Cristo, mistério de Deus revelado
Proclamar Libertação – Volume 42
Prédica: Colossenses 1.24-27
Leituras: Isaías 52.7-10 e Mateus 12.14-21
Autoria: Wilhelm Sell
Data Litúrgica: Epiafnia de Nosso Senhor
Data da Pregação: 06/01/2018
1. Introdução
Estamos na Epifania, data litúrgica na qual celebramos a manifestação de Deus em Jesus, o Cristo. Ele é luz que irrompe nas trevas. É a esperança concreta, real e divina, que se manifesta diante de toda desesperança. É palavra de Deus, em quem subsistem todas as coisas, fazendo-se presente, irrompendo na história e revelando o amor de Deus. É Deus que se revela como aquele que nasce humilde, pobre, à margem do mundo, e que abraça todo o mundo e todas as pessoas, iniciando com aquelas que, negligenciadas, foram e são esquecidas e excluídas no decorrer da história.
O texto de Isaías 52.7-10 relata, como experiência do povo de Israel, a esperança que brota diante de toda desesperança. No contexto histórico da passagem bíblica, vemos como o povo de Deus, que está em situação de exílio na Babilônia, é abraçado com a notícia de que os persas avançam em suas conquistas e que logo chegariam à Babilônia. Aliado a isso, a notícia da benevolência do rei da Pérsia no trato com os povos sob seu domínio certamente era a grande possibilidade de retorno e reestabelecimento da nação e, assim, de sua identidade e dignidade. Numa leitura cristológica, é também profecia de uma esperança que, ampliada, se concretiza na vinda de Jesus Cristo, meio pelo qual Deus reconciliará consigo o mundo e restaurará a criação, não somente num evento local na história, mas de forma supra-histórica. Ou seja, Deus se movimenta na história com sinais que ultrapassam seu próprio tempo e que encontram em Cristo seu núcleo e plenitude, trazendo o reestabelecimento do próprio ser.
É no evangelho, por exemplo Mateus 12.14-21, que enxergamos a concretização da promessa e profecia em toda a sua amplitude. No encontro com Jesus Cristo, encontra-se o repouso da espera, mesmo inconsciente, de todos os povos (v. 21). Assim também os “magos”, lembrados sempre em tempo de Epifania, são “gentios” que, atentos aos sinais na terra, procuram com esperança até encontrar o menino nascido em Belém, cidade simples e sem atributo notável, repouso de todo anseio; reconhecem nele aquilo que Agostinho expressou na seguinte frase: “Tu mesmo que incitas ao deleite no teu louvor, porque nos fizeste para ti, e nosso coração está inquieto enquanto não encontrar em ti descanso”.
2. Exegese
O texto indicado para a pregação é o de Colossenses 1.24-27. Ele encontra correspondência com os outros dois textos indicados para leitura. É uma perícope pequena, mas densa em conteúdo, principalmente pelo contexto da carta e a intencionalidade de seu autor. Existem, na pesquisa, alguns questionamentos acerta da autoria da carta. As dúvidas se dão por encontrar-se na carta alguns aspectos não tão comuns em outras cartas paulinas, principalmente com relação à linguagem e ao estilo, pela introdução de uma cristologia “cósmica”, e algumas nuanças com relação à eclesiologia e também escatologia. Isso daria possibilidade de pensar num discípulo de Paulo como autor da carta. No entanto, reflexos dessa cristologia “cósmica” já se encontram em 1 Coríntios 2.8; 8.6; 2 Coríntios 4.4; Gálatas 4,3,9; Filipenses 2.10; e os outros aspectos apontados, como a eclesiologia e escatologia, são diferenças de ênfases que Paulo dá devido ao contexto e às circunstâncias da comunidade de Colossos.
