Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: Colossenses 3.12-17
Leituras: 1 Samuel 2.18-20, 26 e Lucas 2.41-52
Autor: Mauri Tarcísio Perkowski
Data Litúrgica: 1º Domingo após Natal
Data da Pregação: 30/12/2012
1. Olhar para a vida
“Pouco a pouco, cresce a descoberta de que a palavra de Deus não está só na Bíblia, mas também na vida, e de que o objetivo principal da leitura da Bíblia não é interpretar a Bíblia, mas sim interpretar a vida com a ajuda da Bíblia” (Carlos Mesters e Francisco Orofino). “Conhecer a Bíblia leva a conviver em comunidade; conviver em comunidade leva a servir ao povo [conhecendo sua realidade]; servir ao povo, por sua vez, leva a desejar um conhecimento mais aprofundado do contexto de origem da Bíblia, e assim por diante” (Tea Frigerio). Peço licença às leitoras e aos leitores do PL para abordar o texto previsto utilizando alguns elementos da Metodologia da Leitura Popular da Bíblia, promovida pelo Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), uma associação ecumênica que há 33 anos promove a Leitura Popular e Comunitária da Bíblia no Brasil. Proponho, a mim e a vocês, essa “aventura”, não como conhecedor experiente, mas humildemente como aprendiz iniciante.
Poderíamos dizer, de forma geral, que os três textos previstos para este domingo falam de crescimento. Samuel crescia diante de Javé e era estimado por Javé e pelo povo. Jesus crescia em sabedoria, estatura e graça diante de Deus e das pessoas. A comunidade cristã de Colossos, da mesma forma, é estimulada a crescer diante de Deus e das pessoas, cultivando aquilo que recebeu de Cristo: perdão, graça, sabedoria, amor, paz.
Este domingo situa-se entre Natal e Ano Novo. Nesse contexto, o tema comum dos três textos, especialmente o da prédica, pode contemplar votos, desejos, esperanças e compromissos para o futuro – em nosso caso, o novo ano. Vemos nesta época as pessoas desejando-se mutuamente paz, saúde, prosperidade, felicidades… “Muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender.” No entanto, muitas vezes, quando falta o aspecto comunitário, os desejos acabam se tornando lutas pessoais e não comunitárias.
– Até que ponto existe na comunidade um convívio que promove a ajuda mútua ou a mobilização focada em causas comunitárias?
– Ninguém se reveste da nova humanidade sozinho. Vestir-se de “sentimentos de compaixão, bondade, humildade, mansidão, paciência”, suportar-se e perdoar-se mutuamente “do mesmo modo que o Senhor nos perdoou”, vestir–se com o amor, a paz de Cristo reinar no coração… permanecer na palavra de Cristo… nada disso se vive sozinho. Somente permanecemos assim em Cristo se vivermos como “membros de um mesmo corpo”, ou seja, auxiliando-nos e encorajando-nos mutuamente. Nossas comunidades têm sido espaço de auxílio e encorajamento mútuo para essa vivência em Cristo?
2. Buscar a luz da palavra de Deus
2.1 – Situando
As comunidades da chamada “segunda geração cristã” – como Colossos – viviam um período de crise. Os discípulos e as discípulas da primeira geração já haviam morrido. Intensificou-se a perseguição por parte dos líderes das sinagogas, que, após terem passado por grande crise com a destruição do templo de Jerusalém (ano 70), reorganizaram-se a partir do Sínodo de Jâmnia (anos 85-90). Houve repressão por parte do Império Romano na época dos imperadores Vespasiano (69-79), Tito (79-81) e sobretudo Domiciano (81-96). Foi para ajudar as comunidades a sobreviver a essa crise que nasceram esses escritos: para ser apoio e luz num período de incerteza e insegurança quanto à continuidade da caminhada. Assim, diferentes das cartas autênticas de Paulo, mais voltadas para a superação de crises internas, as cartas da segunda geração demonstram o interesse de fortalecer a estrutura das comunidades para sua sobrevivência em um novo momento histórico.
