CULPA, PERDÃO E PENITÊNCIA EM LUTERO*
Joachim Fischer
1. A CULPA: UMA REALIDADE DA VIDA HUMANA
Fui incumbido de abordar o tema ¨culpa, perdão e penitência como temas da história da Igreja¨. Quem se aprofunda neste assunto, percebe logo que culpa, perdão e penitência não são apenas temas que ocorrem ao longo da história da Igreja. São, em primeiro lugar, realidades da vida humana. Somente a partir disso tornam-se, num segundo passo, também ¨temas¨ da reflexão teológica, no passado como no presente. Com dois exemplos quero ilustrar o caráter pessoal e existencial do assunto.
No primeiro exemplo trata-se de uma experiência minha. Aconteceu no tempo em que os pastores viajavam para a Alemanha ainda de navio. Para pegar o navio que me levaria de volta ao Brasil, após alguns meses de estada no Velho Mundo, tive que viajar de trem pela França. Viajei sozinho; esposa e filha seguiram mais tarde. O compartimento estava todo ocupado. Como não falo francês, não pude conversar com ninguém. Para me distrair, li um livro em alemão. Após algum tempo meu vizinho, que falava um pouco de alemão, me perguntou se era alemão. Respondi que sim. Então começou a contar algo da história de sua família, algo muito vergonhoso para um alemão, como eu. Aquele passageiro era judeu. Grande parte de seus parentes haviam sido vítimas do holocausto, o terrível extermínio dos judeus pelos nazistas. Falou, se não me engano, de uns 130 parentes assassinados. Naquele momento não consegui responder-lhe nada. Pessoalmente não havia participado daqueles crimes. Não havia ajudado a pôr em funcionamento o holocausto organizado às ordens de Hitler nem a mantê-lo funcionando. Na própria época da ditadura nazista nem sabia praticamente nada do que acontecia em campos de extermínio como Auschwitz, Maidanek, Theresienstadt e outros. Podia ter respondido, pois, que não era culpado das atrocidades cometidas contra o povo judeu. Na verdade, porém, senti-me tremendamente envergonhado e culpado.
Naquela viagem de trem encontraram-se um sobrevivente do holocausto que vitimou milhões de judeus, e um descendente do povo ao qual pertenceram também os carrascos do holocausto. No encontro e na conversa revelou-se culpa: culpa por causa de algo que não fiz pessoalmente, mas do qual, mesmo assim, me senti culpado, culpa como algo profundo e pessoal que tem muito a ver com o convívio das pessoas, culpa como uma realidade da vida humana.
Poder-se-ia dizer que tudo isso é problema dos alemães. Eles permitiram a ascensão de Hitler. Eles lhe permitiram concretizar seus planos indizivelmente criminosos. Eles colocaram-se à sua disposição para a execução do holocausto. Cabe, pois, a eles resolver este seu problema e conviver com sua culpa.
No que diz respeito ao holocausto, isto está certo. É a herança que o povo alemão precisa carregar. Não queremos nem pretendemos equiparar esse capítulo da história do povo alemão à história de outros povos. Mas verdade é que culpa existe também na história de outros povos. Quero ilustrar isso com outro exemplo, tirado da história do Brasil, da qual somos co-participantes; consequentemente, somos co-responsáveis por ela.
Os indígenas eram, originalmente, os únicos donos desta terra. De repente, suas terras foram invadidas. Os ádvenas consideravam-se a si mesmos como superiores em todos os sentidos aos indígenas. Acreditavam firmemente que eram, por ordem divina, os senhores natos dos que aqui viviam. Isso continua até hoje. Os indígenas estão sendo progressivamente exterminados. O autor do artigo ¨Populações indígenas aquelas que devem viver¨ constata:
Quando Cabral chegou aqui, calcula-se, que os índios eram dois milhões e falavam cerca de 300 línguas diferentes. Aos poucos, (…) os povos indígenas foram desaparecendo. (…) Após quase 500 anos de extermínio (…) e de exploração existem hoje no Brasil, sobrevivendo e resistindo, dezenas de nações indígenas totalizando cerca de 180 mil índios, falando mais de 100 línguas diferentes.1
Ao longo de sua história devem ter sentido sempre de novo o que ¨alguns sábios e sacerdotes astecas sobreviventes¨ disseram aos primeiros franciscanos que chegaram à Nova Espanha (México), em 1524:
Talvez para nossa perdição,
talvez para nossa destruição,
é para aí somente que seremos levados.
(Mas) aonde devemos ainda ir?
