Jesus Cristo, soberano da redenção e da criação
Proclamar Libertação – Volume 43
Prédica: Colossenses 1.15-28
Leituras: Gênesis 18.1-10a e Lucas 10.38-43
Autoria: Vítor Hugo Schell
Data Litúrgica: 6º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 21 de julho de 2019
1. Introdução
O texto de Colossenses 1.15-28 lança luz sobre a centralidade da obra de Deus em Jesus Cristo, apresentando-o não somente como senhor e soberano da redenção do ser humano, como também de toda a criação. Uma vez resgatados do domínio das trevas (cf. 1.13), e motivados pelas palavras a respeito da soberania de Cristo, os cristãos em Colossos são chamados à perseverança, a continuar “alicerçados e firmes na fé” (cf. 1.23).
Comparados ao texto da prédica, os textos das leituras (Gn 18.1-10a e Lc 10.38-43) podem levar à reflexão sobre o contraste entre a revelação de Deus a Abraão, de forma indireta, por meio dos homens que o visitam e lhe trazem a mensagem de que faria de sua descendência uma bênção para todas as famílias da terra (cf. Gn 18.18), a descrença de Sara diante do que seus olhos estavam longe de avistar e diante do que seu coração experimentava em seu momento de vida, e a visita bem pessoal de Jesus, o soberano da criação e da redenção, à casa de Marta e Maria.
A comunidade de Colossos fora fundada, provavelmente, a partir da obra missionária de Éfeso por meio de Epafras, como o próprio autor da carta o apresenta: amado cooperador, fiel ministro de Cristo (Cl 1.7). A carta deveria ser lida em Colossos, mas também na igreja dos laodicenses, assim como em Colossos deveria ser lida uma carta que, segundo o autor, teria sido enviada também àquela comunidade (cf. Cl 4.16). Como veremos, na segunda parte da perícope da prédica, o autor, que se identifica como Paulo (junto a Timóteo, cf. Cl 1.1), ressalta seu esforço e sua luta no ministério da proclamação do mistério do evangelho (cf. Cl 1.24-29). Os problemas da comunidade em Colossos podem ser compreendidos, de forma geral, a partir da leitura do capítulo 2 da carta: filosofias vãs e enganosas, que se fundamentam nas tradições humanas e nos princípios elementares deste mundo, e não em Cristo (cf. Cl 2.8); adoração de anjos (cf. Cl 2.18); pretensa religiosidade, falsa humildade e severidade com o corpo (cf. Cl 2.23). Diante de tais dificuldades, toda a Carta aos Colossenses – não somente o texto da prédica deste domingo – aponta com veemência e sempre com outras formas de expressão para o mistério de Deus, a saber, Cristo, em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento (cf. Cl 2.2s) e em quem habita corporalmente toda a plenitude da divindade (cf. Cl 2.9).
2. Exegese
O texto da prédica “canta” em seus primeiros seis versos, de forma poética, a soberania de Jesus sobre criação e redenção. É possível que o conteúdo desses versos tenha sido transcrito literalmente de um “hino de confissão”, talvez até mesmo utilizado como uma “confissão batismal”, conhecida na igreja primitiva, ou que, pelo menos, os versos expressem tradições conhecidas da igreja, então colecionadas e agrupadas pelo próprio autor da Carta aos Colossenses. A introdução, ou o que conduz às palavras desse hino, é a realidade da obra de Deus em resgatar os seres humanos do domínio das trevas para o reino de seu Filho amado (cf. Cl 1.13,14). O assunto que dá espaço ao conteúdo poético e altamente “dogmático” dos v. 15-20 é retomado no v. 21 e desenvolvido na exortação que vai até o v. 23, quando, por fim, o autor passa a falar do seu próprio ministério (v. 24-29). É a obra do perdão, da redenção, que leva ao hino sobre a soberania de Cristo, e é o próprio hino que serve, por sua vez, como base ao trecho parenético dos v. 21-23.
