Amados irmãos, amadas irmãs,
estamos vivendo o tempo comum, também chamado de tempo ordinário, agora sinalizado através da cor verde dos paramentos. De Dezembro até Maio, passamos por histórias incomuns ou extraordinárias:
· Advento: a preparação para a chegada do Messias Salvador;
· Natal: a encarnação de Deus entre os seres humanos em Jesus Cristo;
· Epifania: a revelação de quem é Jesus Cristo enquanto verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem (cristologia);
· Quaresma: tempo de arrependimento e de preparação para a semana santa;
· Páscoa: a Ressurreição do Senhor;
· Ascensão: a subida do Senhor Jesus aos céus;
· Pentecostes: a descida do Espírito Santo que marcou o nascimento da Igreja Cristã;
Estes são eventos extraordinários onde há destaque para o inesperado, para a surpresa e para a alegria. É o próprio infinito entrando para dentro do finito. É o tempo de Deus entrando para dentro da nossa história. É o poder de Deus se manifestando na fraqueza e na humildade. De Dezembro até Maio, vivenciamos como Igreja os feitos extraordinários de Deus, desde a inesperada encarnação de Deus em Jesus até à loucura da morte do próprio Deus na Pessoa do Filho na cruz.
E então, após o Pentecostes, o Calendário Litúrgico nos leva para o tempo comum que é o tempo das coisas ordinárias. Agora, é o tempo de refletir sobre as coisas comuns e ordinárias da vida. O tempo comum nos leva a compreender que a fé não vive apenas de eventos extraordinários, mas que o Espírito Santo age mesmo nas coisas mais insignificantes da nossa vida. O tempo ordinário é o tempo em que a “vida real” acontece, com seus dilemas, problemas, desafios, dúvidas, crises, doenças, ameaças etc. O tempo comum é o momento de aplicarmos tudo o que aprendemos sobre Jesus de Dezembro até Maio.
Mesmo em meio às coisas ordinárias da vida, somos convidados/as a mantermos a chama da esperança acesa. Por isso, a cor do tempo comum é a cor verde. “O verde simboliza a renovação da vegetação e dos seres vivos em geral e a promessa de uma nova vida”[1]. Em meio aos problemas do dia a dia, a cor verde dos paramentos é uma rememoração da esperança que temos na encarnação, morte, ressurreição e ascensão de Jesus. E é o próprio Espírito Santo quem nos lembra e anima através da esperança.
É no dia a dia que vivemos as coisas comuns da vida: os sofrimentos, os pesares, o luto, a dor, o desespero, a ansiedade, a depressão etc. Onde o Evangelho pode iluminar a nossa vida diante de tantos dilemas? Como o Evangelho de Jesus Cristo pode nos ajudar nas coisas mais comuns das nossas vidas? O que o Evangelho diz sobre Deus e a ordinariedade das nossas vidas?
O texto do Evangelho conforme Mateus que ouvimos é bastante esclarecedor. É uma fonte de água para saciar o deserto que há em nós; é um bálsamo para as nossas feridas mais doloridas; é um consolo para as nossas tristezas mais profundas. É o próprio Deus falando pessoalmente a nós seres humanos.
E assim, convido a olharmos para o texto bíblico a partir de três pontos:
1 A COMPAIXÃO DE JESUS
Sim. Na interpretação do texto bíblico, quero dar destaque a essa palavra: compaixão! Ela diz muito sobre o próprio Deus. E a palavra “compaixão” é profundamente marcante para o agir de Deus nos momentos mais ordinários e comuns das nossas vidas.
Jesus tem compaixão. A compaixão é a marca do ministério de Jesus. Percebemos isso logo no primeiro versículo do texto previsto para hoje: “Jesus percorria todas as cidades e aldeias, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do Reino e curando todo tipo de doenças e enfermidades”. (Mateus 9.35). Olhemos com mais atenção para três verbos desse versículo a partir do grego original do Novo Testamento:
· διδάσκων: Ensinando. A compaixão de Jesus começa pelo ensino. O ensino é o início de tudo. Precisamos ser humildes para reconhecermos que não sabemos (e nunca saberemos) tudo sobre Deus. Jesus não nos ignora em nossa ignorância, mas tem compaixão de nós. Além disso, o ensino é tarefa essencial da Igreja Cristã: “Portanto, ide e fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os (διδάσκοντες) a guardar todas as coisas que tenho ordenado. E eis que estou com vocês todos os dias até o fim dos tempos.” (Mateus 28.19-20). A partir do Pentecostes, somos convidados a perseverar no ensino dos apóstolos sobre Jesus, como a Igreja Primitiva: “E perseveravam na doutrina (διδαχῇ) dos apóstolos”. (Atos 2.42).