Somos gente simples,
somos perecíveis, somos mortais,
deixai-nos, pois, morrer,
deixai-nos perecer,
pois nossos deuses já estão mortos.2
É verdade que pessoalmente não invadimos terras indígenas. No entanto, podemos dizer que não temos absolutamente nada a ver com esta história triste e sangrenta? Podemos afirmar de boa consciência que não nos cabe nenhuma culpa neste assunto? Sem muita hesitação aproveitamo-nos da realidade criada no passado por imigrantes-invasores das más diversas procedências, entre eles também os imigrantes-colonos evangélicos com os quais inicia a história da nossa Igreja. Num estudo minucioso, Ítala Basile Becker mostrou, até com mapas, que a área prevista para a colonização com alemães coincidiu parcialmente com a área habitada por kaingáng3. Chegou à conclusão de que seus assaltos a colonos eram, do ponto de vista indígena, ¨atos de defesa ou vingança contra a invasão e opressão branca¨4. Um relatório do primeiro pastor evangélico de São Leopoldo, Johann Georg Ehlers (1779-1850), de 1844, confirma que no início da colonização ¨a mata virgem ainda estava ocupada por rudes selvagens¨, segundo as palavras do pastor. Ehlers menciona também os assaltos dos indígenas e suas vítimas e acrescentou que na época do relatório a região estava ¨limpa¨5. Aparentemente aprovou esse desfecho.
O triste resultado foi descrito pelo médico alemão Robert Avé-Lallemant (1812-1884), que percorreu o Rio Grande do Sul em 1858. Na ¨aldeia de índios de São Nicolau, perto de Rio Pardo¨, encontrou indígenas que chamou de ¨seres humanos provisórios¨ que ¨lentamente, preguiçosamente vegetam sua vida de lêmures [fantasmas, espíritos sobrenaturais] sem nada fazer, nada pensar, nada sentir¨, ¨cada dia mais reduzidos¨6. Não podemos voltar na história à época anterior à grande invasão das terras indígenas.
Não podemos fazer desaparecer São Leopoldo e todos os outros lugares, povoados e cidades para devolver tudo aos indígenas. Mas pelo menos deveríamos conscientizar-nos da nossa situação histórica e de seus antecedentes. Moramos num lugar que outrora era dos kaingáng. Recebemos isso dos nossos antepassados que os expulsaram. Precisamos assumir esta nossa herança histórica e confessar a culpa que nos sobrevém da história. Também neste caso trata-se de uma realidade da vida humana, e indubitavelmente da nossa vida.
2. PENITÊNCIA: O ESTOPIM DA REFORMA LUTERANA
Na Idade Média, especialmente no seu final, o medo era um dos sentimentos predominantes entre os cristãos. Segundo o pensamento da época, a pessoa torna-se culpada perante Deus pelo pecado. O culpado será punido. A pena é o inferno. A arte medieval mostra com impressionante realismo os horrores dessa pena eterna Só havia uma única possibilidade de escapar desse destino terrível: a Penitência, pela qual são perdoadas ao pecador a culpa perante Deus e a pena eterna ‘do inferno. A Penitência é um dos sete sacramentos da Igreja Católica Romana. Sua aplicação prática está nas mãos da Igreja-instituição: é administrada, concretamente, pelos sacerdotes. Consiste de três partes: a contrição ou arrependimento do coração pelo pecado. cometido, a confissão oral dos pecados perante o sacerdote e a satisfação, que são boas obras que, segundo essa concepção, compensam os danos e prejuízos temporais causados pelo pecado. Penitência, pois, acontece em determinados momentos da vida do cristão. Quem atende o pecador arrependido é Deus, mas ele o faz através do sacerdote, que, por sua vez, representa também a Igreja-instituição. Sobretudo na Idade Média a Penitência garantiu à Igreja uma enorme influência sobre os fiéis, dos governantes mais poderosos até aos camponeses mais simples e humildes. O cristão dependia totalmente da Igreja no que diz respeito à sua salvação. Dessa maneira a Penitência tomou-se o sacramento mais importante e mais procurado no dia-a-dia das pessoas.
A dependência aumentou mais ainda devido a um aspecto peculiar deste sacramento. Por ele são perdoadas a culpa perante Deus e a pena eterna. A Penitência dá ao cristão a certeza de não precisar ir para o inferno após a morte. Permanece, porém, a pena temporal: adversidades desta vida, doenças, desgraça, infelicidade, etc., e não por último o purgatório. Este é apresentado pela arte contemporânea com o mesmo realismo como o inferno: pecadores estão sendo cozidos em óleo numa grande caldeira, mexida por um diabo com um enorme garfo; o avarento é obrigado por um diabo a engolir por um funil moedas em brasa; a mulher vaidosa é abraçada por um diabo extremamente feio, etc. É fácil imaginar que todo o mundo desejava escapar de tais torturas. Mas boas obras, por mais numerosas que fossem, jamais seriam uma compensação suficiente. Havia um único caminho seguro para evitar o purgatório: as indulgências, uma espécie de atestados que garantiam ao comprador que não precisava passar pelo purgatório graças aos méritos excedentes de Cristo e dos santos. Indulgências até podiam ser compradas em favor de pessoas já falecidas. Quem seria tão insensível que não gostasse de adquirir tais atestados para abrir o céu a seus familiares mortos? As indulgências tomaram-se um dos ¨meios de salvação¨ mais procurados — e mais explorados pela Igreja como instituição, pois serviu-lhe como meio de arrecadar dinheiro.