Do hino dos v. 15-20, a primeira parte ressalta a identidade de Cristo como soberano da criação (v. 15-17). Cristo é a imagem do Deus invisível (v. 15) e essa verdade deve ser ressaltada diante dos sincretismos que ameaçam a fé apostólica dos colossenses. Em Jesus Cristo habita corporalmente toda a plenitude da divindade (Cl 2.9). O Deus invisível se fez carne e viveu entre nós (cf. Jo 1.14). Vale o que também o evangelista João ressalta em seu prólogo: Ninguém jamais viu a Deus, mas o Deus Unigênito, que está junto do Pai, o tornou conhecido (Jo 1.18). Jesus é também apresentado como o primogênito de toda a criação.
O´Brian ressalta que escritores judaicos especulavam a respeito da sabedoria, dando-lhe quase um status pessoal, estando presente com Deus desde a eternidade, compartilhando o trono divino, existindo antes do céu e da terra (como, p. ex., em Sb 9.4,9), ou, conforme Filo de Alexandria, sendo a sabedoria o “filho primogênito” como instrumento por meio do qual o mundo veio à existência. Enquanto isso, o Novo Testamento fala dessa sabedoria em alusão a uma pessoa real, a qual alguns dos autores do Novo Testamento inclusive conheceram face a face, ou seja, Jesus Cristo, a sabedoria de Deus encarnada (cf. O´Brian, 1982, p. 44-45). O que a literatura sapiencial do Antigo Testamento atribui à sabedoria, como, p. ex., em Provérbios 8.30, os autores neotestamentários atribuem a Jesus de Nazaré e ao Cristo exaltado. Jesus Cristo não é o primeiro ser criado, mas a imagem do próprio Deus, a sabedoria presente na criação: Ele estava com Deus, e era Deus. Ele estava com Deus no princípio. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele; sem ele, nada do que existe teria sido feito (cf. Jo 1.1-3). Não somente a redenção acontece em Cristo, mas também a criação acontece na esfera do agir de Deus em Cristo. Diante das correntes heréticas em Colossos, o autor da carta enfatiza que inclusive tronos, soberanias, poderes e autoridades, como poderes espirituais (veja Cl 2.20) ou como concretizações dos mesmos na realidade vivida pela comunidade, não representam a realidade última. Também esses poderes se encontram no âmbito da soberania de Cristo. A contínua manutenção da criação é atribuída a Cristo: nele tudo subsiste (v. 17). Ainda que a linguagem lembre a filosofia platônica e estoica, servindo possivelmente até como ponto de contato com leitores familiarizados com a mesma, o conteúdo da mensagem é claramente outro: quem sustenta a criação é o Cristo encarnado, crucificado e exaltado.
Os v. 18-20 apontam para a identidade de Cristo como redentor. Como em Romanos 8.29, Cristo, o primogênito, é o fundador de um novo povo. Ele não somente é o primogênito da criação (cf. v. 15), como também o primogênito da nova criação, o primogênito dentre os mortos (compare 1Co 15.20-23). Enquanto o v. 16 ressalta a criação por meio dele, o v. 20 ressalta a reconciliação de todas as coisas nos céus e na terra, estabelecendo a paz por causa do seu sangue derramado na cruz (v. 20). A seção da perícope que vai do v. 21 até o v. 23, entre o hino e a parte que trata das questões relativas ao ministério apostólico de Paulo, retorna ao discurso direto e leva adiante a temática dos v. 13 e 14, apontando para a realidade anterior (pote) à reconciliação realizada por Deus em Cristo, a qual é claramente contrastada com a nova realidade em Cristo (nyni de). Percebe-se a sequência “mas agora – para – desde que”. A reconciliação com Deus realizada por Cristo não traz somente benefícios cósmicos, como também benefícios pessoais. A reconciliação aconteceu “para” que os colossenses pudessem ser apresentados a Deus santos, inculpáveis e livres de qualquer acusação (v. 22), “desde que” permanecessem firmes na fé anunciada. A reconciliação, cf. os v. 21-23 esclarecem, tem a ver com aqueles que ouviram a palavra da reconciliação e a aceitaram (cf. O´Brian, 1982, p. 57).