Colossos era uma cidade pequena e relativamente insignificante no tempo da carta. Estava situada no vale do rio Lico, há aproximadamente 160 km a leste de Éfeso e, com Laodiceia e Hierápolis, pertencia à província romana da Ásia. A comunidade era resultado indireto das missões de Paulo. O apóstolo contou com a ajuda de cristãos “discipulados” por ele, cooperadores, que implantaram uma série de igrejas na província da Ásia. As igrejas surgidas em Colossos, Laodiceia e Hierápolis são frutos do trabalho de Epafras (At 1.7; 4.12,13). Supõe-se que ele, natural de Colossos, tenha se tornado cristão numa visita a Éfeso e que, impactado pelo evangelho, volta para sua cidade e, pelo seu ensino, forma essa comunidade. A maioria das pessoas dessa nova comunidade era antes gentia. No entanto, surge aparentemente na vivência comunitária uma ameaça externa com relação à doutrina. A carta surge então porque em determinada ocasião Epafras faz uma visita a Paulo em Roma e o informa como estão as comunidades do vale do Lico. Grande parte do relato foi muito positivo e encorajador, mas um aspecto inquietante era um falso ensino que, pela sua atratividade, estava ameaçando a vivência de um evangelho libertador. Essa realidade positiva, mas também a preocupação quanto ao evangelho faz com que Paulo escreva sua carta.
Ao que se percebe, os membros da comunidade estavam sob algumas pressões externas que são possíveis de identificar pelas exortações, falas e conselhos do apóstolo. Por exemplo, em Colossenses 2.8-23, texto que imediatamente sucede a perícope aqui em estudo, notamos algumas preocupações: “filosofias vãs”; possiblidade de nova escravidão; referências à “plenitude” de Cristo e à “circuncisão feita por Cristo”; instruções específicas sobre autodisciplina; regulamentação sobre comida e dias sagrados, forte ênfase no que “Cristo já realizou” e a liberdade recebida; revelam o teor dessas heresias que estavam se fazendo presentes na igreja. Não se sabe ao certo a dimensão de sua influência e talvez não seja tão ampla, já que Epafras não volta logo para Colossos e permanece com Paulo em Roma. O que se pode presumir é que essas “doutrinas” eram influências vindas de duas perspectivas não excludentes: parece ser um misto da religiosidade judaica, com a qual passava-se a exigir que certas leis da Torá não fossem deixadas de lado no propósito de alcançar uma santidade mais condizente com a vida cristã, com algo parecido com um pré-gnosticismo, uma filosofia judaico-mística com influências externas, que afirmava a necessidade de um aperfeiçoamento da obra de Cristo por meio da ascese, para dessa maneira alcançar a verdadeira plenitude (Cl 1.9,28; 2.10,16,18,21,23; 3.5,14; 4.12).
Diante disso, o que nitidamente se percebe é que Paulo, pelo seu zelo em relação ao evangelho, quer mostrar que o querer aperfeiçoar a obra redentora de
Cristo através de esforços e empenhos próprios no agir e pensar é pura religiosidade humana e não tem a ver com o que Deus realizou em Cristo, aliás, é sua própria negação. Se a carta foi mesmo escrita em Roma, então a data mais provável de seu envio foi entre 60 e 61 d.C.
Quanto ao texto em questão:
v. 24: Paulo fala do seu sofrimento. Enquanto escreve a carta, está preso em Roma por causa de sua insistência na propagação do evangelho. No entanto, esse sofrimento não pode ser entendido como completude da obra de Cristo, mas são aflições que ele e toda a igreja, como corpo de Cristo, enquanto fiel ao evangelho, sofrem. E sendo sofrimento da igreja (Jo 15.21ss) é sofrimento do próprio Cristo, já que se entende a igreja como Cristo presente na realidade, por isso a favor de seu corpo. O batismo nos conecta a Cristo tanto no sofrimento como na salvação. Paulo entende que seu sofrimento trouxe benefício para a igreja (2Co 1.5-7; 4.10-12; Ef 3.13).
