado por Wilfried BUCHWEITZ, op. clt., p. 93.
26 Cf. Manfred SEITZ, op. cit., p. 49.
27 Id., ibid., p. 48.
28 Para um maior aprofundamento das razões teológicas recomenda-se a leitura dos já citados artigos de Altmann, Kliewer, Buchweitz e também de Martin N. Dreher, Palavra e Sacramento; DREHER procura resgatar de maneira convincente, a unidade inseparável entre pregação e sacramento.
29 Eugene L. BRAND, La Liturgia Cristiana, p. 9-11.
30 Apud Rudolf BOHREN, op. cit., p. 11.
31 Id., Ibid., p. 19s
32 Id., ibld., p. 24.
33 Cf. Manfred SEITZ, op. cit., p. 43.
34 Cf. Rudolf BOHREN, op. cit., p. 51s. É interessante observar que o autor, 8 anos depois da primeira edição de seu artigo, motiva os pastores para uma greve ampla contra a realização de ofícios. Certamente Bohren viu que suas teses, inicialmente colocadas, não surtiram o efeito almejado, assim que, em 1968, partisse para uma proposta mais drástica.
35 As ideias sobre a necessidade de permitirmos a Reforma dos ofícios baseiam-se, em grande parte, em Rudolf BOHREN, op. cit., p. 26s.
36 Id., ibid., p. 27. O autor, ciente das implicações dessa tese, arrisca apontar para 6 pistas concretas. Elas visam a ensinar a comunidade sobre o que ela é e tratá-la como tal. Não pretendo reproduzir as pistas, mas deixar inspirar-me por elas, à luz de nosso contexto.
37 Cf. Germano BURGER, Quem assume esta tarefa?, p. 87-105; doravante mencionarei a obra por Discipulado/Catecumenato.
38 Nossa Fé — Nossa Vida — um guia de vida comunitária em fé e ação; Documento da IECLB, aprovado em Concílio Geral, em 1972.
39 Cf. id., ibid., p. 23.
40 Cf. id., ibid., p. 41.
41 Cf. id., ibid., p. 45.
42 A ordem numérica dos pontos arrolados, a seguir, não deve ser entendida, necessariamente, como ordem prioritária.
43. Cf., p. ex., Discipulado/Catecumenato, op. cit., p. 102s. e também Rudolf BOHREN, op. cit., p. 34s.
44 Cf. Rudolf BOHREN, op. cit., p. 35.
45 Lembro, p. ex., da carta, escrita por leigos da Amazônia, publicada sob o título: Leigos da Amazônia exigem ser reconhecidos como Missionários. Jornal Evangélico, São Leopoldo, 22/2 – 14/3/1987, n. 3, p.5.
46 Sobre a importância da pregação em ofícios já refletimos acima. Mas aqui convém mencioná-la, por ela também ter caráter de ensino.
47 Esse conceito me parece infeliz. Prefiro falar em mãe, pai, avó o avô de família, pois cada um desses é educador, segundo seu próprio jeito!
48 Rudolf BOHREN, op. cit., p. 32.
49 Cf. em analogia o que Nossa Fé — Nossa Vida reza sobre Quando pode ser negado o Batismo?, op. cit., p. 26.
50 Cf. Manfred Metzger, op. cit., p. 548. Ele é mais radical ao afirmar: A tentativa de começar com a disciplina fraternal justamente nos ofícios deve ser desrecomendada. Concordo com a Intenção dessa colocação. Contudo, ela pode acomodar-nos no caminho do menor esforço, assim que nos tornemos infiéis mordomos da graça e do amor de Deus.
VII — Bibliografia
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SEITZ, Manfred. Unsere Kasualpraxis—einegottesdienstliche Gelegenheit? In:- Praxis des Glaubens;Gottesdienst, Seelsorge und Spiritualitaet. 2. ed. revisada. Goettingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1979. p.42-63.
Proclamar Libertação – Suplemento 2
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia