Apresentada originalmente em latim e em alemão perante a Dieta de Augsburgo, na presença do imperador Carlos V, a 25 de junho de 1530, como confissão de fé dos príncipes alemães, partidários do movimento da Reforma da Igreja desencadeado por Martinho Lutero, a Confissão de Augsburgo adquiriu importância fundamental e pode ser considerada “cédula de identidade” da Igreja Luterana.
Constitui um dos principais documentos de fé interpretativos das Sagradas Escrituras, sintetizando o conteúdo essencial da fé cristã na forma como é confessada pelas igrejas luteranas. Por seu significado histórico e sua relevância teológica, trata-se de um escrito de alcance ecumênico de interesse de toda a Igreja de Jesus Cristo e de todas as pessoas cristãs.
O texto da Confissão de Augsburgo, disponibilizado abaixo, foi cedido gentilmente pela CIL – Comissão Interluterana de Literatura. A publicação impressa, realizada pela Editora Concórdia e pela Editora Sinodal, conta com prefácio do Prof. Dr. Ricardo Willy Rieth e Posfácio do Prof. Dr. Claus Schwambach.
Características do livro:
Capa dura
Autor: Filipe Melâncton (Filipe Melachthon)
112 páginas
14,5 x 22 cm
ISBN: 978-65-5600-053-4
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CONFESSIO AUGUSTANA
CONFISSÃO DE AUGSBURGO
Confissão de fé [de alguns príncipes e algumas cidades][1]
apresentada ao invictíssimo imperador Carlos V, César Augusto, na Dieta de Augsburgo, no ano de 1530.
SALMO 119[.46]:
“Também falarei dos teus testemunhos na presença
dos reis e não me envergonharei.”
Prefácio[2]
Ilustríssimo, potentíssimo e invictíssimo imperador, clementíssimo Senhor! Vossa Majestade Imperial recentemente[3] se dignou a convocar uma Dieta Geral aqui para Augsburgo, indicando e desejando seriamente tratar de assunto referente ao turco, inimigo hereditário nosso e de quem se chama de cristão, a saber, avaliar a forma como se poderia oferecer dura resistência a ele com auxílio constante e a forma “como se poderia tratar da dissensão referente à sagrada fé e à religião cristã”[4], e “envidar esforços para ouvir, entender e ponderar entre nós com cordialidade e convicção, opinião e concepção de cada um e, conciliando-as, chegar a uma única verdade cristã, bem como descartar tudo o que as duas partes não puderem explicar ou tratar apropriadamente e aceitar e sustentar uma religião única e verdadeira, e, do mesmo modo que estamos e batalhamos sob um só Cristo, também vivamos todos em uma só comunhão, igreja e unidade”. Assim convocados do mesmo modo que os outros príncipes-eleitores, príncipes e estamentos, nós, abaixo nomeados príncipe-eleitor e demais príncipes com nossos aliados, prontamente nos pusemos a caminho para, sem querer gabar-nos, ter a honra de estar entre os primeiros a chegar aqui.
De acordo com esse edito e tendo em vista seu cumprimento em completa obediência, Vossa Majestade Imperial conclamou de modo magnânimo, mas também urgente e sério, todos os príncipes-eleitores, príncipes e estamentos, a que, nos assuntos relativos à fé, conforme o supramencionado edito de Vossa Majestade Imperial, cada parte formulasse e entregasse por escrito em língua alemã e em língua latina sua convicção, opinião e concepção atinentes a ditos erros, dissensões e abusos etc. Depois da devida ponderação e deliberação, foi proposto a Vossa Majestade Imperial, na quarta-feira passada[5], que de nossa parte entregaríamos hoje, sexta-feira[6], o texto em alemão e em latim, conforme a demanda de Vossa Majestade Imperial. Por isso, na mais submissa obediência a Vossa Majestade Imperial, alcançamos e entregamos aqui e agora a doutrina de nossos pastores e pregadores, bem como a confissão da nossa fé, a saber, o que eles pregam, ensinam e sustentam com base na divina Sagrada Escritura e o modo como o fazem em nossos territórios, principados, domínios, localidades e regiões.
Se agora os outros príncipes-eleitores, príncipes e estamentos também realizarem a entrega em duas vias, em latim e em alemão, de semelhante registro de sua concepção ou opinião, colocamo-nos à disposição com toda submissão a Vossa Majestade Imperial, Senhor clementíssimo de todos nós, para dialogar com eles e seus amigos sobre vias cômodas e tranquilas, buscando o entendimento, na medida em que isso puder ser feito com equidade, para que o modelo e os desejos trazidos por escrito pelas duas partes possam ser tratados com “cordialidade e amabilidade” e, visto que “todos nós estamos e militamos sob um só Cristo” e devemos confessar a Cristo, as dissensões possam ser conduzidas a uma única religião verdadeira, tudo de acordo com o já citado edito de Vossa Majestade Imperial e segundo a verdade divina. Por isso também queremos invocar com a máxima humildade o onipotente Deus e rogar-lhe que conceda sua graça divina para isso.
Porém, se, no tocante aos nossos senhores, amigos e especialmente aos príncipes-eleitores, príncipes e estamentos da outra parte, a negociação não resultar tão profícua e fecunda quanto dispõe o edito de Vossa Majestade Imperial – ou seja, não houver “uma negociação com cordialidade e amabilidade” –, ainda assim não terá faltado da nossa parte nada que possa servir à unidade cristã em conformidade com Deus e a consciência, como Vossa Majestade Imperial e os nossos referidos amigos e também os príncipes-eleitores, príncipes e estamentos, assim como todo apreciador da religião cristã que se deparar com essas coisas poderão constatar de modo magnânimo, amigável e suficiente a partir do que segue, ou seja, da confissão dos nossos teólogos, que também é a nossa.
No passado, Vossa Majestade Imperial deu a entender aos príncipes-eleitores, príncipes e estamentos do Império, especialmente por meio de uma instrução proclamada publicamente na Dieta Imperial realizada em Espira no ano de 1526, que, pelos motivos então anunciados, Vossa Majestade Imperial não pretendia tomar decisões que afetassem as questões atinentes à nossa sagrada fé, mas se empenharia enfaticamente junto ao papa pela realização de um concílio. E há um ano[7], na última Dieta Imperial, realizada em Espira, os príncipes-eleitores, príncipes e estamentos do Império foram informados e notificados por meio de uma instrução por escrito, da parte do representante de Vossa Majestade Imperial no Império, Sua Majestade Real da Hungria e da Boêmia[8], do porta-voz[9] e dos comissários indicados por Vossa Majestade Imperial, entre outras coisas, de que o representante de Vossa Majestade Imperial, o diretor e os conselheiros do governo imperial, além dos representantes dos príncipes-eleitores, príncipes e estamentos ausentes na Dieta Imperial convocada para Regensburg[10], refletiram sobre a questão do concílio geral e igualmente acharam profícuo agendar a sua realização. E, como os assuntos entre Vossa Majestade Imperial e o papa estavam se encaminhando para um bom entendimento cristão e Vossa Majestade Imperial tinha a certeza de que o papa não se recusaria a realizar esse concílio geral, Vossa Majestade Imperial dispôs-se magnanimamente a fazer diligências para que o papa primeiro permitisse convocar esse concílio geral em companhia de Vossa Majestade Imperial e que, nessa questão, nada deixaria de ser feito.
Assim, no caso em pauta, declaramos diante de Vossa Majestade Imperial em completa submissão e de sobejo nossa disposição para esse concílio cristão, geral e livre, conforme foi decidido pelos príncipes-eleitores, príncipes e estamentos, imbuídos de razões elevadas e corajosas, em todas as Dietas promovidas no Império durante o governo de Vossa Majestade Imperial. Já estivemos com Vossa Majestade Imperial por causa desse assunto de suma importância, quando apelamos [a um concílio] de modo formal e juridicamente correto[11]. Reiteramos nossa posição e não nos demoveremos dela por causa desta nem de subsequentes negociações (a não ser que essas dissensões sejam finalmente ouvidas, ponderadas e dirimidas “com cordialidade e amabilidade”, conforme o edito de Vossa Majestade Imperial, e conciliadas em um entendimento cristão), o que aqui publicamente atestamos e protestamos. E o que segue agora artigo após artigo é a nossa confissão que também é a dos nossos teólogos.
Artigos de fé e doutrina[12]
Artigo I
DE DEUS
Em primeiro lugar, ensina-se e mantém-se unanimemente, de acordo com o decreto do Concílio de Niceia, que há uma só essência divina, que é chamada Deus e verdadeiramente é Deus e, não obstante, há três pessoas nessa única essência divina, igualmente poderosas, igualmente eternas: Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo. Todas as três são uma única essência divina, eterna, indivisa, de incomensurável poder, sabedoria e bondade, infinita, um só criador e conservador de todas as coisas, das visíveis e das invisíveis. E com a palavra persona (“pessoa”) não se entende uma parte, uma propriedade [presente] em outro [ser], mas aquilo que subsiste por si mesmo, no sentido em que os Pais [da Igreja] usaram essa palavra nesta questão.
Rejeitam-se, ademais, todas as heresias que são contrárias a esse artigo, como a dos maniqueus[13], que estabeleceram dois deuses, um mau e um bom; também a dos valentinianos[14], arianos[15], eunomianos[16], maometanos[17] e de todos os similares, além da dos judeus e da dos samosatenos[18], os antigos e os novos[19], que afirmam uma só pessoa e sofismam acerca do Verbo e do Espírito Santo, dizendo que não são necessariamente pessoas distintas, mas que Verbo significaria palavra ou voz física e que Espírito Santo seria movimento criado nas criaturas.
Artigo II
DO PECADO ORIGINAL
Além disso, ensina-se que, depois da queda de Adão, todos os seres humanos naturalmente nascidos são concebidos e nascem em pecado, isto é, desde o ventre materno todos estão cheios de mau desejo e má inclinação e por natureza não podem ter verdadeiro temor a Deus nem verdadeiro amor por Deus nem verdadeira fé em Deus.
Também se ensina que essa epidemia inata e esse pecado hereditário verdadeiramente é pecado e que condena à ira eterna de Deus a quem não renascer pelo batismo e pelo Espírito Santo.
Aqui são condenados os pelagianos[20] e outros que não consideram o pecado hereditário como pecado, tornando, assim, a natureza piedosa por virtudes naturais e desonrando o sofrimento e o mérito de Cristo.
Artigo III
DO FILHO DE DEUS
Também se ensina que Deus Filho se tornou humano, nascido da pura virgem Maria, e que as duas naturezas, a divina e a humana, inseparavelmente unidas em uma única pessoa, são um só Cristo, que é verdadeiro Deus e verdadeiro ser humano, que verdadeiramente nasceu, padeceu, foi crucificado, morreu e foi sepultado, a fim de ser oferta não só pelo pecado hereditário, mas também por todos os outros pecados, bem como para aplacar a ira de Deus.
Igualmente [se ensina] que esse mesmo Cristo desceu ao inferno, verdadeiramente ressuscitou dos mortos no terceiro dia, subiu ao céu e está sentado à direita de Deus, para reinar eternamente sobre todas as criaturas e governá–las, a fim de santificar, purificar, fortalecer e consolar, pelo Espírito Santo, os que crerem nele, repartindo entre eles também vida e toda sorte de dons e bens, protegendo-os e defendendo-os contra o diabo e o pecado. Também [se ensina] que esse mesmo Senhor Cristo virá visivelmente no fim para julgar os vivos e os mortos etc., conforme o Symboli Apostolorum [Credo Apostólico]. E se condena todo tipo de heresia contrária a esse artigo.
Artigo IV
DA JUSTIFICAÇÃO
[Versão 1:][21] E, visto que os seres humanos nascem em pecado e não cumprem a lei de Deus nem podem amar a Deus de coração, ensina-se que não podemos merecer o perdão dos pecados por nossa obra ou satisfação, nem somos considerados justos diante de Deus por causa da nossa obra, mas obtemos o perdão dos pecados e somos considerados justos diante de Deus por causa de Cristo, em razão da graça por meio da fé, de modo que a consciência recebe consolo da promessa de Cristo e crê que certamente nos é dado o perdão do pecado e que Deus terá misericórdia de nós, considerando-nos justos e dando-nos a vida eterna por causa de Cristo que, com sua morte, reconciliou Deus e fez satisfação pelo pecado. Portanto, quem crê verdadeiramente obtém o perdão do pecado, torna-se aceitável a Deus e é considerado justo diante de Deus por causa de Cristo, Romanos 3 e 4[22].
[Versão 2:][23] Igualmente se ensina e se prega em nossas igrejas que não obtemos o perdão do pecado e a justiça válida diante de Deus por mérito, obra e satisfação nossos, mas exclusivamente pela graça de Deus por causa de Cristo, quando cremos que Cristo padeceu por nós e que, por sua causa, o pecado nos é perdoado e, em troca, a justiça e a vida eterna nos são presenteadas. Também [se ensina e se prega] que Deus quer nos creditar essa fé e considerá-la como justiça e piedade válidas diante dele, conforme diz São Paulo no terceiro e no quarto capítulos de Romanos. Assim fala também Santo Ambrósio, no primeiro capítulo da Primeira Epístola aos Coríntios: “Ou seja, por ordem de Deus quem crer em Cristo será bem-aventurado sem a ajuda de obras e obterá o perdão do pecado exclusivamente pela fé, em razão da graça e gratuitamente”[24].
Artigo V
DO MINISTÉRIO DA PREGAÇÃO
Para que se obtenha essa fé, Deus instituiu o ministério da pregação, deu evangelho e sacramentos, que são meios pelos quais age o Espírito Santo, consolando os corações e operando a fé onde e quando lhe apraz, naqueles que ouvem o evangelho, o qual ensina que temos um Deus gracioso por mérito de Cristo, caso creiamos nisso.
Condenam-se os anabatistas[25] e outros, os quais ensinam que merecemos o Espírito Santo mediante preparação e obras próprias, sem a palavra física do evangelho.
Artigo VI
DA NOVA OBEDIÊNCIA
Também se ensina que essa fé deve produzir bons frutos e boas obras e que, por amor a Deus, deve-se praticar toda sorte de boas obras ordenadas por ele, mas não se deve confiar nessas obras, como se pudéssemos, por meio de nossas obras, satisfazer a lei de Deus ou, em razão de nossas obras, ser considerados justos. Pois nós recebemos perdão dos pecados e somos considerados justos pela fé por causa de Cristo, como ele mesmo diz: “Depois de terem feito tudo isso, vocês devem dizer: ‘Somos servos inúteis’” [Lc 17.10]. Assim também ensinam os Pais, pois Ambrósio diz: “Assim foi decidido por Deus que quem cresse em Cristo seria bem-aventurado e obteria o perdão dos pecados não por obras, mas exclusivamente pela fé, sem mérito”[26].
Artigo VII
DA IGREJA
Ensina-se também que sempre deverá haver e se manter uma santa igreja cristã, que é a congregação de todos os crentes, entre os quais o evangelho é pregado puramente e os santos sacramentos são administrados de acordo com esse evangelho.
Porque para a verdadeira unidade da igreja cristã é suficiente que o evangelho seja pregado unanimemente de acordo com uma compreensão pura e os sacramentos sejam administrados em conformidade com a palavra divina. E para a verdadeira unidade da igreja cristã não é necessário que em toda parte se pratiquem cerimônias uniformes instituídas por seres humanos, como diz Paulo em Efésios 4[.4-5]: “Há somente um corpo e um só Espírito, como também é uma só a esperança para a qual vocês foram chamados. Há um só Senhor, uma só fé, um só batismo”.
Artigo VIII
QUE É A IGREJA
Igualmente [se ensina que], embora a igreja cristã nada seja propriamente além da congregação de todos os crentes e santos, mas, visto que, nesta vida, continuam entre os piedosos muitos falsos cristãos e hipócritas, bem como pecadores manifestos, os sacramentos são eficazes, mesmo que os sacerdotes que os administram não sejam piedosos, como indica o próprio Cristo: “Na cadeira de Moisés se assentaram os fariseus etc.” [Mt 23.2].
Por essa razão, são condenados os donatistas[27] e todos os outros que pensam de forma diferente.
Artigo IX
DO BATISMO
A respeito do batismo se ensina que ele é necessário e que, por meio dele, é oferecida a graça. Também se devem batizar as crianças que são confiadas a Deus e que se tornam agradáveis a ele por meio desse batismo.
Por essa razão, rejeitam-se os anabatistas, os quais ensinam que o batismo de crianças não é correto.
Artigo X
DA SANTA CEIA
A respeito da ceia do Senhor se ensina que o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de Cristo estão verdadeiramente presentes na ceia em forma de pão e vinho e nela são distribuídos e recebidos. Por essa razão, também se rejeita a doutrina contrária.
Artigo XI
DA CONFISSÃO DE PECADOS
A respeito da confissão de pecados se ensina que, na igreja, deve-se conservar a privata absolutio [absolvição individual][28] e não deixar que ela caia em desuso. Não obstante, durante a confissão, não é necessário enumerar todas as faltas e pecados, já que isso não é possível. Salmo 19[.12]: “Quem há que possa discernir as próprias faltas?”.
Artigo XII
DO ARREPENDIMENTO
A respeito do arrependimento se ensina que aqueles que pecaram depois do batismo obtêm o perdão dos pecados a qualquer tempo em que se arrependerem, e a igreja não deve lhes negar a absolutio [absolvição].
Ora, o arrependimento verdadeiro e autêntico propriamente nada mais é do que sentir contrição, pesar ou pavor por causa do pecado e, não obstante, crer simultaneamente no evangelho e na absolvição, crer que o pecado foi perdoado e que a graça foi obtida por meio de Cristo. Essa fé, por sua vez, consola e dá paz ao coração. Deve seguir-se o aprimoramento e o abandono do pecado, pois estes devem ser os frutos do arrependimento, como diz João em Mateus 3[.8]: “Produzam fruto digno do arrependimento”.
Aqui se rejeitam os que ensinam que não podem voltar a cair aqueles que, em algum momento, se tornaram piedosos. Em contrapartida, condenam-se também os novacianos[29], que negavam a absolutio [absolvição] a quem havia pecado depois do batismo. Rejeitam-se também os que não ensinam que o perdão dos pecados é obtido mediante a fé, sem nosso mérito, por causa de Cristo, mas que o merecemos por meio de nossa obra e nosso amor. Rejeitam-se ainda os que ensinam que as canonice satisfactiones [satisfações canônicas][30] são necessárias para remir do castigo eterno ou do purgatório.
Artigo XIII
DO USO DOS SACRAMENTOS
A respeito do uso dos sacramentos se ensina que foram instituídos não só para ser sinais que permitem reconhecer exteriormente os cristãos, mas também para ser sinais e testemunhos da vontade divina para conosco, visando a despertar e a fortalecer nossa fé para com eles, razão pela qual também exigem fé e então são usados corretamente quando os recebemos com fé e fortalecemos a fé com eles.
Por essa razão, são rejeitados aqueles que ensinam que os sacramentos tornam justo ex opere operato [pela mera realização], sem fé, e não ensinam que a fé deve ser acrescentada, que ali é oferecido perdão do pecado, o qual é obtido por fé e não por obras.
Artigo XIV
DA ORDEM ECLESIÁSTICA
A respeito da ordem eclesiástica se ensina que, sem um chamado regular, ninguém deve ensinar nem pregar nem administrar os sacramentos publicamente na igreja.
Artigo XV
DOS RITOS ECLESIÁSTICOS
A respeito dos ritos eclesiásticos estabelecidos por seres humanos se ensina que devem ser observados aqueles que podem ser praticados sem pecado e que contribuem para a paz e a boa ordem na igreja, como, por exemplo, certos feriados, certas festas e similares. Instruímos, porém, que não se devem sobrecarregar as consciências com essas coisas, como se esses ritos fossem culto necessário a Deus, sem os quais ninguém pudesse ser justo diante dele.
Além disso, se ensina que são contrários ao evangelho e à doutrina da fé em Cristo todos os preceitos e todas as tradições feitas por pessoas com o propósito de, por meio deles, reconciliar-se com Deus ou merecer o perdão do pecado ou ser considerado justo diante de Deus. Por essa razão, são inúteis e contrários ao evangelho os votos monásticos e outras tradições concernentes à distinção de alimentos, dias etc., pelas quais se pretende merecer o perdão do pecado e a bem-aventurança.
Artigo XVI
DA ORDEM POLÍTICA
E DO GOVERNO CIVIL
A respeito da ordem política[31] e do governo civil[32] se ensina que toda autoridade no mundo e todos os governos e leis ordenados são prescrições boas, criadas e instituídas por Deus, e que cristãos podem, sem pecado, ocupar o cargo de autoridade, de príncipe e de juiz, proferir sentença e julgar segundo as leis imperiais e outras leis em vigor, punir malfeitores com a espada, fazer guerras justas, combater, comprar e vender, prestar os juramentos exigidos, possuir propriedade, casar etc.
Aqui são condenados os anabatistas por ensinarem que nenhuma das coisas supramencionadas é cristã. Condenam-se também os que ensinam que a perfeição cristã consiste em abandonar fisicamente casa e lar, mulher e filhos e renunciar às coisas supracitadas, quando de fato apenas o verdadeiro temor de Deus e a verdadeira fé constituem a perfeição autêntica. Pois o evangelho não ensina uma essência e justiça do coração exteriores e temporais, mas interiores e eternas, nem rejeita o governo civil, a ordem política e o casamento, mas quer que se guarde tudo isso como genuína ordem divina e que cada um pratique, nessas prescrições, o amor cristão e obras verdadeiramente boas de acordo com sua vocação. Por isso os cristãos têm o dever de se submeter à autoridade e de obedecer aos seus mandamentos e leis em tudo aquilo que possa ser feito sem pecado. Porque, se a ordem da autoridade não puder ser executada sem pecado, deve-se obedecer mais a Deus do que aos homens (Atos 5.29).
Artigo XVII
DO JUÍZO FINAL
Também se ensina que nosso Senhor Jesus Cristo virá no dia do juízo final para julgar e ressuscitar todos os mortos, que dará, aos eleitos e justos, vida e alegria eternas, mas condenará os ímpios e os demônios ao inferno e ao castigo eterno.
Rejeita-se, portanto, os anabatistas por ensinarem que os demônios e as pessoas condenadas não sofrerão dor nem tormento eternos. Aqui igualmente se rejeitam algumas doutrinas judaicas atuantes ainda hoje, segundo as quais, antes da ressurreição dos mortos, um grupo constituído integralmente de santos e piedosos terá um reino mundano e aniquilará todos os ímpios.
Artigo XVIII
DO LIVRE-ARBÍTRIO
A respeito do livre-arbítrio se ensina que o ser humano tem, até certo ponto, livre-arbítrio para viver exteriormente de maneira honrada e discernir as coisas que a razão compreende. Sem a graça, sem o auxílio e sem a atuação do Espírito Santo, todavia, o ser humano é incapaz de agradar a Deus, de temê-lo de coração, de amá-lo ou de crer nele, ou de expulsar do coração o desejo mau ou inato, sendo isso feito pelo Espírito Santo, que é dado pela palavra de Deus. Pois Paulo diz em 1Coríntios 2[.14]: “A pessoa natural não capta as coisas do Espírito de Deus”.
E, para que se possa reconhecer que sobre isso não se ensina novidade, eis aqui as palavras claras de Agostinho a respeito do livre-arbítrio, citadas do livro III do Hipognostico: “Confessamos que em todos os seres humanos há um livre -arbítrio, pois todos têm entendimento e razão naturais inatos, mas não no sentido de que sejam capazes de fazer algo em relação a Deus, como, por exemplo, amar e temer a Deus de coração. É somente em relação a obras externas desta vida que eles têm liberdade para escolher coisas boas ou más. Entendo como boas aquelas que a natureza pode fazer, tais como trabalhar ou não no campo, comer, beber, visitar ou não um amigo, vestir-se ou se despir, edificar, tomar esposa, dedicar-se a um ofício ou fazer alguma outra coisa proveitosa e boa. Tudo isso, entretanto, não existe nem subsiste sem Deus, mas dele e por meio dele são todas as coisas. Em contrapartida, o ser humano também pode por escolha própria praticar coisas ruins, como, por exemplo, ajoelhar-se diante de um ídolo, cometer homicídio”[33] etc.
Aqui são rejeitados aqueles que ensinam que podemos cumprir o mandamento de Deus sem a graça e o Espírito Santo. Pois, mesmo que sejamos capazes de praticar as obras exteriores do mandamento, não conseguimos praticar os grandes mandamentos no coração, a saber, temer e amar verdadeiramente a Deus, crer em Deus etc.
Artigo XIX
DA CAUSA DO PECADO
A respeito da causa do pecado, ensina-se entre nós que, embora o Deus onipotente tenha criado toda a natureza e a conserve, a vontade pervertida opera o pecado em todos os maus e desprezadores de Deus, pois se trata da vontade do diabo e de todos os ímpios. Tão logo Deus retirou sua mão, essa vontade se desviou dele para o mal, conforme diz Cristo em João 8[.44]: “Quando o diabo profere a mentira, fala do que lhe é próprio”.
Artigo XX
DA FÉ E DAS OBRAS
Os nossos[34] são acusados falsamente de proibirem boas obras, pois seus escritos sobre os Dez Mandamentos e outros escritos provam que fizeram boa e útil exposição e admoestação sobre estados e obras cristãos verdadeiros. Sobre isso pouco se ensinou antes de nosso tempo, mas insistia-se, em todas as pregações, sobretudo em obras pueris e desnecessárias, tais como rosários, culto a santos, tornar-se monge, romarias, jejuns prescritos, dias santos, confrarias, indulgências etc. Os nossos oponentes também já não exaltam essas obras desnecessárias como faziam antes, embora, apesar disso, não confessem seus erros, mas se arroguem a defendê-los, visando à repressão da doutrina salutar e consoladora da fé e à desonra do Cristo, nosso Senhor. Os nossos, porém, fizeram essa exposição sobre isso porque a doutrina da fé, que, como se deve confessar, é o artigo principal da doutrina cristã, por longo tempo não foi exercitada nem pregada, tendo contra ela se instituído muito falso culto.
Onde há fé e o que é fé
Nosso Senhor Cristo fez um resumo breve e correto do seu evangelho, a saber, que se deve ensinar o arrependimento e o perdão do pecado em seu nome. A prédica do arrependimento reprova o pecado. Ora, a quem fica amedrontado diante da ira de Deus por causa do seu pecado o evangelho prega também o perdão dos pecados por causa de Cristo em razão da graça sem mérito nosso. Esse perdão é obtido exclusivamente pela fé, quando cremos que Deus quer perdoar o nosso pecado por causa de Cristo e quer ser gracioso conosco.
Assim, os nossos ensinam que obtemos o perdão do pecado pela fé em Cristo, que não recebemos o perdão por nossas obras anteriores ou subsequentes, mas que o recebemos exclusivamente por misericórdia por causa de Cristo, e, mesmo já tendo boas obras, devemos crer o tempo todo que somos considerados justos diante de Deus por causa de Cristo e não pelo mérito de nossas obras, pois nós mesmos não somos capazes de satisfazer a lei de Deus.
Isso representa um consolo abundante e firme para todas as consciências frágeis e amedrontadas e está claramente fundamentado e expresso na Sagrada Escritura, sendo inclusive o artigo principal do evangelho. Pois Paulo fala assim em Efésios 2[.8-9]: “Pela graça vocês são salvos mediante a fé; e isso não vem de vocês, é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie”. E em Romanos 4[.16]: “Essa é a razão por que a justiça provém da fé, para que seja segundo a graça, a fim de que a promessa seja garantida”, isto é, se tivéssemos de receber o perdão dos pecados por causa de nossas obras, jamais teríamos certeza de obter o perdão. Pois durante o tempo todo encontraríamos falhas em nossas obras, o que nos obrigaria a duvidar de que fizemos o suficiente. Assim, a promessa cairia por terra e se tornaria inútil, caso fosse construída sobre nossas obras. E a consciência jamais conseguiria ficar em paz e descansada se tivéssemos de ser justos por causa de nossas obras.
Por isso, também agora, que renascemos e fazemos boas obras, devemos nos apegar o tempo todo ao mediador Cristo e crer que Deus é gracioso para conosco e nos considera justos, não por cumprir a lei, mas por causa de Cristo, por meio do qual nos foi prometido que Deus quer ser gracioso para conosco por causa dele. Por isso, Paulo prossegue em Romanos 5[.1-2]: “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus e, mediante a fé, temos acesso a Deus” etc. E a Escritura está cheia de passagens como essa.
Pessoas inexperientes desprezam e perseguem essa doutrina, pois o mundo não conhece nenhuma justiça que não seja a da lei e da vida racional, não sabe como a consciência deve se portar em relação a Deus e diante do juízo de Deus. Porém, quando Deus reprova e amedronta as consciências, essas mesmas pessoas que não têm ciência da doutrina da fé e de Cristo recorrem a obras e querem aplacar a ira de Deus e obter a vida eterna com obras próprias. Umas correm para os mosteiros, outras se põem a rezar missas e uma obra após a outra é inventada para aplacar a ira de Deus. Isso é pura cegueira e desprezo de Cristo, e os corações se tornam cada vez mais intolerantes para com Deus e acabam caindo em completo desespero.
Reprovamos esse erro de acordo com o evangelho e contrapomos a ele a doutrina da fé, ou seja, que a consciência pode confiar tranquilamente que temos o perdão do pecado sem nosso mérito por causa de Cristo. E que é desonra de Cristo recorrer a obras próprias para, por meio delas, merecer que Deus seja gracioso para conosco. E, uma vez que esse artigo diz respeito à honra de Cristo e a esse elevado consolo das consciências, é necessário exercitar essa doutrina seriamente na cristandade.
É a partir daí que se deve perceber onde há fé e o que é isso que chamamos de fé. Pois onde não há pavor diante da ira de Deus, mas prazer na conduta pecaminosa, não há fé, já que a fé visa a consolar e a animar os corações amedrontados. Por isso Isaías também diz que Deus quer fazer sua morada em corações amedrontados[35]. Por isso é fácil responder quando dizem que, se a fé torna justo, não é necessário fazer boas obras. Nós, em contraposição, ensinamos que não têm fé aqueles que sentem prazer em seus pecados e que continuam com sua conduta pecaminosa. Porque ali onde não há pavor diante da ira de Deus, não há fé.
Desse modo também se torna fácil desmontar o argumento que diz que até os demônios creem, mas nem por isso são justos. Resposta: nesse caso, crer não significa conhecer os relatos históricos, mas significa crer no artigo “perdão do pecado”; nesse artigo os demônios e os ímpios não creem. Assim, crer significa, aqui, confiar tranquilamente, apesar da consciência amedrontada, na promessa de Deus no sentido de que ele quer ser gracioso por causa de Cristo. Paulo também ensina claramente que crer não deve ser entendido no sentido de apenas estar ciente dos relatos históricos, mas no de agarrar-se à promessa de Deus, quando diz em Romanos 4[.16]: “Essa é a razão por que a justiça provém da fé, para que a promessa não seja invalidada”. Por isso, ele quer que se apreenda a promessa de Deus pela fé. Na mesma linha, escreve também Agostinho no sentido de que é preciso entender a fé na forma como estamos falando aqui[36].
A respeito ao dever de fazer boas obras,
sobre como se pode fazê-las para que agradem a Deus
Essa fé, ao consolar o coração amedrontado, recebe o Espírito Santo, que começa a atuar naqueles que se tornaram filhos e filhas de Deus, como diz Paulo em Romanos 8[.14]: “Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus”. Assim, o Espírito Santo passa a provocar o conhecimento do pecado e a fé, para que percebamos cada vez mais claramente a elevada e grande misericórdia prometida em Cristo, para que creiamos com mais força e para que extraiamos disso consolo eterno e vida eterna. Em seguida, o Espírito Santo também opera outras virtudes, a saber, as que Deus ordenou nos Dez Mandamentos: temer, amar, agradecer, invocar e honrar a Deus, amar o próximo, ser paciente e casto, acatar e respeitar a autoridade como ordenação de Deus etc. Pois nós ensinamos que devemos cumprir os mandamentos de Deus que nos são outorgados.
Ademais ensinamos como se pode cumpri-los e ainda como cumpri-los de modo que agradem a Deus. Pois, embora os seres humanos sejam em parte capazes de fazer obras exteriores honradas por suas próprias forças naturais, o coração não consegue amar a Deus se, antes disso, não crer que Deus quer ser gracioso. Além disso, separados de Cristo e sem fé e Espírito Santo, os seres humanos estão em poder do diabo, que também os leva a cometer vários pecados notórios. Por isso, ensinamos primeiro sobre a fé pela qual o Espírito Santo é dado e que Cristo nos ajuda e protege do diabo. Assim, quando o coração sabe que Deus quer ser gracioso e quer nos ouvir por causa de Cristo, o coração consegue amar e invocar a Deus. E o coração, sabendo que Cristo quer nos fortalecer e ajudar, espera pela ajuda, não desanima no sofrimento e resiste ao diabo. Por isso Cristo diz: “Sem mim vocês não podem fazer nada” [Jo 15.5]. Por essa razão, quem não ensina corretamente a respeito da fé, tampouco pode ensinar algo proveitoso a respeito das obras, pois sem a ajuda de Cristo nem é possível cumprir os mandamentos de Deus, como se pode ver claramente no caso dos filósofos, que se empenharam ao máximo para viver corretamente e, ainda assim, incorreram em grandes vícios. Pois, sem Cristo, a razão e a força humanas são muito frágeis para resistir ao diabo, que os leva a pecar.
Além disso, ensina-se também como fazer as boas obras de modo que sejam agradáveis a Deus, a saber, não porque satisfazemos a lei de Deus, pois, à exceção de Cristo, não houve ninguém que tenha satisfeito a lei de Deus, mas porque as obras agradam, uma vez que Deus acolheu a pessoa e a considera justa por causa de Cristo; por causa dele, ele perdoa as nossas falhas, que ainda permanecem nos santos. Por isso, não se deve acreditar que, depois do renascimento, somos justos por causa da nossa pureza ou porque cumprimos a lei, mas porque devemos, também então, apresentar Cristo a Deus como mediador e considerar que Deus é gracioso por causa de Cristo e que nossas obras necessitam de misericórdia e não são dignas a ponto de Deus ter de aceitá-las como justiça e dar em troca a vida eterna. A razão pela qual elas agradam a Deus é que ele é gracioso com a pessoa por causa de Cristo. Porém o fato de ele ser gracioso para com a pessoa é algo que cada um apreende exclusivamente pela fé. Assim, as boas obras só agradam a Deus nos crentes, como ensina Paulo: “Tudo que não provém de fé é pecado” [Rm 14.23], isto é, quando o coração está em dúvida quanto a Deus ser ou não gracioso para conosco, se ele nos ouve, e, irado contra Deus, o coração vai e realiza obras, sendo que, por mais preciosas que pareçam, não passam de pecado, pois o coração está impuro.
É por isso que as boas obras sem fé não podem agradar a Deus, mas o coração precisa primeiro estar em paz com Deus e concluir que ele nos aceita, é gracioso para conosco e nos considera justos, não por causa do nosso mérito, mas por causa de Cristo, por misericórdia. Essa é a doutrina cristã correta relativamente às boas obras.
Artigo XXI
DO CULTO AOS SANTOS
A respeito do culto aos santos, os nossos ensinam que devemos nos lembrar dos santos para fortalecer a nossa fé, de forma que vejamos como receberam graça e como foram ajudados pela fé; além disso, a fim de que tomemos suas boas obras como exemplo, cada um, de acordo com sua vocação, assim como Vossa Majestade Imperial, pode seguir ditosa e divinamente o exemplo de Davi, fazendo guerra ao turco, pois ambos estão investidos do ofício real que exige que protejam e defendam seus súditos. Entretanto, não há como provar pela Escritura que se deve invocar os santos ou procurar auxílio junto a eles. Porque há um só reconciliador e mediador entre Deus e a humanidade, Jesus Cristo (1Timóteo 2[.5]), o qual é o único Salvador, o único Sumo Sacerdote, Propiciatório e Advogado diante de Deus (Romanos 8[.34]). E ele foi o único a prometer que nossa prece será ouvida por causa dele. Buscar e invocar de coração a esse Jesus Cristo em todas as necessidades e preocupações também é o culto divino mais elevado segundo a Escritura (1João 2[.1]): “Se alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo”.
Essa é aproximadamente a suma da doutrina que é pregada e ensinada em nossas igrejas para a correta instrução cristã e consolo das consciências, bem como para o aprimoramento dos crentes. De modo nenhum queremos expor nossas almas e consciências diante de Deus ao mais grave e maior dos perigos mediante abuso do nome ou da palavra de Deus nem deixar ou legar a nossos filhos e descendentes alguma doutrina que não esteja em conformidade com a pura palavra divina e com a verdade cristã. Essa doutrina está claramente fundada na Sagrada Escritura e, além disso, pelo que se pode observar dos escritos dos Pais da Igreja, não é contrária nem se opõe à igreja cristã universal e tampouco à Igreja Romana. Sendo assim, pensamos que nem sequer nossos oponentes podem estar em desacordo com nossas posições nos artigos acima indicados. Por conseguinte, agem de maneira totalmente hostil, precipitada e oposta a toda unidade e amor cristãos aqueles que, por essa razão, tentam segregar, rejeitar e evitar os nossos como hereges, sem qualquer fundamento sólido em mandamento ou Escritura divinos. Portanto, não havendo nos artigos principais coisas sem fundamento ou defeitos perceptíveis e sendo esta a nossa confissão divina e cristã, seria conveniente que os bispos se mostrassem mais brandos, mesmo que houvesse falha entre nós no que se refere à tradição. Não obstante, esperamos apresentar razão e causa sólidas para explicar por que entre nós algumas tradições e alguns abusos foram modificados.
Artigos sobre os quais há divergências e em que se recenseiam os abusos que foram corrigidos
Ora, visto que em nossas igrejas nada se ensina a respeito dos artigos da fé que seja contrário à Sagrada Escritura ou à igreja cristã universal, mas tão somente corrigiram-se alguns abusos que em parte foram estabelecidos à força, a necessidade nos obriga a enumerá-los e a explicar a razão pela qual, nesses casos, se admitiu modificação, a fim de que a Majestade Imperial possa ver que não se procedeu aqui de maneira não cristã ou desaforada, mas que fomos compelidos a permitir essa modificação pelo mandamento de Deus, que, com justiça, deve ser mais respeitado do que qualquer costume.
Artigo XXII
DAS DUAS ESPÉCIES DO SACRAMENTO
Aos leigos são dadas entre nós as duas espécies do sacramento, pela seguinte razão: foi assim que Cristo instituiu o santo sacramento e o ordenou, em Mateus 26[.27]: “Bebam todos dele”. Cristo fala aí com palavras claras do cálice e diz que todos devem beber dele. E, para que ninguém pudesse questionar e glosar essas palavras, como se dissessem respeito somente aos sacerdotes, Paulo mostra, em 1Coríntios 11[.17-34], que toda a assembleia da igreja coríntia fez uso das duas espécies. E esse uso se manteve por longo tempo na igreja, como se pode provar com os relatos históricos e os escritos dos Pais: Cipriano menciona em muitas passagens que, naquele tempo, o cálice era dado aos leigos[37]. E São Jerônimo diz que os sacerdotes que administram o sacramento distribuem ao povo o sangue de Cristo[38]. O próprio papa Gelásio ordena que não se divida o sacramento[39]. Também não se encontra em parte nenhuma um cânone que ordena receber apenas uma das espécies. E não há como saber quando ou por quem foi introduzido esse costume de receber uma só espécie. Ora, é manifesto que esse costume, introduzido contrariamente à instituição de Cristo, bem como contrariamente aos cânones antigos, é incorreto. Por essa razão, foi inconveniente onerar as consciências daqueles que desejaram fazer uso do santo sacramento de acordo com a instituição de Cristo e coagi-los a proceder contrariamente à ordenação de Cristo, nosso Senhor. E, visto que a divisão do sacramento é contrária à instituição de Cristo, omite-se também entre nós a costumeira procissão com o sacramento.