v. 25: a palavra que neste versículo é traduzida como dispensação é o termo oikonomia, no grego. No sentido que Paulo emprega o termo, tem a ver com a missão que ele recebeu de mordomia da “casa do Senhor”. Não é ele que se institui nesse cargo, como fazem alguns “pastores” em nossos dias, mas foi chamado e instituído pelo próprio Senhor da igreja. Seu serviço, como ele o entende, está em fazer conhecido o plano de Deus acerca de toda realidade a partir do evangelho e da obra vicária de Jesus Cristo.
v. 26: o mistério é aqui empregado por Paulo referindo-se a um discurso das filosofias místicas por ele combatido. O verdadeiro mistério de Deus, que estava oculto, foi revelado plenamente em Jesus Cristo (Cl 2.2). Contrastando com os “segredos ocultos” da mística, presente no contexto de Colossos e revelados a alguns “iniciados”, Paulo mostra a verdade não mais oculta, mas revelada no amor de Deus à humanidade.
v. 27: foi por iniciativa de Deus o conhecimento advindo por meio da sua revelação em Cristo Jesus. E isso não acontece somente entre o “povo de Deus”, mas é para todas as pessoas, também os gentios. E Cristo continuamente se faz presente na vida dos cristãos pelo agir do Espírito Santo. Essa presença é renovada de maneira viva e eficaz na palavra e nos sacramentos (Rm 8.10). Essa realidade se dá já em esperança da glória, trazendo resquícios e sinais do reino de Deus no dia a dia.
3. Meditação
À primeira vista, essa passagem parece ser restrita para formular uma pregação ou mensagem. No entanto, se levarmos em conta o contexto e os textos paralelos, teremos boas possibilidades de reflexão. Destaco algumas questões que chamam atenção e que podem servir de auxílio homilético.
a) É muito interessante o contexto da carta. A atuação de Epafras na divulgação do evangelho na região do rio Lico é admirável. Ele fica impactado pelo evangelho libertador pela boca do apóstolo Paulo, em Éfeso, e provavelmente decide passar um tempo aprendendo sobre o Deus revelado em Jesus Cristo; depois, ao voltar para sua terra, compartilha a mensagem a ponto de, a partir disso, serem formadas três comunidades: Colossos, Laodiceia e Hierápolis. Sua preocupação diante de discursos duvidosos que estavam influenciando membros da comunidade de Colossos e região o faz procurar Paulo em Roma, ao qual relata as alegrias e também suas preocupações em relação às comunidades, situação a partir da qual o apóstolo se dirige também à comunidade de Colossos por carta. Mesmo não conhecendo as comunidades da região do rio Lico pessoalmente, ele é conhecido como apóstolo, chamado pelo próprio Cristo. Vemos aqui o zelo e a preocupação, tanto de Paulo como de Epafras, para que a comunidade e seus membros permaneçam fiéis ao evangelho libertador e pleno de Cristo.
Sabe-se que essa situação não é algo novo. Também hoje existe uma enorme dificuldade na vivência da fé diante de tantas vozes que destoam do evangelho de Cristo, da plenitude de sua obra, dele como Palavra eterna por meio do qual todas as coisas foram feitas e subsistem. Assim como diz a terceira estrofe do hino 336 do HPD 2: Quando o povo se reúne o Evangelho atento a ouvir, se apercebe que no mundo há mil vozes a iludir. A palavra desafi a, não nos deixa acomodar. /: A mensagem que traz vida aos aflitos quer chegar. :/
b) Aliado a isso, uma das grandes lições que a perícope em questão nos traz é o exemplo de serviço do apóstolo Paulo. Como bem sabemos nem tudo eram flores. Por sua fidelidade ao evangelho de Cristo, ele sofreu perseguições e prisão. No entanto, diante de todas as circunstâncias, ele é mordomo na oikonomia, no serviço que recebeu da parte de Deus. Nessa mordomia, Paulo serve com os dons que recebeu da parte de Deus. A pergunta reflexiva que poderia ser feita é sobre a disponibilidade dos dons para o serviço no reino de Deus. Em muitas situações, pessoas somente servem ao reino de Deus de maneira que seja confortável,mas, quando surgem algumas dificuldades, ficam de fora. Como Bonhoeffer bem nos lembra, a igreja, a partir de seus membros, é presença de Cristono mundo. Nesse sentido, como lemos no v. 24, todos os cristãos, assim comoPaulo, quando seguem o chamado ao serviço preenchem o que resta das aflições de Cristo. Como visto na exegese, não como completude da obra de Cristo, mas como Cristo concreto na realidade por meio da igreja, seu corpo.