A pesquisa recente indica que o autor da Carta aos Colossenses é um discípulo de Paulo, talvez Timóteo (1.1). Assim como outras cartas daquela época, é atribuída ao patrono da comunidade, nesse caso, o apóstolo Paulo. É situada em torno do ano 95, escrita em Éfeso, antes da Carta aos Efésios, pois essa depende daquela. Sua eclesiologia é mais institucionalizada, refl etindo anos posteriores a Paulo.
Embora seja chamada de carta, Colossenses, assim como Efésios, é um tratado teológico-pastoral. Mais do que se referir apenas a questões bem específicas de uma determinada comunidade, é uma carta circular escrita para as igrejas da Ásia Menor. Pelos temas tratados, como o Cristo cósmico (Cl 1.15-20), Cristo como primícia e Senhor da criação (2.9-15), podemos captar o alto grau de inculturação na mentalidade grega. As comunidades de Colossos e Laodiceia (Cl 4.16) estavam ameaçadas por doutrinas que misturavam elementos de várias religiões e filosofias com o cristianismo (Cl 2.4,8,16-23). Davam importância às forças cósmicas, aos seres angélicos e a certas leis que garantiam a bênção. Contra essas filosofias, a carta faz uma apologia a Cristo como única ligação entre Deus e o mundo. O objetivo principal desse escrito é levar as comunidades a reconstruir sua esperança em Cristo.
A Frígia, onde está localizada Colossos, é uma região vulcânica, com frequentes terremotos. Em 61 d.C., a cidade foi quase completamente destruída por um terremoto, juntamente com as cidades vizinhas de Laodiceia e Hierápolis. Esses fenômenos faziam o povo crer que a região seria um campo de batalha entre os espíritos dos céus e os espíritos dos infernos. Para alcançar a compreensão gnóstica considerada iluminada (de que o Cristo, e não Jesus, é um espírito superior que veio para libertar as almas das trevas), exigiam-se rigorosas práticas ascéticas, como a observância de festas anuais, mensais ou de sábados (2.16), dando culto aos anjos (2.18), abstinência de vinho e de carne etc. Além disso, a população sofria a exploração econômica imposta pelo Império Romano. Havia amos e escravos (3.22 e 4.1). Ela sofria igualmente com o patriarcalismo, em que o homem era visto como superior à mulher (3.18-19) – desigualdades apoiadas pelo sistema greco-romano.
2.2 – Comentando
Nossa perícope situa-se na divisão 3.1-4.6, que traz conselhos práticos para a vivência nas comunidades, ou seja, o autor fala de como devem viver as pessoas cristãs. Indiretamente, o escritor pode estar dizendo à comunidade de Colossos que é a isso que devem dar atenção, mais do que aos capciosos argumentos dos falsos mestres. Contrastando com a ênfase individualista, típica das exortações helenísticas, as listas de vícios e virtudes que oferece o autor tendem a centrar-se em questões sociais como a inveja, calúnia etc.
V. 12-15 – As virtudes que se mencionam estão primordialmente orientadas à vida social, e não simplesmente ao crescimento pessoal. É impossível crescer em “compaixão, bondade, humildade, mansidão, paciência… perdão… amor… paz… gratidão”… sozinho. Essas virtudes só podem ser cultivadas num convívio comunitário. Por outro lado, é impossível viver em comunidade sem compaixão pelas limitações das pessoas, sem perdão e amor.
V. 15-17 – O autor mostra algumas ferramentas para que a comunidade cumpra esse objetivo. A mais importante delas é a Eucaristia. A expressão “sejam agradecidos” não é genérica, mas lembra especificamente a gratidão comunitária manifestada na celebração da Eucaristia, da maneira como a celebravam as primeiras comunidades cristãs: a escuta da palavra de Cristo, o compartilhar da Palavra e a ação de graças, composta por salmos, hinos e cânticos espirituais.