Artigo XXIII
DO MATRIMÔNIO DOS SACERDOTES
Todo mundo, seja de alta seja de baixa condição social, se queixava muito da grande imoralidade e da conduta e vida dissolutas dos sacerdotes que não eram capazes de manter a castidade, havendo há muito esses vícios horríveis atingido o limite do suportável. Para evitar tanto escândalo feio e grande, adultério e outra imoralidade, alguns sacerdotes entre nós ingressaram no estado matrimonial, sendo que eles próprios indicam estas causas: porque foram impelidos e movidos a isso por grande aflição de sua consciência e porque a Escritura atesta claramente que o estado matrimonial foi instituído pelo Senhor Deus para evitar a imoralidade, como diz Paulo: “Para evitar a imoralidade, cada homem tenha a sua esposa” [1Co 7.2]. E: “É melhor casar do que arder em desejos” [1Co 7.9]. E Cristo, ao dizer, em Mateus 19[.11], que “nem todos captam essa palavra”, indica (pois ele bem sabia qual era a condição humana) que poucas pessoas têm o dom de viver em castidade. “Assim Deus criou o ser humano como homem e mulher”, Gênesis 1[.27]. A experiência mostra com muita clareza se o ser humano tem ou não o poder ou a capacidade de melhorar ou modificar a criação de Deus, a excelsa Majestade, sem um dom especial de Deus, por resolução ou voto próprios. É claro como o dia quanto bem, quanta vida honrosa e casta, quanta conduta cristã, honesta ou íntegra resultou disso no caso de muitos e quanto desassossego terrível e pavoroso, quanto tormento de consciência muitos tiveram no fim da vida por causa disso, e muitos deles o confessaram pessoalmente. Assim, como a palavra e o mandamento de Deus não podem ser alterados por nenhum voto ou lei humanos, foi por essas e outras razões e causas que os sacerdotes e outros clérigos resolveram casar.
Também se pode provar com base nos relatos históricos e nos escritos dos Pais que antigamente era costume, na igreja cristã, os sacerdotes e diáconos terem esposa. É por isso que Paulo diz em 1Timóteo 3[.2]: “É necessário, pois, que o bispo seja irrepreensível, esposo de uma só mulher”. E faz apenas quatrocentos anos que, na Alemanha, os sacerdotes foram forçados a deixar o matrimônio e prestar o voto de castidade. Todos se opuseram a isso com tanta seriedade e firmeza que um arcebispo de Mogúncia, o qual proclamara o novo edito papal a esse respeito, quase foi morto em tumulto causado pela revolta de todo o corpo sacerdotal[40]. E aquela proibição foi implantada logo de início com tanta rapidez e falta de decoro que o papa daquele tempo não só proibiu aos sacerdotes o casamento futuro, mas também rompeu o casamento daqueles que já estavam nesse estado há muito tempo. Isso não só contrariou todo o direito – o divino, o natural e o civil –, mas também foi totalmente oposto e contrário aos cânones estabelecidos pelos próprios papas, bem como aos mais renomados concílios[41]. Também muitas pessoas eminentes, tementes a Deus e sensatas, com frequência expressaram opiniões e ressalvas similares, ou seja, que esse celibato obrigatório e a privação do matrimônio, que o próprio Deus instituiu e deixou à livre escolha [do ser humano], nunca produziu nada de bom, mas introduziu muitos vícios grandes e malignos e muita maldade. Até um dos papas, Pio II, conforme mostra sua biografia, disse muitas vezes e permitiu que lhe fossem atribuídas estas palavras: pode até haver algumas razões por que o matrimônio é proibido aos clérigos, mas há razões muito mais elevadas, muito maiores e muito mais importantes por que o matrimônio deve voltar a ser liberado para eles[42]. Sem dúvida nenhuma, o papa Pio, como homem sensato e sábio, falou essas palavras a partir de profunda reflexão sobre a proibição do matrimônio dos sacerdotes e dos clérigos.
Por essa razão, em submissão à Majestade Imperial, queremos confiar que Sua Majestade, como imperador cristão, digno de alto louvor, magnanimamente levará em conta que agora, nestes últimos tempos de que faz menção a Escritura, o mundo ficará cada vez pior e as pessoas cada vez mais débeis e frágeis. Por essa razão, é muito necessário, útil e cristão fazer esse exame cuidadoso, a fim de não suceder que, proibido o casamento, alastrem-se imoralidades e vícios piores e ainda mais vergonhosos pelas terras alemãs. Pois, sem dúvida, ninguém será capaz de alterar ou fazer essas coisas mais sabiamente ou melhor do que Deus mesmo, que instituiu o matrimônio para socorrer a fragilidade humana e resistir à imoralidade. Os antigos cânones também dizem que de vez em quando se deve abrandar e relaxar a severidade e o rigor por causa da fragilidade humana, a fim de prevenir e evitar coisas piores. Ora, não há dúvida de que isso seria cristão e muito necessário também nesse caso. E que prejuízo poderia trazer para a igreja cristã universal o matrimônio dos sacerdotes e clérigos, especialmente o dos pastores e de outros que devem servir à igreja? Se continuar por mais tempo essa rígida proibição do matrimônio, certamente haverá falta de sacerdotes e pastores no futuro.
Visto que o casamento de sacerdotes e clérigos tem fundamento na palavra e no mandamento de Deus e que, além disso, os relatos históricos provam que os sacerdotes casavam e visto que o voto de castidade produziu uma quantidade tão grande de escândalos feios e não cristãos, tanto adultério, tanta imoralidade horrível e inaudita e tantos vícios hediondos, a ponto de alguns cônegos e até alguns “cortesãos”[43] de Roma muitas vezes admitirem esse fato e, lamentando-o, declararem o quanto são horrendos e desmedidos esses vícios no clero e quanto haveriam de suscitar a ira de Deus, é deplorável que o matrimônio cristão não só tenha sido proibido, mas que, em alguns lugares, tenham se atrevido a castigá-lo a toda pressa, como se fosse um grande malfeito, apesar de Deus ter ordenado na Sagrada Escritura que se honre ao máximo o estado matrimonial. Da mesma forma, o matrimônio é grandemente exaltado no direito imperial e em todas as monarquias em que houve leis e direito. É em nosso tempo que se começa a martirizar as pessoas inocentes, só por causa do casamento, e fazem isso justamente com sacerdotes que deveriam ser poupados acima de outros. E isso contraria não só o direito divino, mas também os cânones. Em 1Timóteo 4.[1-3], o apóstolo Paulo chama as doutrinas que proíbem o casamento de ensino de demônios. Assim, Cristo mesmo diz, em João 8[.44], que o diabo é assassino desde o princípio. As duas coisas combinam muito bem, pois realmente deve ser ensino de demônios proibir o casamento e atrever-se a manter semelhante doutrina com derramamento de sangue.
Todavia, do mesmo modo que nenhuma lei humana pode revogar ou modificar o mandamento de Deus, nenhum voto pode alterar o mandamento divino. Por essa razão, também São Cipriano aconselha que se casem as mulheres que não guardam o voto de castidade, dizendo assim na epístola 11: “Porém, se elas não quiserem ou não puderem guardar a castidade, é melhor que se casem do que caírem no fogo por causa do seu desejo. E devem tomar todo cuidado para não causar nenhum escândalo aos irmãos e às irmãs”[44].
Ademais, todos os cânones mostram grande leniência e equidade para com aqueles que fizeram voto quando jovens. E foi na mocidade que a maioria dos sacerdotes e monges, sem estarem cientes disso, acabou nesse estado.
Artigo XXIV
DA MISSA
Os nossos são acusados injustamente de terem abolido a missa. Pois é manifesto que, entre nós, a missa – sem querer nos gabar disso – é celebrada com maior devoção e seriedade do que entre os adversários. E as pessoas também são instruídas muitas vezes e com o máximo zelo sobre o santo sacramento, para que foi instituído e como deve ser usado, a saber, a fim de que assim as consciências atemorizadas sejam consoladas e, desse modo, o povo seja atraído para a comunhão e para a missa. Assim, não houve modificação perceptível nem nas cerimônias públicas da missa, a não ser o fato de que, em alguns lugares, passou-se a cantar em alemão para instruir e exercitar o povo com isso, sobretudo porque a finalidade principal de todas as cerimônias é que o povo aprenda com elas o que ele precisa saber de Cristo.
Antes de nosso tempo, entretanto, a missa foi mal usada de diversas maneiras, como é notório, a ponto de ter sido transformada em feira, sendo comprada e vendida, e a maior parte celebrada por dinheiro em todas as igrejas. Pessoas eruditas e piedosas reprovaram esse abuso repetidas vezes, mesmo antes de nosso tempo. Ora, nossos pregadores proferiram sermões a esse respeito, e os sacerdotes foram advertidos da terrível ameaça que justificadamente deve motivar todo cristão, a saber, que quem usar o sacramento indignamente é réu do corpo e do sangue de Cristo[45]. Depois disso, foram abolidas em nossas igrejas essas missas pagas e particulares, que até então eram celebradas obrigatoriamente por dinheiro e por prebendas.
Ao mesmo tempo, foi reprovado o terrível erro cometido ao ensinar que, mediante a sua morte, Cristo, nosso Senhor, teria feito satisfação somente pelo pecado original e instituído a missa como sacrifício pelos outros pecados e, assim, transformado a missa em sacrifício pelos vivos e pelos mortos, visando a reconciliar Deus e a merecer o perdão do pecado para outros por meio dessa obra, mesmo que ela aconteça por ação de ímpios. Disso resultou, ademais, a discussão sobre se uma missa rezada diante de muitos valeria tanto quanto rezar uma missa particular para cada um. Daí procedeu a grande e inumerável quantidade de missas, a ponto de se querer alcançar com essa obra tudo o que se precisava junto a Deus. Enquanto isso, a fé em Cristo e o culto verdadeiro foram esquecidos.
Por isso, foi dada instrução a esse respeito, conforme o exigiu, sem dúvida nenhuma, a necessidade, para que se soubesse qual a maneira certa de se usar o sacramento. Em primeiro lugar, a Escritura mostra em muitas passagens que não há outro sacrifício pelo pecado original e por outros pecados senão única e exclusivamente a morte de Cristo. Pois assim está escrito em Hebreus[46] que Cristo se ofereceu uma única vez e, dessa maneira, fez satisfação por todos os pecados[47].
Em segundo lugar, São Paulo ensina que somos considerados justos diante de Deus pela fé, não por obras. Manifestamente contrário a isso é o abuso da missa, no qual se pensa alcançar justiça mediante essa obra. Como se sabe, a missa é usada como meio para alcançar o perdão dos pecados e toda sorte de bens junto a Deus, não apenas o sacerdote para si mesmo, mas também para o mundo inteiro e para outros, vivos e mortos, e isso pela obra ex opere operato [pela mera realização], sem a fé.
Em terceiro lugar, o santo sacramento foi instituído não para realizar um sacrifício pelo pecado (pois o sacrifício ocorreu antes disso), mas para que, por meio dele, nossa fé seja despertada e sejam consoladas as consciências que percebem, pelo sacramento, que Cristo lhes promete a graça e o perdão dos pecados. Por essa razão, esse sacramento requer fé, sendo seu uso sem fé em vão.
Ora, visto que a missa não é um sacrifício para tirar os pecados de outros, vivos ou mortos, devendo ser uma communio [comunhão] em que o sacerdote e outros recebem o sacramento para si mesmos, observa-se entre nós o costume de celebrar missa em dias santos e, havendo comungantes, também em outros dias, comungando-se sempre que alguns o desejarem. De sorte que entre nós a missa é preservada em seu uso correto, tal como foi observada na igreja em outros tempos, conforme se pode provar com base em São Paulo (1Coríntios 11[.17-34]), e, além disso, nos escritos de muitos Pais. Pois Crisóstomo diz: “Como o sacerdote diariamente se põe em pé e convida alguns para a comunhão e a outros proíbe que se aproximem”[48]. Também os cânones antigos indicam que um sacerdote exercia o ministério e administrava o sacramento aos demais sacerdotes e diáconos[49]. Pois este é o teor literal do cânone niceno: “Os diáconos, de acordo com sua ordem, devem receber o sacramento depois dos sacerdotes, das mãos do bispo ou do sacerdote”[50].