Lutero levou muito a sério o caminho da salvação que sua Igreja lhe indicou, a Penitência. Levou-o a sério até as últimas consequências. Estava preocupadíssimo sobretudo num ponto. Acreditava que era necessário confessar ao sacerdote todos os pecados, sem exceção, porque pecados não confessados não seriam perdoados; levariam, pois, ao purgatório. Lutero observava-se a si mesmo com a maior atenção para descobrir até o menor pecado no lugar mais oculto de seu interior. Quase chegou ao ponto de necessitar de um pastor-confessor só para si. Segundo ele,
havia tal correria que jamais se podia confessar-se suficientemente. Quando a gente se lembrava de mais um pecado, voltava logo [para confessar-se novamente]. Uma vez o sacerdote até me disse: ¨Deus ordenou confiar em sua misericórdia; vai em paz!¨7
Um amigo seu, ao participar da Eucaristia, às vezes voltou três ou quatro vezes para o sacerdote, antes de receber a hóstia, porque se lembrava de mais um pecado; ao receber a hóstia, confessou-se mais uma vez ao ouvido do sacerdote. ¨Tudo isso¨, diz Lutero, ¨fizemos por temor de Deus para sermos justificados.¨ 8
As dificuldades de Lutero não terminam por aí. Apesar de todos os seus esforços, sentiu-se, em determinados momentos, terrivelmente torturado em seu interior e em sua consciência e até condenado para toda a eternidade. A Penitência, que a Igreja lhe oferecia como ajuda e alívio, na verdade agravou sua situação; aumentou suas tentações, sua desconfiança, seu desespero, a consequência inevitável da falta de confiança. Em tais momentos tinha a sensação de ter caído no abismo da mais profunda tristeza, segundo o depoimento dele mesmo, escrito não muito tempo depois daquela fase crítica de sua vida com Deus:
(…) conheci uma pessoa que afirmou ter sofrido essas penas muitas vezes, é verdade que por um brevíssimo espaço de tempo, porém tão grandes e tão infernais, que nenhuma língua pode expressá-las, nenhuma pena pode descrevê-las e quem não as experimentou não pode crer. Elas eram de tal natureza que, se fossem completadas ou durassem meia hora — sim, um décimo de hora —, ela pereceria de todo, e todos os seus ossos seriam reduzidos a cinzas. Aqui Deus se mostra horrivelmente irado e, com ele, também toda a criação. Então não há nenhuma fuga, nenhum consolo, nem interior nem exterior, mas [unicamente] acusação por parte de tudo. Então se geme aquele versículo: ¨Fui expulso dos teus olhos¨ [SI 31.22] (…). Nesse momento (…) a alma não pode crer que alguma vez possa ser remida; ela só sente que a pena ainda não está completa. Entretanto, ela é eterna e não pode considerá-la temporal; resta apenas o puro desejo de auxílio e um horrendo gemido, mas ela não sabe de onde pedir auxílio. Aqui a alma está estendida com Cristo, de modo que se podem contar todos os seus ossos, e não há nenhum canto nela que não esteja repleto do mais amargo amargor, horror, pavor, tristeza, porém de tal maneira, que todas estas coisas são eternas.9
Os enormes problemas que Lutero tinha consigo mesmo poderiam ser interpretados como manifestação de uma doença nervosa, p. ex., uma ¨neurose traumática¨, como já aconteceu10. Na verdade, porém, Lutero lutou com Deus, como Jacó no Jaboque (Gn 32.22-30). Descobriu que era impossível superar a culpa e aproximar-se de Deus através de seus próprios esforços e atividades. Estava preocupado com a pergunta como ele podia se salvar. Porém não conseguiu libertar-se da culpa, por mais sincera e profunda que tenha sido sua penitência. Ninguém consegue propositadamente assumir e carregar a culpa que caracteriza a existência humana. Muito menos somos capazes de assumir e carregar a múltipla culpa do mundo. Lutero experimentou que isso é um ônus demasiadamente grande. Girava excessivamente em torno de si mesmo. Seguindo a orientação da Igreja, desenvolveu muitas atividades, mas elas, a rigor, não serviram a ninguém, nem sequer a ele mesmo. Perdeu totalmente de vista seus próximos, suas necessidades, sua salvação, seu bem-estar. Encontrava-se no cativeiro do seu Eu. Ainda não conhecia o caminho da libertação. Poderia ter resumido sua experiência na frase: ¨Vi o abismo da culpa face a face, e a minha vida estava perdida.¨