3. Iluminar a nossa vida com a luz da palavra de Deus
As virtudes recomendadas em nossa perícope aplicam-se às circunstâncias concretas da comunidade. Todo o conteúdo da carta trata não de questões doutrinais abstratas, desligadas da práxis de cada dia, senão o contrário. A carta é, em primeiro lugar, uma explanação da salvação que Cristo nos trouxe, salvação essa que nos liberta dos temores e das angústias de um universo falsamente sacralizado e misterioso que escapa à nossa compreensão. Ao mesmo tempo, a carta traz uma palavra de alento e de esperança para não se deixar enganar e poder assim fazer frente, com nosso testemunho cristão, a todas as hegemonias políticas, econômicas ou religiosas que procuram impor seu senhorio sobre o mundo com falsos messianismos. Em contraste com uma espiritualidade individualista, que busca a realização do eu num salto em direção ao divino, o crescimento cristão é aquele que se realiza em uma vida compartilhada na comunidade.
Lidas na sequência de 3.11, que diz: “E aí [revestidos da nova humanidade – v.10] já não há grego nem judeu, circunciso ou incircunciso, estrangeiro ou bárbaro, escravo ou livre, mas apenas Cristo, que é tudo em tudo”, podemos entender que os vícios é que geram as diferenças sociais – mormente “a cobiça de possuir, que é uma idolatria” (v. 5), enquanto as virtudes cristãs promovem soror-fraternidade. A nova humanidade tem como referência Jesus de Nazaré, que viveu de maneira nunca igualada a compaixão, bondade, humildade, mansidão e paciência. Revestir-se da nova condição, que é o mesmo que revestir-se de Cristo (cf. Rm 13.12,14; Gl 3.27), significa, em primeiro lugar, entrar no dinamismo de uma nova criação em que homens e mulheres vão se renovando “à imagem de seu Criador” (10). E ser “imagem de Deus” é o que dá verdadeira dignidade a todos e a cada um dos seres humanos. Consequentemente, todas as barreiras que dividem e discriminam devem desaparecer.
Somente a renovação em Cristo pode quebrar barreiras entre as pessoas, dando origem a novas relações humanas, radicalmente diferentes daquelas que costumam existir na sociedade (3.11). Dentro do contexto maior do capítulo 3, os conselhos práticos procuram fortalecer a nova humanidade conquistada por Cristo. Por meio do Batismo, as pessoas cristãs passam por uma transformação radical: deixam de pertencer à velha humanidade corrompida e começam a pertencer à nova humanidade. Na comunidade cristã, semente da nova humanidade, a transformação é coisa prática: deixar as ações que visam egoisticamente aos próprios interesses em troca de ações a serviço da reconciliação mútua e do bem comum. O que torna uma comunidade perfeita não é a ausência de falhas e limites em seus membros, mas sim a capacidade de amar sem medida, apesar dos limites e falhas de cada pessoa. 1 Pedro 4.8: “Antes de tudo, tenham entre vocês intenso amor, pois o amor cobre multidão de pecados”. O amor é laço/vínculo que mantém as pessoas unidas no mesmo corpo (3.15a).
Essa “verdadeira revolução da mensagem evangélica” não é para o apóstolo (e seus discípulos) um mero sonho utópico, senão que já está acontecendo graças a uma força infinitamente mais poderosa do que todo o poder desencadeado por todas as revoluções políticas, sociais ou ideológicas que têm agitado nosso mundo. Essa força é o amor: “E acima de tudo, vistam-se com o amor, que é o laço da perfeição” (v. 14), que penetra no coração da pessoa crente por meio da “Palavra de Cristo… com toda a sua riqueza” (v.16), que o autor descreve como compaixão profunda, mansidão, paciência (v. 12), que dão como resultado uma comunidade unida na ação de graças, na responsabilidade, no perdão e na ajuda mútua. Portanto, mesmo que o autor dê margem para enxergarmos nas recomendações dos v. 15-17 a celebração eucarística, ele tenta alargar os espaços, fazendo-a incidir em qualquer atividade, palavra ou ação, para que tudo seja realizado em nome do Senhor Jesus, de maneira que a vida inteira se transforme ação de graças a Deus Pai. A pessoa cristã não se identifica por uma lei, uma série de observâncias, e sim por determinado modo de agir. Não é o conteúdo dos atos que a caracteriza e sim determinada maneira de abordar a vida, o mundo, os outros. Não age, nem pensa ou reflete sozinha, mas sempre com uma perspectiva comunitária.