Ora, já que quanto a isso não se introduziu nenhuma coisa nova que não tenha existido na igreja desde tempos antigos e já que tampouco houve modificação perceptível nas cerimônias públicas da missa, exceto a exclusão das demais missas desnecessárias, rezadas, por exemplo, em função de um abuso paralelamente à missa paroquial, não se deve, por justiça, condenar como herética e não cristã essa maneira de celebrar a missa. Pois, em tempos passados, não se rezava a missa diariamente nem nas igrejas grandes em que se reunia muita gente nem nos dias em que o povo se reunia. A Tripartita, Historia, livro IX[51], indica que, em Alexandria, nas quartas e sextas-feiras, a Escritura era lida e interpretada, realizando-se os demais atos de culto sem a celebração da missa.
Artigo XXV
DA CONFISSÃO DE PECADOS
Os nossos pregadores não aboliram a confissão de pecados. Pois se conserva entre nós o costume de não ministrar o sacramento àqueles que não foram previamente interrogados e absolvidos. Ao mesmo tempo, instrui-se diligentemente o povo sobre o quanto é consoladora a palavra da absolvição e o quanto ela deve ser estimada, pois o que perdoa o pecado não é a atual voz ou palavra humana, mas a palavra de Deus. Porque a absolvição é pronunciada em lugar de Deus e por ordem de Deus. No tocante a essa ordem e ao poder das chaves, ensina-se com grande diligência o quanto ela é consoladora e necessária para as consciências amedrontadas. Ensina-se, além disso, o modo como Deus exige que creiamos nessa absolvição, não menos do que se a voz de Deus soasse do céu, e que seguramente devemos nos consolar com a absolvição e saber que pela fé alcançamos o perdão dos pecados. Em tempos passados, os pregadores que ensinavam muita coisa a respeito da confissão de pecados não diziam uma palavrinha sequer sobre esses pontos necessários, mas apenas martirizavam as consciências com longa enumeração de pecados, com satisfações, indulgências, romarias e coisas semelhantes. E muitos de nossos oponentes confessam pessoalmente que escrevemos e tratamos dessa parte referente ao verdadeiro arrependimento cristão mais apropriadamente do que se fez há muito tempo.
E a respeito da confissão de pecados se ensina que ninguém deve ser constrangido a enumerar especificamente seus pecados. Porque isso é impossível, conforme diz o Salmo [19.12]: “Quem conhece as próprias faltas?”. E Jeremias diz: “O coração humano é tão perverso que não há como compreendê-lo por inteiro”[52]. A mísera natureza humana está atolada tão profundamente em pecados que é incapaz de ver ou conhecer todos e, se fôssemos absolvidos apenas daqueles que podemos enumerar, isso pouco nos adiantaria. Por essa razão é desnecessário constranger as pessoas a especificarem seus pecados. Assim também pensaram os Pais, como se vê na Distinctio I de poenitentia, onde são citadas estas palavras de Crisóstomo: “Não digo que deves te expor publicamente, nem denunciar a ti mesmo ou te declarar culpado a outra pessoa, mas fazer o que diz o profeta: ‘Revela ao Senhor os teus caminhos’[53]. Por isso, durante a tua oração, confessa-te ao Senhor Deus, o verdadeiro juiz; não contes os teus pecados com a língua, mas em tua consciência”[54]. Aqui se vê claramente que Crisóstomo não obriga a uma especificação dos pecados. Também a glosa nos Decretos ensina que a confissão não é ordenada pela Escritura, mas foi instituída pela igreja[55]. Porém nossos pregadores ensinam diligentemente que, embora a enumeração dos pecados não seja necessária, a privata absolutio [absolvição individual] deve ser conservada para consolo das consciências amedrontadas. Assim, essa confissão de pecados também serve para ouvir o modo como as pessoas foram instruídas na fé e, quando necessário, instruí-las melhor.
Artigo XXVI
DA DISTINÇÃO DE COMIDAS
Em tempos anteriores, ensinou-se, pregou-se e escreveu–se que a distinção de comidas e tradições semelhantes, instituídas por seres humanos, servem para merecer o perdão dos pecados e fazer satisfação pelo pecado, além de se tratar de culto pelo qual Deus nos considera justos[56]. Por essa razão, foram instituídos diariamente novos jejuns, novas cerimônias, novas ordens e coisas semelhantes, insistindo-se neles com veemência e rigor, como se essas coisas fossem culto necessário a Deus e cometesse grande pecado quem não as observa. Disso resultaram muitos erros perniciosos na igreja.
Em primeiro lugar, isso obscureceu a graça de Cristo e a doutrina da fé que o evangelho põe diante de nós com grande seriedade, insistindo energicamente em considerar o mérito de Cristo como algo grande e precioso e em saber que a fé em Cristo deve ser posta muito acima de todas as obras. Foi por isto que São Paulo combateu ferrenhamente a lei de Moisés e as traditiones [tradições] humanas: para aprender que não nos tornamos piedosos diante de Deus por meio de nossas obras, mas somente pela fé em Cristo, que Deus perdoa nosso pecado e nos considera justos por causa de Cristo, sem nosso mérito. Essa doutrina se extinguiu quase que por completo pelo fato de se ter ensinado a merecer o perdão dos pecados por meio de leis, jejuns e coisas semelhantes.
Em segundo lugar, essas traditiones também obscureceram os mandamentos de Deus por terem sido colocadas muito acima deles. Só se considerava vida cristã isto: celebrar as festas dessa maneira, rezar dessa maneira, jejuar dessa maneira, vestir-se dessa maneira. A isso se chamava vida cristã espiritual. Ao mesmo tempo, outras obras necessárias e boas eram consideradas coisa mundana, não espiritual, a saber, aquelas que cada um deve fazer de acordo com sua vocação, como, por exemplo, que o pai de família trabalhe para sustentar mulher e filhos, criando-os no temor de Deus, que a mãe de família dê à luz filhos e cuide deles, que um príncipe e uma autoridade governem o país e o povo etc. Essas obras ordenadas por Deus deviam ser consideradas coisa secular e imperfeita. Mas as traditiones tinham de ter o esplêndido renome de serem as únicas obras santas e perfeitas. Por essa razão, não havia medida nem limite para criar essas traditiones.
Em terceiro lugar, essas traditiones se tornaram um grande peso para as consciências, porque não é possível praticar todas elas, e o povo pensava que isso era culto necessário a Deus. Gérson escreve que, diante disso, muitos ficaram desesperados e alguns até cometeram suicídio por não terem ouvido nenhum consolo dizendo que somos justos por causa de Cristo. Pode-se observar o modo como as consciências eram confundidas quando os sumistas e teólogos assumiram a tarefa de coligir as traditiones e procurar atenuantes para auxiliar as consciências. Eles se ocuparam tanto com isso que, naquele meio tempo, foram negligenciados todos os salutares ensinamentos cristãos a respeito de coisas mais necessárias, como, por exemplo, a fé, o consolo em tentações severas e coisas semelhantes. Grande número de pessoas piedosas e eruditas antes de nosso tempo também se queixaram muito de que essas traditiones causavam muita contenda na igreja e de que isso poderia impedir pessoas devotas de chegar ao verdadeiro conhecimento de Cristo. Gérson e alguns outros se queixaram enfaticamente disso[57]. Desagradou também a Agostinho o fato de as consciências terem sido sobrecarregadas com tantas traditiones, razão pela qual ele dá a respeito disso a instrução no sentido de que não se devem considerar essas coisas como necessárias[58].
Por isso os nossos não ensinaram acerca dessas coisas por petulância ou desprezo da autoridade espiritual, mas a grande necessidade exigiu que instruíssem sobre os erros supramencionados, que surgiram de compreensão equivocada da tradição, uma vez que o evangelho obriga a impulsionar na igreja a doutrina da fé, a qual, todavia, pode não ser entendida quando se pensa merecer o perdão dos pecados por obras de própria escolha.
Ensina-se a esse respeito que pela observância das mencionadas tradições humanas não se pode reconciliar Deus nem fazer satisfação pelo pecado nem merecer o perdão do pecado. Por essa razão não se deve fazer delas culto divino necessário, como se ninguém pudesse ser justo diante de Deus sem essas tradições.
Para tanto aduzimos razões da Escritura. Em Mateus 15[.9], Cristo desculpa os apóstolos por não terem observado as traditiones costumeiras, dizendo: “Em vão me adoram com preceitos humanos”. Ora, o que ele chama de culto vão não pode ser algo necessário. E, logo em seguida: “O que contamina a pessoa não é o que entra pela boca” [Mt 15.11]. Paulo igualmente diz em Romanos 14[.17]: “O Reino de Deus não é comida nem bebida” e em Colossenses 2[.16]: “Ninguém vos julgue por causa de comida e bebida, sábados” etc. Pedro diz, em Atos 15[.10-11]: “Por que vocês querem tentar a Deus, pondo sobre o pescoço dos discípulos um jugo que nem nossos pais puderam suportar, nem nós? Mas cremos que somos salvos pela graça do Senhor Jesus, assim como eles”. Aqui Pedro proíbe sobrecarregar as consciências com mais cerimônias externas, sejam de Moisés, sejam de outro. E, em 1Timóteo 4[.1-3], traditiones como essas são chamadas de “ensinos de demônios”, pois a palavra de São Paulo diz o seguinte: “Ora, o Espírito afirma expressamente que, nos últimos tempos, alguns apostatarão da fé por obedecerem a espíritos enganadores e a ensinos de demônios, pela hipocrisia dos que falam mentiras e que têm a consciência cauterizada, que proíbem o casamento e exigem abstinência de alimentos que Deus criou para serem recebidos com gratidão pelos que creem e conhecem a verdade”. Pois se contrapõe frontalmente ao evangelho instituir ou fazer semelhantes obras, visando a merecer com elas o perdão do pecado ou dizer que ninguém pode ser cristão sem esses atos de culto.
Porém, quanto ao fato de culparem aqui os nossos de proibir mortificação e disciplina, como fez Joviniano[59], a questão é bem diferente quando se leem os escritos deles. Pois a respeito da santa Cruz sempre ensinaram que os cristãos devem sofrer, e isto é mortificação correta, séria, não inventada.
Ensinam, além disso, que cada um deve lidar com o exercício físico, como jejum e outros labores, de modo a não dar ocasião ao pecado, mas não para merecer o perdão do pecado nem para ser considerado justo diante de Deus por causa dessas obras. E esse exercício físico não deve ser praticado apenas em alguns dias determinados, mas continuamente. Cristo fala disso em Lucas 21[.34]: “Tenham cuidado para não acontecer que o coração de vocês fique sobrecarregado com as consequências da comilança e da bebedeira”. Igualmente: “Os demônios só podem ser expulsos por meio de jejum e oração”[60]. E Paulo diz que esmurra o seu corpo e o reduz à obediência[61]. Ele indica com isso que a finalidade da mortificação não é merecer o perdão dos pecados, mas manter o corpo em forma para não atrapalhar o que cada um tem ordem de fazer segundo a sua vocação. Assim sendo, não se rejeita o jejum, mas o fato de se fazer dele um culto necessário com dias e comidas determinados, para confundir as consciências.
Também se guardam entre nós muitas cerimônias e tradições, como a ordem da missa e festas etc., que servem para manter a ordem na igreja. Ao mesmo tempo, todavia, ensina-se ao povo que somos considerados justos por causa de Cristo mediante a fé e não por causa dessas obras, e que se deve praticá-las sem sobrecarregar a consciência, de modo que não se comete pecado quando se deixa de fazê-las sem causar escândalo. Essa liberdade em relação a cerimônias exteriores também foi mantida pelos Pais antigos. Pois, no Oriente, a festa da Páscoa era celebrada em época diversa daquela de Roma. E, quando alguns quiseram considerar essa disparidade como cisma na igreja, foram admoestados por outros no sentido de que não era necessário observar uniformidade em tais costumes. Irineu diz o seguinte: “Disparidade no jejum não rompe a unidade da fé”[62]. Também na Distinctio 12[, cap. 10] está escrito, no tocante a essa disparidade nas prescrições humanas, que ela não contraria a unidade da cristandade. E a Historia Tripartita, livro IX, colige muitos usos eclesiásticos díspares e faz constar uma proveitosa sentença cristã: “Não foi intenção dos apóstolos instituir dias santos, mas ensinar fé e amor”[63].
Artigo XXVII
DOS VOTOS MONÁSTICOS
Para falar dos votos monásticos é preciso lembrar, em primeiro lugar, como se procedeu a esse respeito até agora, qual era a maneira de viver nos mosteiros, sendo que neles aconteciam todos os dias muitas coisas contrárias não só à palavra de Deus, mas também ao direito papal.
Nos tempos de Santo Agostinho, as ordens monásticas eram voluntárias. Depois, quando se corromperam a verdadeira disciplina e doutrina, inventaram-se votos monásticos e, por meio deles, tentou-se restaurar a disciplina como acontece numa prisão imaginária. Além disso, adicionou-se aos votos monásticos grande quantidade de outras coisas e com essas cadeias e exigências se sobrecarregou a muitos, já antes da idade apropriada.