· κηρύσσων: Pregando. Jesus não apenas ensinava na sinagoga, mas também pregava da Boa Notícia (εὐαγγέλιον) do Reino. A novidade do Reino de Deus é a boa notícia proclamada por Jesus. O Reino de Deus é evangelho aos que mais precisam de esperança. Jesus disse: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para anunciar a boa notícia aos pobres, enviou-me para proclamar (κηρύξαι) libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos e proclamar (κηρύξαι) o ano aceitável do Senhor.” (Lucas 4.18-19). Essa é a boa nova. E Jesus é o próprio Evangelho!
· θεραπεύων: Curando. A palavra para a cura é, no grego original, a mesma palavra para terapia. Em Jesus, Deus se compadece das nossas enfermidades. Aliás, não apenas isso, mas, cumprindo Isaías 53, Jesus “tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si, e nós o considerávamos como aflito, ferido de Deus e oprimido”. (Isaías 53.4). Em nossos sofrimentos, não estamos sozinhos. Deus sofre conosco e é empático aos nossos sofrimentos.
Esses três verbos[2] são o próprio resumo do ministério de Jesus: ele ensina, ele prega e ele cura. É assim que ele revelava aos seus ouvintes a boa notícia do Reino de Deus em meio aos acontecimentos simples, banais e ordinários da vida. Porém, a compaixão de Jesus não se encerra nisso. Assim nos diz o v. 36: “Ao ver as multidões, Jesus teve compaixão delas, porque estavam aflitas como ovelhas que não têm pastor”. A palavra compaixão é no grego original ἐσπλαγχνίσθη e significa “revirar as entranhas”[3]. O Deus cristão é o Deus da compaixão. As entranhas de Deus se remexem quando ele vê os aflitos e exaustos. Deus não é indiferente ao sofrimento humano, mas sente os nossos sofrimentos. Deus é presente em meio aos nossos sofrimentos. Ele tem compaixão de nós em meio aos dilemas, problemas, desafios, dúvidas, crises, doenças e ameaças em nossas vidas. Assim, Jesus revela a nós o rosto amoroso, misericordioso e compassivo de Deus. Deus tem coração. E quando Deus vê uma multidão aflita, exausta e perdida, Deus tem compaixão! Suas entranhas se remexem por aqueles/as que sofrem. E o lugar em que a compaixão de Deus se demonstrou de maneira mais clara foi na vida, morte e ressurreição de Jesus.
2 A COMPAIXÃO DOS DISCÍPULOS
A partir disso (os sofrimentos do povo), Jesus faz uma constatação: “A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos”. (Mateus 9.37). Jesus dirige essas palavras aos seus doze discípulos. Havia muitas pessoas sofrendo. Havia muitas pessoas exaustas, aflitas e desamparadas. Fazia-se necessário que surgissem novas vocações! E o ministério da compaixão não começa através de um ativismo louco e desenfreado que atira para todos os lados procurando acertar em algum lugar; ao contrário, o ministério da compaixão começa na oração: “peçam ao Senhor da seara que mande trabalhadores para a sua seara.” (Mateus 9.38).
Um ministério não se faz com ativismo, mas com oração e ação. E a oração é o reconhecimento dos limites humanos. Somos incapacitados a cumprir a vontade de Deus. Mas é ele quem nos capacita. E tudo começa na oração, onde com humildade reconhecemos que sem o agir de Deus, todo o nosso trabalho será em vão.
E assim, os discípulos são chamados à missão: “Tendo Jesus chamado os seus doze discípulos, deu-lhes autoridade”. (Mateus 10.1). É interessante que Jesus não deu aos discípulos o poder, mas a autoridade. Enquanto o poder faz do ser humano um/a chefe, a autoridade faz do ser humano um/a líder; enquanto o poder faz o ser humano mandar, a autoridade faz o ser humano influenciar; enquanto o poder gera o descarte, a autoridade gera a misericórdia. Os discípulos são capacitados à autoridade, não ao poder. E com autoridade, primeiro eles anunciarão o Evangelho aos judeus: “ – Jesus enviou esses doze, dando-lhes as seguintes instruções: – Não tomem o caminho que leva aos gentios, nem entrem nas cidades dos samaritanos, mas, de preferência, procurem as ovelhas perdidas da casa de Israel”. (Mateus 10.5-6). A proclamação da compaixão de Deus não inicia aos de fora, mas aos de dentro. Da mesma forma, hoje a proclamação do Evangelho não inicia fora da Igreja, mas na própria Igreja para que a Igreja se torne a voz da proclamação do Evangelho ao mundo. O Evangelho que traz libertação; o Evangelho que traz cura; o Evangelho que traz salvação.