4. Caminhos para a prédica
Somos nós hoje o “povo da Aliança” (“escolhidos de Deus, santos e amados”). Nós temos esta vocação: ser testemunhas do amor de Jesus, que se traduz em “compaixão, bondade, humildade, mansidão, paciência”, suportar, perdoar… Ou seja: de nenhum outro povo da Terra se espera que represente e defenda esses atributos de Deus mais do que nós. Temos um chamado: ser pessoas que perseveram em manter em seus corações a paz de Cristo, a palavra de Cristo e toda a sabedoria que dela/s provém. E por isso, por sermos esses representantes de Cristo, nós podemos louvar e agradecer a Deus. Louvamos agradecidos a Deus por poder ser sinais de esperança onde vivemos. É um privilégio poder ser esses espelhos que refletem o amor de Deus, esses “canais do amor de Deus” (“canos/ tubos”, como dizia Lutero), por onde o amor de Deus entra, é recebido e é passado adiante, compartilhado. O autor da Carta aos Colossenses fala da importância da palavra de Cristo permanecer em nós “com toda a sua riqueza”. E logo em seguida, o autor diz como é que ela pode “permanecer”: “de modo que possam instruir-se e aconselhar-se mutuamente com toda a sabedoria” (v. 16). Ou seja, essa palavra cheia da sabedoria de Cristo somente permanece em nós quando é partilhada, instruindo-nos e aconselhando-nos mutuamente. “O verdadeiro amor nunca se desgasta. Quanto mais se dá mais se tem” (Antoine de Saint-Exupéry).
Duas imagens vêm à minha mente: lago ou caixa d’água. Na Palestina, existem dois grandes lagos, conhecidos por “mares”, irrigados pelo rio Jordão. Há uma grande diferença entre os dois. O primeiro deles tem uma entrada e uma saída: é o “Mar da Galileia”, onde há muitos peixes, muita vida dentro e ao redor. O outro só tem uma entrada e “não tem saída” (externa): é conhecido como “Mar Morto”! Da mesma forma uma caixa d’água: se tiver a sua saída trancada, não receberá mais água, devido ao sistema de fechamento através da “boia”. Essa água parada irá apodrecer, ou seja, morrerá dentro dela. Assim também nós: as virtudes permanecem vivas dentro de nós quando são compartilhadas. Tudo isso, no entanto, só permanece vivo em comunidade. Somos “membros de um mesmo corpo” (v. 15). Precisamos da comunidade para exercitar essas virtudes, mantê-las vivas, renovadas. Mas principalmente precisamos da comunidade para aprender juntos a viver essas virtudes.
5. Subsídios litúrgicos
Cantos do HPD 2, enfatizando a importância da caminhada como comunidade:
– Vento – 321 (invocação: O Espírito Santo nos reuniu aqui para nos encher “de paz, de amor e de alegria”);
– Somos a família de Deus – 322 (como glória, louvor e gratidão pela graça de sermos irmãos);
– Senhor, se tu me chamas – 413 (preparação para as leituras: “… eu quero te ouvir”, pois, “nos passos de teu filho, toda a igreja também vai, seguindo o teu chamado de ser santa qual Jesus”. Vamos ouvir a palavra de Deus que nos santifica);
– Se caminhar é preciso – 432 (após a prédica: a igreja só caminha, só avança, se caminharmos unidos);
– Momento novo – 434 (no final, Deus envia-nos a caminhar com seu povo, convidando, incluindo, chamando: “Vem, entra na roda com a gente também. Você é muito importante”).
Bibliografia
COMBLIN, José. Epístola aos Colossenses e Epístola a Filêmon. Série: Comentário Bíblico NT. Petrópolis: Vozes; São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista; São Leopoldo: Sinodal,1986.
GASS, Ildo Bohn. As comunidades cristãs a partir da segunda geração. Série: Uma Introdução à Bíblia. São Leopoldo: Centro de Estudos Bíblicos; São Paulo: Paulus, 2005.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).