Assim sendo, muitas pessoas também chegaram a essa vida monástica por ignorância. Mesmo os que não eram jovens demais para isso, não avaliaram nem entenderam suficientemente sua capacidade. Todos eles, enredados e envolvidos dessa maneira, eram obrigados e compelidos a permanecer na vida monástica, mesmo quando os próprios cânones os liberavam disso. E, nesse tocante, procedeu- -se com mais rigor com as monjas do que com os monges, quando se deveria ter poupado as mulheres por serem elas o sexo mais frágil. Essa linha dura já havia desagradado a muitas pessoas piedosas, pois viram que o povo jovem, inexperiente e sem estudo era metido em mosteiros para fins de subsistência material, do que mais tarde resultou em muito pecado e escândalo, e as consciências correram grande risco, tendo caído em armadilhas. E muitas pessoas piedosas se queixaram da tirania dos monges, que não quiseram ouvir nem evangelho nem cânones sobre esse assunto. Para além dessa carga imposta, eles também desencaminharam as consciências com doutrina errônea, dizendo que sua vida monástica mereceria o perdão dos pecados, que seria equivalente ao batismo, que seria a perfeição cristã, cumprindo não só o mandamento de Deus, mas, além disso, também os conselhos evangélicos[64]. Exaltavam a vida monástica a ponto de colocá-la muito acima do batismo e das demais instituições divinas exteriores, como a autoridade, o ministério da pregação e o matrimônio. Antigamente os mosteiros eram escolas em que se educavam as pessoas jovens na doutrina cristã e em outras disciplinas proveitosas, de modo que depois podiam ser aproveitadas na direção da igreja e na pregação. Agora, porém, fazem da vida monástica algo de natureza bem diferente, dizendo que é serviço a Deus, culto e sacrifício pelo pecado, que é santidade e perfeição cristãs. Contudo, por decência, omitiremos aqui o modo como os monges levam essa sua vida santa, de que tanto se gabam.
Em primeiro lugar, porém, ensina-se entre nós, a respeito de quem deixou a vida monástica e assumiu o estado matrimonial, que este deve ser de livre opção para todos aqueles que não são aptos para a castidade perpétua. Porque nenhum voto pode anular a ordenação e o mandamento de Deus. Ora, este é um mandamento claro: “Por causa da impureza, cada um tenha a sua própria esposa” [1Co 7.2]. Ademais, não é só o mandamento de Deus, mas também a natureza e a ordem de Deus que compelem ao estado matrimonial aqueles a quem Deus não concedeu o dom especial da castidade perpétua. Por essa razão, quem assume o estado matrimonial, visto que está seguindo o mandamento e a ordem de Deus, não está cometendo erro nenhum. Que se pode objetar a isso? Por mais obrigatório que seja o voto, ele não pode anular o mandamento de Deus nem obriga a agir contra ele. Os próprios cânones ensinam que, em todos os votos, a autoritas superioris [autoridade superior] deve estar eximida, que nenhum voto pode resistir ao poder da autoridade. Por isso, nesses votos, a autoritas Dei [autoridade de Deus] deve estar excluída; os votos não obrigam a agir contra a ordem de Deus.
Se todos os votos fossem obrigatórios, nem os papas teriam o poder de se dispensar deles. Ora, é sabido que os papas dispensaram muitas pessoas dos mosteiros, como, por exemplo, um rei de Aragão[65] e outras. A conclusão que se deve tirar disso, portanto, é que eles próprios admitem que alguns votos não são obrigatórios nem são votos autênticos. Ademais não é correto insistir nos votos e não verificar antes se são mesmo votos ou não. Os votos devem se referir a coisas corretas e possíveis e acontecer voluntariamente. Ora, a castidade perpétua não está ao alcance de toda e qualquer pessoa. E sabe-se também que as pessoas jovens são em parte pressionadas a assumir a vida monástica, e, em parte, sendo inexperientes, buscam essa vida por incompreensão, sem terem noção de sua capacidade, bem como por não terem entendido se essa vida é divina ou não. Ora, o que acontece por coação ou incompreensão não pode ser chamado de ato voluntário. Por isso, como nesse caso não se trata de votos, não há necessidade de discutir se são obrigatórios ou não. Pois, não sendo votos, tampouco obrigam. Por essa razão, também os cânones dispensam dos votos proferidos por quem ainda não tinha completado quinze anos de idade, porque nessa idade ninguém conhece sua capacidade[66]. Outro cânone é ainda mais complacente, pois proíbe prestar o voto monástico antes dos dezoito anos[67]. Esses cânones dispensam muitos dos que ainda se encontram em mosteiros.
Assim, também Agostinho escreve na questão 1 da causa 27[, no cânon 41, que inicia com o termo] Nuptiarum[68], que não se deve romper o matrimônio daqueles que antes haviam prestado o voto de castidade. Por isso, mesmo que alguém queira punir a violação dos votos, não decorre daí que se deva romper o matrimônio dessas pessoas. Embora o mandamento de Deus a respeito do matrimônio libere muitos da vida monástica, os nossos apontam ainda outras razões para mostrar que esses votos não são válidos nem obrigatórios. É porque todo tipo de culto a Deus inventado e escolhido por seres humanos para merecer o perdão dos pecados e para que Deus o aceite como justiça e por sua causa nos deva considerar justos e nos dar a vida eterna, essas obras e esses estados mantidos com essa intenção são contrários a Deus.
Pois Cristo diz: “Em vão me adoram com preceitos humanos” [Mt 15.9]. E Paulo enfatiza em muitas passagens que não se alcança o perdão dos pecados por meio das nossas obras nem do culto a Deus escolhido por nós, que ninguém tampouco será considerado justo diante de Deus por causa desse culto a Deus inventado, mas que temos o perdão do pecado por causa de Cristo, que por causa de Cristo somos considerados justos, caso creiamos nisso. Ora, é evidente que os monges ensinaram e sustentaram que seus votos inventados e seu culto a Deus visavam merecer o perdão dos pecados, que estavam fazendo satisfação pelos pecados com eles e que seriam considerados justos diante de Deus por causa deles.
Ora, o que é isso senão colocar seu monaquismo no lugar de Cristo e negar a misericórdia prometida em Cristo? Disso se conclui que os votos feitos e mantidos com essa intenção são contrários a Deus e não vinculantes. Pois, como dizem os juristas, votos não devem ser vincula iniquitatis[69], isto é, eles não podem obrigar a pecar. Por isso todos os votos que contrariam a ordem e o mandamento de Deus devem ser simplesmente declarados não vinculantes.
Paulo também fala do mesmo modo: “Vocês que procuram justificar-se pela lei estão separados de Cristo; vocês caíram da graça” [Gl 5.4], isto é, perdem e até expulsam Cristo aqueles que pretendem merecer o perdão dos pecados com suas obras e acham que podem agradar a Deus por causa de suas obras e do cumprimento da lei e não estão convictos de receberem o perdão dos pecados por causa de Cristo exclusivamente por misericórdia mediante a fé e de agradar a Deus por causa de Cristo e não em virtude de obras próprias. Isso ocorre por depositarem em suas obras a confiança que pertence unicamente a Cristo. Igualmente são suas obras que eles opõem à ira e ao juízo de Deus e não o mediador e reconciliador, que é Cristo.
Por isso privam Cristo de sua honra e a concedem a suas ordens monásticas. Pois é notório que os monges alegam merecer com seus votos o perdão dos pecados e agradar a Deus por causa dessas obras. Assim eles ensinam a confiar nas próprias obras e não na reconciliação efetuada por Cristo. Tal confiança é manifestamente contrária a Deus e é vã quando Deus julga e amedronta a consciência.
Porque nossa obra não tem como subsistir diante da ira e do juízo de Deus, havendo apenas uma maneira de aplacar a ira de Deus: quando nos agarramos à promessa de Deus feita em Cristo e cremos que Deus quis ser gracioso para conosco não por causa de nossas obras, mas por misericórdia em virtude de Cristo. Por essa razão, aqueles que confiam nas próprias obras expulsam Cristo e não o aceitam, pois não querem confiar nele. Ademais, os monges alegam que suas ordens seriam a perfeição cristã, pois eles cumprem os mandamentos e os conselhos; mas isso significa confiar em obras. E esse erro contra o evangelho atinge seu ápice quando eles alegam cumprir a lei, nesse aspecto nada deixando a desejar, tendo inclusive um excedente que depois aplicam como satisfação e pagamento a favor de outros. Assim, eles próprios se fazem de Cristo e querem fazer com que outros se tornem bem-aventurados com suas obras excedentes. Mas isso equivale a descartar Cristo, pois, se cumprem e satisfazem a lei, não têm necessidade de Cristo, e Deus não tem o que punir e julgar neles.
Além disso, é um grande erro, pagão e nocivo, querer que a perfeição cristã consista em expedientes e obras que as próprias pessoas escolhem, a saber, nessas obras exteriores, como, por exemplo, não casar, não ter propriedade, ter obediência em relação a roupas e comidas especiais. Não há mandamento de Deus referente a essas coisas, mas a perfeição cristã consiste em temer seriamente a Deus e, não obstante, confiar em que temos um Deus gracioso por causa de Cristo, crescer nessa fé e praticá-la, invocar a Deus, esperar ajuda de Deus em todas as coisas e fazer as boas obras exteriores que Deus ordenou, cada um segundo a sua vocação. É nessas coisas que consiste a perfeição cristã, e não no estado celibatário, na mendicância, no ato de vestir o hábito e o cíngulo e coisas desse tipo. Por isso, é um escândalo nocivo instituir na cristandade um culto específico com essas ordens e exaltar o mesmo, dizendo que, desse modo, se merece o perdão dos pecados, sendo essas obras a perfeição diante de Deus.
O ministério e a promessa de Cristo são obscurecidos dessa maneira, pois as pessoas são afastadas de Cristo e passam a confiar nas próprias obras. Ademais, são obscurecidos os mandamentos de Deus, visto que essas obras inventadas e falsas são postas acima dos mandamentos de Deus, proclamando-se que a vida angelical consiste em não casar, não ter propriedade, vestir o hábito e, em contraposição, menosprezando os estados ordenados por Deus, a ponto de se achar que são pecaminosos ou que Deus não leva essas obras em consideração. E aconteceu que muitos estiveram ligados ao estado matrimonial, à autoridade, a propriedades e ofícios manuais com a consciência pesada, só porque ninguém lhes contou que esses estados e essas obras são ordenados por Deus e são corretos, tendo considerado unicamente o monaquismo como santidade cristã elevada.
Por essa razão, como se pode ler, alguns abandonaram seu matrimônio e outros se retiraram de cargos louváveis para assumir a vida monástica. Por isso, a necessidade extrema exige que pregadores idôneos ensinem às pessoas com diligência que a perfeição cristã consiste em fé e obras ordenadas por Deus, e não no monaquismo e em votos que Deus não ordenou. Assim também Gérson reprovou, em sua época, aqueles que exaltavam o monaquismo como perfeição cristã[70]. Ora, os votos acontecem em conexão com erros muito grandes, a saber, que se pretende merecer o perdão do pecado por meio de obras monásticas próprias inventadas, e que, por causa delas, se pretende ser considerado justo diante de Deus, que eles satisfazem a lei de Deus, que cumprem os mandamentos de Deus e os conselhos evangélicos, que têm obras excedentes e as aplicam em favor de outros, que fazem satisfação por eles; em vista disso, toda pessoa sensata facilmente poderá julgar que esses votos, prestados em conexão com tantos erros, não são vinculantes nem são votos.
Artigo XXVIII
DO PODER DOS BISPOS
Alguns confundiram, de modo muito inadequado, o poder espiritual com o poder temporal, ensinando que o papa, por ordem de Cristo, deveria ser um monarca e um senhor sobre todos os bens, reinos e domínios mundanos, que ele deve ter o poder de instalar e depor o rei. Disso muitas vezes resultaram guerras em que os papas quiseram depor imperadores e outros reis. Assim também quanto ao regimento espiritual interpretaram as chaves no sentido de que os papas poderiam ordenar novas formas de culto a Deus, sobrecarregar as consciências mediante reservatione casuum [reserva de casos][71], indo até o purgatório com isso e, de resto, cometendo também diversos tipos de abuso com a excomunicatio [excomunhão][72]. A respeito disso escreveram, em épocas passadas, algumas pessoas piedosas e cultas, razão pela qual também os nossos foram motivados a instruir as consciências sobre os dois poderes, o secular e o espiritual, e a apontar a diferença entre eles, o que é muito útil e necessário que os cristãos saibam. E o tempo todo nós ensinamos que os dois poderes são os maiores e melhores dons de Deus sobre a terra, razão pela qual deve-se honrar ambos com extrema humildade e gratidão.
E o poder dos bispos é, segundo o evangelho, ordem de Deus para pregar o evangelho, punir e reter os pecadores, perdoar pecados e administrar os sacramentos. Pois essa ordem é dada por Cristo aos apóstolos, quando diz: “Assim como o Pai me enviou, eu também envio vocês. Recebam o Espírito Santo. Se de alguns vocês perdoarem os pecados, são-lhes perdoados; mas, se os retiverem, são retidos”
[Jo 20.21-23]. E em Marcos 16[.15]: “Vão por todo o mundo e preguem o evangelho a toda criatura”.
E esse poder será exercido exclusivamente mediante a palavra e o sacramento, por meio da palavra de Deus falada a muitos ou a cada um individualmente, do pecado punido e retido ou perdoado e resolvido. Porque o evangelho não nos traz um reino material, mas bens eternos, o Espírito Santo, a justiça eterna e a vida eterna.