Os v. 24-28, parte final do texto da prédica, ressaltam o ministério de Paulo diante de possíveis insinuações de que suas intenções ministeriais não seriam legítimas (compare os capítulos 10-13 de 2Co). Nessa “apologia”, destacam-se a integralidade do ministério, os sofrimentos de Paulo em favor do plano de Deus entre os gentios. “Completar os sofrimentos de Cristo” não significa que o autor considere a obra de Cristo como insuficiente. Antes, Paulo se inclui nos sofrimentos que são inevitáveis ao discípulo por não ser maior do que seu Senhor (veja Jo 15.20). É possível que por trás desse pensamento esteja a mentalidade do judaísmo apocalíptico, de que antes da vinda do soberano ungido, o povo de Deus seria conclamado a sofrer (cf. Martin, 1984, p. 80).
A responsabilidade atribuída ao autor consistia em dar pleno cumprimento à palavra de Deus em vós (v. 25). Essa palavra, a saber, o mistério outrora oculto, mas agora revelado (compare 1Co 2.7-10), a inclusão dos gentios nos planos de Deus, deveria ter efeito completo na vida dos cristãos colossenses, sendo que para isso Paulo se esforça. O trabalho de Paulo consiste em “anunciar, advertir e ensinar” (v. 28). O anúncio refere-se justamente à notícia da participação dos gentios no plano de redenção em Cristo, sendo que o “advertir”, no Novo Testamento, está ligado muitas vezes à instrução de novos cristãos, à educação das crianças na família cristã, enquanto o ensino tem a ver, provavelmente, com a luta contra as heresias que ameaçavam a comunidade.
3. Meditação
O texto da prédica enfatiza o alcance da obra realizada por Deus em Jesus Cristo e seu resultado na vida daqueles que creem, e o incentivo para que o resultado da obra de Cristo tenha ação completa nos crentes. Do domínio das trevas, ou como diz ainda o autor da Carta aos Efésios, sendo estrangeiros quanto às alianças da promessa, sem esperança e sem Deus no mundo (cf. Ef 2.12), os fiéis da cidade de Colossos, de proveniência não judaica, são confirmados como alvo do amor de Deus em Jesus. Tendo recebido a boa notícia do evangelho (cf. Cl 1.7), a comunidade é exortada à permanência no evangelho, uma vez ameaçada por outros pensamentos filosóficos e religiosos que colocavam em risco, ou, pelo menos diluíam o significado da obra de Jesus Cristo. Em Cristo, assim afirma o autor de Colossenses, estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento (cf. Cl 2.3), nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade (cf. Cl 2.9). O capítulo 2 da carta deixa transparecer as falácias teológicas que ameaçavam a comunidade. Está em jogo a mensagem da suficiência da obra de Deus em Jesus. A pergunta pela pessoa de Jesus e sua obra precisa ser constantemente respondida.
Os v. 13 e 14 afirmam que tirar os seres humanos de uma realidade de trevas e escuridão ou de um obscurantismo religioso é obra do próprio Deus em Jesus. É ele quem nos transporta para outra realidade de vida. Pecado não é somente uma palavra em desuso ou uma palavra que descreve uma situação de um ser humano distante de nós mesmos. O pecado está presente no dia a dia e leva diariamente à morte, a realidades de morte; à destruição pessoal, familiar, comunitária; à alienação e ao isolamento; à solidão; à opressão e à escravidão. Isso se mostra claramente tanto nas páginas dos jornais como no mais íntimo de nosso ser, em nossa história e rotina pessoal.