c) Por último, vimos que a comunidade de Colossenses é formada, ao que se aponta nas pesquisas, de maioria gentílica. No tempo de Epifania, na qual estamos, somos mais uma vez lembrados, também por essa perícope, que Deus, em amor por toda a humanidade, por toda a sua criação, realiza a reconciliação com o mundo na pessoa de Cristo. O mistério que esteve oculto foi revelado (v. 26). As perguntas pelo sentido da vida, a busca por entendimento, por realização, por justificação, encontram em Cristo todas as respostas. Ele é a imagem do Deus invisível (v. 15), nele todas as coisas foram criadas (v. 16), por ele e para ele a criação existe (v. 17), por meio dele o mundo é reconciliado (v. 20), e pela sua obra nos tornamos de inimigos em amigos de Deus (v. 21). Diferente de todos os outros tipos de crenças e religiosidades, a fé cristã, de maneira ímpar, revela um Deus gracioso, do qual o amor não depende de obras ou ações anteriores, mas é sua própria natureza. É essa plenitude em Cristo que o próprio Deus quis dar a conhecer (v. 27) entre toda a humanidade. É essa verdade e realidade que podem dar verdadeira esperança. Nesse sentido, o evangelho tem uma mensagem preciosa que precisa estar revelada na vida de todas as pessoas. Pois, como confessa Agostinho: “Tu mesmo que incitas ao deleite no teu louvor, porque nos fizeste para ti, e nosso coração está inquieto enquanto não encontrar em ti descanso”.
4. Imagens para a prédica
Compartilho um poema de Dietrich Bonhoeffer, de julho de 1944, que ajuda na reflexão:
Pessoas se aproximam de Deus na sua dor,
imploram por auxílio, felicidade e pão;
por salvação de doença, culpa e morte.
Assim fazem todos, todos: cristãos e pagãos.
Pessoas se aproximam de Deus na sua dor,
acham-no pobre, insultado, sem agasalho, sem pão.
Veem-no coberto de pecado, fraqueza e morte.
Cristãos ficam ao lado de Deus na sua paixão.
Deus se aproxima de todas as pessoas na sua dor,
satisfaz o corpo e a alma com o seu pão,
sofre por cristãos e pagãos a morte na cruz e a ambos concede perdão.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de fé (Dietrich Bonhoeffer)
Creio que Deus pode fazer com que de tudo, mesmo do negativo, resulte algo bom. Para isso necessita de homens e mulheres que permitam e creiam que tudo lhes servirá para o bem.
Creio que Deus nos pode dar em cada situação difícil a capacidade de resistir. Mas não a dá adiantado, para que não confiemos em nossas próprias forças, e sim em seu poder. Essa confiança nos livrará do medo e do temor pelo futuro.
Creio que nossos erros e fracassos não são em vão e que para Deus não é mais difícil utilizá-los como faz com nossos sucessos. Creio que Deus não é um destino cego e indiferente, mas que espera nossas orações e nossos atos responsáveis.
Bibliografia
BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e Submissão: cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2003.
BOOR, Werner de. Carta aos Colossenses. Curitiba: Esperança, 2006. (Comentário Esperança).
CULLMANN, Oscar. A Formação do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2001.
RIENECKER, Fritz; ROGERS, Clean. Chave linguística do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1995.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).