Esses bens só podem ser obtidos por meio da palavra de Deus e do sacramento, como diz Paulo: “O evangelho é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê” [Rm 1.16]. Visto que o poder espiritual oferece bens eternos à alma e só pode ser exercido pela palavra e pelo sacramento, ele é muito distinto do poder secular, que dá e recebe os bens materiais e é exercido com a coerção física, protege o corpo, a casa e a propriedade contra ofensa exterior e pública, e não a afasta só com palavras, mas com o castigo físico, para que se mantenham a paz e a disciplina exterior. É exatamente por isso que o poder espiritual não atrapalha nem faz errar a autoridade secular, pois o evangelho protege a alma e o poder secular, o corpo. O evangelho fala de coisas e bens eternos da alma e deixa a autoridade assumir e manter o regimento exterior sobre o corpo e os bens materiais, e não tem nada a ver com isso, a não ser para exortar que devemos ser obedientes a esse poder secular e que saibamos que esse estado agrada a Deus, pois o próprio Deus o ordenou para benefício da vida corporal.
Por essa razão, é preciso saber diferenciar corretamente o poder espiritual do poder secular, ou seja, que o poder espiritual não deve usurpar cargos seculares, como se fizessem parte do ministério espiritual por ordem de Cristo. O poder espiritual tem ordem de pregar o evangelho e administrar sacramentos, não tem ordem de Cristo para arvorar-se como soberano sobre todos os bens e reinos no mundo, no sentido de entronizar ou depor reis, de ocupar-se de modo secularmente correto com juros ou com outras questões de cunho secular. Pois Cristo fala assim: “O meu reino não é deste mundo” [Jo 18.36]. E também: “Quem me nomeou juiz entre vocês?” [Lc 12.14].
E Paulo diz: “A nossa pátria está nos céus” [Fp 3.20], isto é, nós não instituímos uma nova politia [ordem política] secular na terra, mas deixamos que se mantenha a politia secular e simultaneamente ensinamos algo da essência eterna, ou seja, não exteriormente, mas na alma. Igualmente: “Nossas armas não são carnais, mas poderosas em Deus, para derrubar os pensamentos do coração” [2Co 10.4].
Assim, os nossos ensinam a diferenciar os dois poderes e determinam que honremos a ambos com toda humildade e gratidão como as mais elevadas dádivas de Deus na terra.
Porém, se há bispos que detêm poder secular, eles não o detêm porque Cristo ordenou que o ministério espiritual domine secularmente, mas receberam esse poder por concessão de imperadores, reis e príncipes para a manutenção dos seus bens e direitos seculares. Esse poder secular é um ministério diferente do ministério espiritual e nada tem a ver com ele, do mesmo modo que o ofício manual de São Paulo não faz parte do seu ministério de pregação.
Ora, quando se fala da jurisdictio [jurisdição] dos bispos, deve-se diferenciar entre o seu poder secular e o seu ministério e a sua jurisdictio espirituais, não competindo aos bispos no papel de bispos, isto é, àqueles a quem foi ordenado pregar o evangelho e administrar sacramentos, nenhuma outra jurisdictio por direito divino e a partir do evangelho, a não ser perdoar pecados, condenar a doutrina contrária ao evangelho e banir outros pecados manifestos, sem o uso da força física, mas da palavra. Nesses casos, as igrejas têm o dever de lhes obedecer por direito divino, como diz Cristo: “Quem ouve vocês ouve a mim” [Lc 10.16].
Porém, se os bispos ensinarem ou estabelecerem algo contrário ao evangelho, Deus proíbe a obediência a eles, conforme Mateus 7[.15]: “Cuidado com os falsos profetas”, e Gálatas 1[.8]: “Ainda que um anjo do céu pregue a vocês um evangelho diferente daquele que eu preguei, que ele seja anátema”. Assim também 2Coríntios 13[.8]: “Nada podemos contra a verdade, senão a favor da verdade”. Idem: “Foi-nos dada autoridade para edificação e não para destruição” [2Co 10.8]. Assim também ensinam os cânones, parte II, questio 7, canon “Sacerdotes” e canon “Ovelhas”[73]. E Agostinho fala assim contra Petiliano: “Nem aos bispos ordenados se deve obedecer quando errarem ou sustentarem algo contrário à Sagrada Escritura”[74].
Paralelamente os bispos têm outra jurisdictio sobre algumas coisas, como assuntos matrimoniais, bens da igreja etc. Em relação a essas coisas, eles têm uma alçada e uma jurisdictio especiais por direito humano e não porque Cristo as teria subordinado ao ministério deles. Ora, visto que eles têm essa jurisdictio por direito humano, resulta que, se não a exercerem, a autoridade secular terá de assumir essas coisas e fazer justiça para manter a paz.
Pergunta-se, além disso, se bispos e pastores têm poder para instituir e ordenar novos atos de culto a Deus, como jejuns, festas e outras cerimônias.
Aqueles que conferem esse poder aos bispos recorrem às seguintes palavras de Cristo: “Tenho ainda muito para lhes dizer, mas vocês não o podem suportar agora. Porém, quando vier o Espírito da verdade, ele os guiará em toda a verdade” [Jo 16.12-13]. Também recorrem ao exemplo dos apóstolos que proibiram alimentar-se de carne com sangue e de carne de animais sufocados[75], e recorrem ao sábado, que foi transferido para um dia diferente do estipulado nos Dez Mandamentos. E esse exemplo eles exaltam muito, pois com ele querem provar que também têm poder para mudar a lei de Deus.
Quanto a essa questão, porém, os nossos afirmam que os bispos não têm poder para ordenar nem para autorizar nada que seja contrário ao santo evangelho, como já apontamos e os cânones ensinam[76]. Ora, é contrário ao evangelho fazer ou autorizar traditiones [tradições] achando que, por meio delas, podemos aplacar Deus, merecer o perdão dos pecados e fazer satisfação pelo pecado, pois, desse modo, é retirada de Cristo a honra devida a ele e atribuída a essas obras inventadas por pessoas.
Ora, é manifesto que, em razão dessa opinião, constantemente foram feitas e multiplicadas traditiones na igreja que reprimiram a doutrina da fé em Cristo, ou seja, a de que se obtém o perdão dos pecados sem mérito por causa de Cristo e que somos considerados justos pela fé. Em contraposição multiplicaram-se constantemente os jejuns, os dias festivos, as satisfações, a veneração dos santos e coisas desse tipo com a intenção de merecer o perdão dos pecados.
E foi um erro generalizado crer que no Novo Testamento haveria esse culto a Deus exterior com dias fixos, comidas, ofertas como na lei de Moisés e que Cristo teria ordenado que os apóstolos e bispos autorizassem essas cerimônias, que elas deveriam ser culto divino e necessário, e que sem elas ninguém seria cristão, sendo a santidade cristã esse sistema exterior. Em consequência, se oneraram as consciências dizendo que seria puro pecado mortal comer alimentos proibidos, deixar de observar as horas canônicas, não enumerar todos os pecados durante a confissão, sendo esses pecados mortais em tão grande quantidade que até agora não se escreveu um compêndio capaz de comportar todos eles.
De onde os bispos têm esse poder de onerar a igreja e as consciências dessa maneira, já que ditos muito mais claros proíbem fazer traditiones como culto divino e úteis para merecer o perdão dos pecados ou como elementos necessários à bem-aventurança? Paulo diz aos Colossenses: “Ninguém julgue vocês por causa de comida e bebida, ou dia de festa etc.” [Cl 2.16]. E ainda: “Se vocês morreram com Cristo para os rudimentos do mundo, por que voltam a fazer leis? A saber, ‘não toque nisto’, ‘não coma disso’, ‘não pegue naquilo’. Todas estas coisas se destroem com o uso; são preceitos dos homens que só têm aparência de sabedoria” [Cl 2.20-23]. Igualmente a Tito: “Não se ocupem com fábulas judaicas, nem com mandamentos de gente que se desvia da verdade” [Tt 1.14]; em Mateus 15[.14], Cristo condena tal culto divino, diz que é culto inútil, chama de cegos que guiam cegos aqueles que fazem disso um culto a Deus e ordena esquecê-los.
Se os bispos têm poder para fazer e ordenar esses cultos e sobrecarregar as consciências, por que a Escritura os proíbe e os chama de doctrinas demoniorum[77] [doutrinas de demônios]? Terá sido em vão que o Espírito Santo nos advertiu dessa maneira?
Disso se conclui que, se preceitos humanos forem ordenados para merecer o perdão dos pecados ou se deles for feito um culto necessário, são contrários ao evangelho, e os bispos não têm o poder de ordenar tais traditiones. Pois na igreja é preciso manter puro e claro este que é o principal artigo do evangelho, a saber, que não merecemos o perdão dos pecados por nossas obras nem somos considerados justos por causa do culto a Deus escolhido por nós, mas por causa de Cristo pela fé. Ademais, é preciso saber e reter a doutrina de que no Novo Testamento não há necessidade desse culto com alimentos e vestimentas prescritos e coisas desse tipo, como na lei de Moisés. E ninguém deve onerar a igreja e transformar tais coisas em pecado. Pois Paulo fala assim em Gálatas 5[.1]: “Não se submetam, de novo, a jugo de escravidão”.
Porém, a respeito das festas e outras prescrições eclesiásticas, deve-se manter que bispos ou pastores podem fazer prescrições não para serem atos de culto a Deus nem para merecer o perdão do pecado, mas em função da disciplina exterior, para que tudo aconteça de forma ordeira e pacífica na igreja; os bispos não devem impor essas prescrições à igreja como coisa necessária para a bem-aventurança nem onerar as consciências e declarar como pecado caso elas não sejam cumpridas, a não ser que isso cause ofensa. Assim, Paulo ordenou que as mulheres cobrissem a cabeça na igreja[78]. Igualmente aqueles que explicam a Escritura devem estabelecer entre si uma ordem[79].
As igrejas devem cumprir essas prescrições em função da paz, para que um não incomode o outro, e tudo aconteça de forma ordeira, mas não para onerar as consciências a ponto de as considerarem como culto necessário a Deus e pecarem caso não as cumpram, desde que não causem ofensa. Do mesmo modo que não se considera pecado uma mulher estar na igreja de cabeça descoberta, desde que não provoque ofensa, deve-se pensar a respeito do domingo, da Páscoa, de Pentecostes e de prescrições semelhantes. Pois a igreja não transferiu nem aboliu o sábado, mas Deus mesmo ensinou que, no Novo Testamento, não estamos comprometidos com a lei de Moisés. Assim os apóstolos descartaram o sábado para nos lembrar que não estamos ligados à lei de Moisés. Mas, por ser necessário determinar um dia certo para que o povo saiba quando se congregar, eles ordenaram o domingo para que nele seja ouvida e aprendida a palavra de Deus. Do mesmo modo também foram instituídas as festas, como o Natal, a Páscoa, o Pentecostes etc., para que nelas se ensinem as histórias maravilhosas e salutares. Assim os tempos determinados também ajudam a gravar mais firmemente na memória essas grandes coisas, sem achar que essas festas tenham de ser celebradas ao modo judaico, como se a festa fosse por si só um culto necessário no Novo Testamento, devendo ser celebradas por causa da doutrina.
Antes da nossa época, foi divulgada muita doutrina inconsistente sobre a mudança do sábado e outras cerimônias, dizendo que Cristo teria dado ordem aos apóstolos e bispos para instituir cerimônias como culto a Deus necessário à bem-aventurança do mesmo modo que no Antigo Testamento as cerimônias eram necessárias. Esse erro se instalou porque a fé foi esquecida e se pretendeu merecer um Deus gracioso por meio dessas obras. Foi por essa razão que se fez disso uma coisa necessária, como se Deus não quisesse ser gracioso com ninguém sem esse culto, e a santidade cristã consistisse nessas obras e cerimônias exteriores. E as consciências foram de tal modo intimidadas com isso que se ocuparam muito mais com essas coisas desnecessárias do que com os mandamentos de Deus, do que se queixa Gérson com palavras bem claras[80]. E, embora alguns doctores [doutores] tivessem buscado alívio e epieikeia [moderação], a consciência não consegue se desvencilhar das amarras enquanto considerar essas coisas como culto necessário para se tornar justa perante Deus, não podendo vir a ser justo sem elas.
Os apóstolos proibiram comer carne com sangue e carne de animais sufocados[81], o que hoje não se cumpre mais, sendo que essa proibição é violada sem pecado. Pois os apóstolos não quiseram onerar as consciências e fazer dessa cerimônia uma coisa necessária para a bem–aventurança e um pecado se alguém não a cumprir, mas fizeram essa prescrição temporariamente para não escandalizar os judeus fracos. Pois é preciso contrapor a essa proibição outros ditos da Escritura e da opinião dos apóstolos. Cumprem-se poucos cânones conforme seu teor e muitos caíram em desuso com o tempo, como os canones poenitenciales [as prescrições penitenciais]. Ora, se todas essas coisas fossem consideradas necessárias, quanta oneração das consciências resultaria daí! Por isso é necessário instruir as consciências a cumprir traditiones somente para evitar ofensa e, desde que não haja ofensa, para que não se cometa pecado em coisas que o evangelho quer que sejam de livre escolha.
Os bispos também podem facilmente preservar a obediência habitual que lhes é devida se não insistirem em algumas traditiones que não podem ser cumpridas sem pecado.