A libertação não acontece por meio daquilo que eram as filosofias e propostas propagandeadas em Colossos, que se fundamentavam em tradições humanas, superstições diversas, adoração de anjos (cf. Cl 2.18), visões, rigidez ascética (cf. Cl 2.21-23), e que, no fundo, não passavam de tentativas humanas, de obras humanas. A boa notícia é que a obra de Cristo é suficiente. A obra de Cristo é suficiente e pessoal, mas não somente isso. Jesus não é um Cristo domesticado, limitado aos dilemas do meu coração. Esse é justamente um segundo aspecto muito importante a ser ressaltado a partir do texto da prédica. A realidade do pecado é mais ampla. Tanto mais ampla é também a abrangência da obra de Cristo.
Em forma de hino, o autor da Carta aos Colossenses ressalta tudo isso dos v. 15-20. A criação do que é visível e invisível, poderes e autoridades visíveis e invisíveis (o texto afirma uma realidade invisível!) foram criadas por ele e para ele (cf. v. 16). Nele também tudo subsiste, dele a criação continua dependente e a paz foi estabelecida por meio do alto preço do seu próprio sangue na cruz (cf. v. 20). Num terceiro momento, o texto passa a exortar os leitores. Uma vez reconciliados com Deus (cf. v. 22), são chamados a continuar alicerçados e firmes na fé, sem se afastar da esperança do evangelho (cf. v. 23). As tentações em forma de esoterismo e autoajuda, de ideologias políticas, de “um evangelho psicologizado e domesticado”, de “propostas legalistas alienantes” se multiplicam também em nossos dias, e também para nós vale o chamado à perseverança, a não nos afastar da verdadeira esperança do evangelho.
Proclamar, advertir e ensinar continuam sendo papel do ministério confiado à igreja. Somente por meio disso é que a comunidade será fortalecida para enfrentar os desafios que lhe são apresentados em seu tempo, as novas formas de diluições e desvirtuações do evangelho de Deus em Jesus Cristo. “O óbvio precisa ser dito”, as bases da fé precisam ser reafirmadas. O ministério da palavra, que nos é tão caro, não pode ser negligenciado e a comunidade não poderá se desenvolver adequadamente recebendo sempre “alimento diluído”.
4. Imagens para a prédica
Quando Paulo defende seu ministério diante da comunidade de Colossos, suas intenções legítimas, seus sofrimentos como testemunha de Cristo “em favor do seu corpo, que é a igreja” (cf. Cl 1.24), sua missão ao proclamar, advertir e ensinar “com toda a sabedoria” (cf. Cl 1.28) em meio a heresias que ameaçavam a comunidade, valeria a pena trazer à mente a imagem dos profetas que chamavam o povo de Deus constantemente ao arrependimento. Em Oseias os próprios sacerdotes são advertidos e o Senhor afirma: Meu povo foi destruído por falta de conhecimento (Os 4.6). A realidade descrita de forma plástica em Oseias 4 ressalta a necessidade de ensino e exortação. O povo de Deus em todos os tempos, liberto pelo agir maravilhoso, é chamado em todos os tempos ao retorno, à perseverança, uma vez reconciliados com Deus.
5. Subsídios litúrgicos
Vários hinos que enfatizam a pessoa de Jesus Cristo, sua soberania sobre a criação e redenção, poderiam ser utilizados antes e depois do momento da prédica, para a moldagem da liturgia (p. ex., 173, 614 – Livro de Canto da IECLB). Ainda outro aspecto ressaltado pelo texto da prédica é a evangelização, a educação e o ensino na fé diante dos grandes desafios e heresias. A dúvida a respeito da suficiência de Cristo, de sua obra na cruz, a teologia da glória e as mais variadas superstições que se infiltram também em nossas comunidades são constantemente notícia e podem ser utilizadas.
Bibliografia
MARTIN, Ralph P. Colossenses e Filemom. Introdução e Comentário. Trad. Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1984.
O`BRIAN, Peter T. Colossians, Philemon. In: HUBBARD, David A.; BARKER, Glenn W. (Eds.). Word Biblical Commentary. Waco, Texas: Word Books, 1982. v. 44.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).