Esse é o conteúdo da proclamação: “Pelo caminho, proclamem que está próximo o Reino dos Céus” (Mateus 10.7), ou seja, está próximo o Reino das bem-aventuranças: humildade (cf. Mateus 5.3), sensibilidade (cf. Mateus 5.4), autocontrole (cf. Mateus 5.5), justiça (cf. Mateus 5.6), misericórdia (cf. Mateus 5.7), inocência (cf. Mateus 5.8) e paz (cf. Mateus 5.9). Enfim, está próximo um Reino que não é opressor como o Império Romano, mas um Reino que trará igualdade a todas as pessoas através da compaixão. E assim, vamos ao nosso terceiro e último ponto:
3 A COMPAIXÃO NA NOSSA VIDA
A partir do chamado de Jesus, os doze discípulos foram impulsionados a, com autoridade, exercerem a compaixão de muitas formas: “Curem enfermos, ressuscitem mortos, expulsem demônios. Vocês receberam graça; portanto, deem de graça.” (Mateus 10.8). A autoridade para tal não vinha deles mesmos, mas, como já vimos, do próprio Deus.
Da mesma forma, estamos nós convidados a servir compaixão a esse mundo tão individualista e tão cheio de dores e sofrimentos. A compaixão de Jesus é luz em meio à escuridão, esperança aos desesperados, consolo aos aflitos e vida aos mortos. Deus não espera de nós outra coisa senão a compaixão. No texto do Evangelho previsto para a semana passada, o 2º Domingo após Pentecostes, Jesus lembrou a palavra do profeta Oséias, onde Deus diz: “Misericórdia quero, não sacrifícios” (Oséias 6.6; Mateus 9.12). Deus não quer a nossa prática religiosa; Deus não quer o nosso pietismo; Deus não quer a nossa vanglória. O que Deus pede de nós é que hajamos com misericórdia; o que Deus pede de nós é que hajamos com graça tal qual recebemos da sua graça; o que Deus pede de nós é compaixão: que as nossas entranhas se revirem diante do sofrimento alheio.
Amados irmãos, amadas irmãs,
neste tempo comum das coisas ordinárias da vida, pratiquemos a misericórdia. É preciso agir. Ações valem mais que gestos. Oremos e ajamos! João Crisóstomo (347-407), um Pai da Igreja, diz: “Ele não esperou que os doentes viessem até ele. Ele mesmo se apressou em ir até eles, trazendo-lhes uma dupla bênção: o evangelho do reino de Deus e a cura de suas doenças. E por isso ele foi a todos os lugares, não negligenciando a menor aldeia”[4].
Também é nossa tarefa, enquanto comunidade, não esperar que as pessoas venham até nós. É nossa tarefa ir ao encontro de quem precisa. E essa é a tarefa mais difícil, pois envolve “desacomodação”. É preciso sair da zona de conforto para praticar a compaixão do Evangelho.
Ao mesmo tempo, praticar a compaixão, conforme Jesus ensinou, pregou e praticou, pode também levar à perseguição e à cruz. Sim! Há quem não goste da compaixão! Há quem não goste dos que ajudam os pobres e necessitados. Há quem não goste de quem vive os valores do Reino de Deus. O próprio Senhor Jesus foi morto na cruz e dos doze discípulos, dez foram mortos por pregarem a Boa Novidade do Reino de Deus.
Por isso, Jesus não nos ilude “romantizando” a nossa missão, pois ela pode custar nossa própria vida. Vale o alerta: “Sejam prudentes como as serpentes e simples como as pombas”. (Mateus 10.16). Agostinho de Hipona interpreta essas palavras, dizendo: “simples como pombas: sem prejudicar ninguém; astutos como serpentes: cuidando para não deixar que nos prejudiquem”[5]. Assim, sigamos com coragem, audácia e cuidado o Ministério da Compaixão nesse mundo tão carente de misericórdia. Amém.
3º DOMINGO APÓS PENTECOSTES | VERDE | CICLO DO TEMPO COMUM | ANO A
18 de Junho de 2023
P. William Felipe Zacarias