Pois nessa questão de modo nenhum se busca privar os bispos de sua autoridade ou de seu poder. Eles, porém, deveriam usar seu poder para melhorar e não para destruir as pobres consciências, não para obstar a doutrina correta, mas para suavizar e relaxar as traditiones ilegítimas, visto que muitas vezes houve traditiones na igreja que se modificaram em função do clima e do tempo, como todo entendido nos cânones pode ver. Porém, quando não se conseguir isso dos bispos, esteja-se ciente de que é preciso obedecer mais a Deus do que a homens e que os bispos terão de prestar contas da cisão provocada na igreja por sua obstinação.
Conclusão
Discorremos sobre os principais artigos de toda a nossa doutrina, sendo que sobre alguns deles haveria mais abusos a relatar, como os referentes a indulgências e peregrinações, ao abuso da excomunhão, bem como sobre a inquietação causada em muitos lugares aos pastores por monges e pregadores de indulgências. Omitimos essas e outras coisas similares, uma vez que dos artigos expostos facilmente se pode depreender o que pensamos disso. Não pretendemos difamar ninguém com este escrito, mas tão somente fazer nossa confissão de fé, da qual se poderá entender que, quanto à doutrina e às cerimônias, não somos contrários à palavra de Deus nem à igreja cristã santa, universal e católica. Pois é notório que nos esforçamos ao máximo para evitar que uma nova doutrina não cristã seja ensinada ou aceita entre nós.
Entregamos os artigos que constam no presente documento a Vossa Majestade Imperial, nosso clementíssimo Senhor, conforme o desejo de Vossa Majestade Imperial de ver uma suma da confissão de nossa fé e da doutrina dos nossos pregadores e pastores. Colocamo-nos à disposição para continuar a expor essa doutrina sempre que isso for desejado, mediante a graça de Deus e a partir da divina Sagrada Escritura, sobre todos os artigos e sobre cada um em separado, segundo a necessidade.
A Vossa Majestade Imperial submissos:
João, Duque da Saxônia, Príncipe-eleitor[82]
Jorge, Margrave de Brandenburg[83]
Ernesto, Duque de Lüneburg[84]
Filipe, Landgrave de Hessen[85]
João Frederico, Duque da Saxônia[86]
Francisco, Duque de Lüneburg[87]
Wolfgang, Príncipe de Anhalt[88]
A cidade de Nürnberg[89]
A cidade de Reutlingen[90]
[1] Acréscimo ao título na versão em língua alemã.
[2] Tradução do texto alemão do prefácio de autoria de Gregório Brück, chanceler do Eleitorado da Saxônia. Fonte: BSELK, p. 86-92 [páginas pares].
[3] Em 21 de janeiro de 1530.
[4] As partes entre aspas são citações literais do edito imperial.
[5] Em 22 de junho de 1530.
[6] Em 24 de junho de 1530. Transferido para sábado, dia 25 de junho.
[7] Em 1529.
[8] Fernando I, irmão de Carlos V e seu representante no Império durante sua ausência de quase nove anos a partir da Dieta de Worms em 1521, em 1526 tornou-se rei da Hungria e da Boêmia e, a partir de 1531, imperador romano-germânico.
[9] Baltasar Merklin, a partir de 1527 foi bispo de Hildesheim e, a partir de 1530, também bispo de Constança, vice-chanceler imperial de Carlos V.
[10] Em 1527.
[11] Na Dieta de Espira em 1529.
[12] Tradução da versão alemã. Fonte: BSELK, p. 92-224 [páginas pares]. Base para as citações bíblicas é a Bíblia Sagrada. Nova Almeida Atualizada. 3. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2017. Quando o texto–fonte do Livro de Concórdia diverge desta tradução bíblica, traduz-se conforme o texto-fonte.
[13] Adeptos de Mani (216-274), profeta iraniano, fundador do maniqueísmo, movimento dualista gnóstico da Antiguidade.
[14] Adeptos de Valentino (cerca de 100-160), líder de um movimento gnóstico da Antiguidade.
[15] Adeptos de Ário (256-336), líder de um movimento da Igreja Antiga que negou a divindade de Cristo e foi condenado como herético no Concílio de Niceia, em 325.
[16] Adeptos de Eunômio de Cízico (faleceu em torno de 393), representante posterior da teologia do arianismo.
[17] Os islamitas, por negarem a Trindade.
[18] Os que defendem a cristologia especial de Paulo de Samósata (cerca de 200-275), bispo de Antioquia.
[19] A designação “os antigos e os novos” indica que as caracterizações feitas aqui não são estritamente históricas, mas de cunho tipológico e polêmico.
[20] Adeptos de Pelágio (350-423), monge da Bretanha, principal adversário teológico de Agostinho, criticado por este por afirmar que o ser humano não depende totalmente da graça de Deus para sua salvação.
[21] CA variata prima de 1533.
[22] Especialmente Rm 3.21-26 e 4.16-25.
[23] Cópia de Espalatino.
[24] Ambrosiastro, Ad Corinthios primam I, 4, em MSL 17, 195.
[25] O termo “anabatista(s)”, derivado do grego, significa literalmente “o(s) que batiza(m) de novo’’. Denominava-se de anabatistas um grupo de pessoas de linha entusiasta ou espiritualista. Um dos seus líderes era Tomás Müntzer. Entre outras peculiaridades, como inspiração direta do céu, defendiam o rebatismo e o batismo de adultos, opondo-se ao batismo de crianças. Cf. OSel 1,413-424.
[26] Ambrosiastro, Ad Corinthios primam I, 4, em MSL 17, 195.
[27] Adeptos de Donato (cerca de 270-355), bispo da Numídia e de Cartago, grupo religioso combatido por Agostinho por fazer a eficácia e validade dos sacramentos dependerem das qualidades morais de quem os oficiava.
[28] A absolvição dos pecados no contexto da confissão de pecados de cada pessoa perante o sacerdote.
[29] Adeptos de Novaciano (200-258), clérigo romano e antipapa; ele defendia que quem abandonar a igreja uma vez não deve mais ser readmitido.
[30] Penitências prescritas na lei canônica.
[31] No original alemão: Policey.
[32] No original alemão: weltlichem regiment.
[33] Pseudo-Agostinho, Hypomnesticon contra Pelagianos sive Caelestinianos haereticos III, 4, 5, em MSL 45, 1623.
[34] Isto é, teólogos, professores e pregadores que defendem a nossa causa.
[35] Cf. Is 57.15.
[36] Cf. Pseudo-Agostinho, Liber de cognitione verae vitae XXXVII, em MSL 40, 1025; Agostinho, In Epistolam Joannis ad Parthos tractatus X, 2, em MSL 35, 2054s.
[37] Cf. Cipriano de Cartago, Epistola LVII, 2, em MSL 3, 857–859.
[38] Jerônimo, Commentariorum in Sophoniam Prophetam, liber III, 1-7, em MSL 25, 1375.
[39] Decreto de Graciano, parte III: De consecratione, distinctio 2, canon 12: Comperimus […]. A Confessio Augustana variata traz a íntegra da sentença de Gelásio: Comperimus autem quod quidam, sumpta tantum corporis sacri portione, a calice sacri cruoris abstineant, qui procul dubio, quoniam nescio qua superstitione docentur astringi, aut integra Sacramenta percipiant, aut ab integris arceantur, quia diuisio unius eiusdemque mysterij, sine grandi sacrilegio non potest accidere (CR 26, 381).
[40] Incidente envolvendo o arcebispo Siegfried de Mogúncia durante sínodo realizado em Mogúncia no ano de 1075, conforme consta nos Anais de Lampert de Hersfeld (cf. Lamperti monachi Hersfeldensis opera, Hannover/Leipzig, 1894, p. 226s.).
[41] O Concílio de Niceia (325 d.C.) recusou-se a exigir o celibato. Quanto aos cânones a que se refere o texto, cf. o Decreto de Graciano, parte I, distinctio 82, cânones 2-5; distinctio 84, canon 4 (edição citada: Decretum Gratiani cum multis noviter additis, Lyon, 1506, 375v).
[42] Cf. Platina, Liber de vita Christi ac omnium pontificum, 218 (213), em RIS, V. 3/1, p. 363,16–17.
[43] Provavelmente referência a membros da Cúria Romana.
[44] Cf. Cipriano de Cartago, Epistola LXII, 2, em MSL 4, 366s.
[45] Cf. 1Co 11.27.
[46] Cf. Hb 9.23-28; 10.10,14.
[47] Trecho transferido para o rodapé na nova edição do LC: “É novidade inaudita na doutrina eclesiástica que a morte de Cristo tenha trazido satisfação somente pelo pecado hereditário e não também por outros pecados. Por essa razão, é de se esperar que cada qual compreenda que esse erro não foi reprovado injustamente”.
[48] Cf. João Crisóstomo, Homilia XVII in Epistolam ad Hebraeos X, 5, em MSG 63, 132-133.
[49] Cf. Decreto de Graciano, parte I, distinctio 34, canon 7; parte II, causa 1, quaestio 7, canon 5.
[50] Concilium Nicaenum, cânon 18, em COD 14,8–11.
[51] Cf. Cassiodoro, Historia Tripartita IX, 38, em MSL 69, 1155.
[52] Cf. Jr 17.9.
[53] Cf. Sl 37.5.
[54] Decreto de Graciano, parte II, causa 33, quaestio 3: De poenitentia, distinctio 1, canon 87, § 4; cf. João Crisóstomo, Homilia XXXI in Epistolam ad Hebraeos XII, 3, em MSG 63, 216.
[55] Decreto de Graciano, parte II, causa 33, quaestio 3: De poenitentia, distinctio 1, canon 5, § 1.
[56] P. ex., Tomás de Aquino, Summa Theologiae II,2 qu. 147, art. 1.
[57] Cf. João Gérson, De vita spirituali animae, lectio II, em GOC 3, 128s.
[58] Cf. Agostinho, Epistola LIV, 2, 2, em MSL 33, 200; Epistola LV, 19, 35, em MSL 33, 221.
[59] Sobre Joviniano, ver Apologia XXIII, p. 287, n. 366.
[60] Cf. Mc 9.29.
[61] Cf. 1Co 9.27.
[62] Eusébio de Cesareia, Historia Ecclesiastica V, 24, 13, em MSG 20, 504.
[63] Cassiodoro, Historia Tripartita IX, 38, em MSL 69, 1154.
[64] Em distinção aos mandamentos [praecepta], válidos para todos os crentes, os homens e as mulheres que ingressavam em uma ordem professavam também os “conselhos evangélicos” [consilia evangelica], a saber, pobreza, castidade e obediência, que eram reputados como necessários para uma vida perfeita, mas não para alcançar a salvação.
[65] Ramiro II de Aragão; cf. LMA 7, 426s.; cf. também: João Gérson, De consiliis evangelicis et statu perfectionis, em GOC 3, 22.
[66] Cf. Decreto de Graciano, parte II, causa 20, quaestio 1, canon 10.
[67] Cf. Decreto de Graciano, parte II, causa 20, quaestio 1, canon 5.
[68] Decreto de Graciano, parte II, causa 27, quaestio 1, canon 41: Nuptiarum […]; cf. Agostinho, De bono viduitatis VIII, 11–XI, 14, em MSL 40, 437–439.
[69] “Vínculos [visando à prática] da iniquidade”. Cf. Decreto de Graciano, parte II, causa 22, quaestio 4, canon 22.
[70] Cf. João Gérson, De consiliis evangelicis et statu perfectionis, em GOC 3, 24s.
[71] Casos reservados eram aqueles em que a absolvição era da competência exclusiva do papa ou dos bispos.
[72] A excomunhão era um procedimento de direito eclesiástico em que a pessoa excomungada ficava excluída da participação nos sacramentos e, devido à conexão íntima do poder eclesial e poder secular, tinha como consequência automática também o banimento imperial.
[73] Cf. Decreto de Graciano, parte II, causa 2, quaestio 7, canon 8 (dos sacerdotes) e canon 13 (das ovelhas).
[74] Agostinho, Ad catholicos fratres XI, 28, em MSL 43, 410s.
[75] Cf. At 15.20,29.
[76] Cf. Decreto de Graciano, parte I, distinctio 9, cânones 3 e 8.
[77] Cf. 1Tm 4.1-3.
[78] Cf. 1Co 11.4-10.
[79] Cf. 1Co 14.26-40.
[80] Com frequência em Gérson.
[81] Cf. At 15.20,29.
[82] João o Constante (1468-1532), irmão de Frederico o Sábio, a partir de 1525 príncipe-eleitor da Saxônia.
[83] Jorge o Piedoso (1484-1543), a partir de 1515 margrave de Brandenburg-Ansbach.
[84] Ernesto o Confessor (1497-1546), a partir de 1522 duque de Lüneburg.
[85] Filipe o Magnânimo (1504-1567), a partir de 1509 ou então 1518 landgrave de Hessen.
[86] João Frederico o Magnânimo (1503-1554), filho de João o Constante, a partir de 1532 príncipe-eleitor da Saxônia, a partir de 1547 só mais duque.
[87] Francisco (1508-1549), irmão de Ernesto o Confessor, a partir de 1536 duque de Braunschweig-Lüneburg.
[88] Wolfgang (1492-1566), de 1508 a 1562 príncipe de Anhalt-Köthen.
[89] Delegados: cônegos Cristóvão Kreß e Clemente Volkamer.
[90] Delegado: burgomestre Jos Weiß.