3. PERDÃO: O CORAÇÃO ABERTO DE DEUS PAI
Em meio a suas tentações e depressões, que os monges costumavam chamar de ¨banho do diabo¨11, Lutero fez uma descoberta que certamente foi uma das mais importantes em sua caminhada teológica e sem dúvida alguma a decisiva naquelas tempestades espirituais. Descobriu que sua profunda angústia, seu medo e desespero não significavam o completo abandono por parte de Deus. Ao contrário, indicavam a poderosa presença e o salutar agir de Deus em sua vida. Eram indícios claros de que Deus já se voltara para ele. Ele, o pecador, estava sendo preparado por Deus para a salvação, a graça, a justificação, a paz, que são a obra própria de Deus. Percebeu que era necessário ser levado primeiro ¨ao terror e desalento¨. Era necessário ter ¨a verdadeira dor de coração¨ e ¨sofrer e sentir a morte¨. Tudo isso já é obra de Deus. Assim Deus está destruindo o poder do pecado pelo ¨martelo¨ de sua palavra, ¨que esmiuça as penhas¨, como Lutero diz nos Artigos de Esmalcalde, citando Jr 23.2912. As marteladas visam o perdão.
Para Lutero, o perdão é o centro e a essência da vida cristã. No Catecismo Maior escreve: ¨(…) tudo na cristandade é ordenado para a finalidade de aí se buscar todos os dias simplesmente pleno perdão dos pecados (…), para confortar e erigir nossa consciência, enquanto aqui vivemos.¨13
Nossos pecados e nossa culpa não nos são debitados por Deus em nossa conta, mas nos é creditada na mesma a justiça de Cristo como sendo nossa. Consequentemente, ¨um cristão autêntico não é aquele que não tem nem sente pecado, e sim aquele ao qual o pecado não é debitado por Deus, nosso Senhor, por causa de sua fé em Cristo.¨14 A justificação somente pela fé é perdão dos pecados. Disso não se pode abrir mão. Caso contrário ¨tudo está perciido¨15.
Lutero chegou a encarar de maneira diferente o problema de sua culpa, quando percebeu que Cristo não é o juiz temível, como lhe haviam ensinado, e sim o sofredor, solidário conosco que sofremos sob o fardo da nossa culpa. O Cristo sofredor era de suma importância para a fé do povo, que não tinha condições de acompanhar o raciocínio dos teólogos. Até hoje o sofrido povo brasileiro católico busca apoio e consolo na imagem do Cristo sofredor, não na imagem do ressurreto sentado à destra do Pai16. Bela expressão luterana dessa piedade, praticamente desconhecida entre nós, é o escrito que Lutero redigiu para o povo de seu tempo, intitulado ¨Um sermão sobre a contemplação do santo sofrimento de Cristo¨17, de 1519.
Um pouco mais tarde (1520) Lutero descreveu nossa relação com Cristo como casamento com plena comunhão de bens. Pela fé, a ¨alma¨ está unida com Cristo,
como a esposa se une com seu esposo. Deste casamento resulta (…): Cristo e a alma se tornam um só corpo, de maneira tal, que tudo quanto ambos possuem, bens, felicidade, infelicidade, tudo, enfim, possuem-no em comum. O que Cristo tem pertence à alma crente, e o que a alma tem pertencerá a Cristo.
A bem-aventurança de Cristo torna-se nossa; nossa maldade e nosso pecado tomam-se ¨propriedade de Cristo¨. O perdão outra coisa não é senão este ¨feliz intercâmbio¨. Assim
¨os pecados são absorvidos por Cristo e permanecem nele, pois não há pecado capaz de resistir à invencível justiça de Cristo. Deste modo a alma se vê limpa de todos os pecados, em virtude¨ de seu presente de casamento, isto é, da fé, ¨e dotada com a justiça eterna de seu¨ noivo, Cristo. ¨Não é, acaso¨ um casamento feliz que ¨Cristo, o noivo rico, nobre e justo, se case com¨ a meretrícula pobre, desprezada e má, ¨tirando-a desta forma de todo o mal e adornando-a com toda espécie de bens? Já não é mais possível que a alma seja condenada por seus pecados (…).¨
Em resposta a isso, o pecador só pode dizer com o apóstolo Paulo: ¨Louvor e graças a Deus que nos deu tal vitória em Cristo Jesus, pela qual está tragada a morte, juntamente com o pecado.¨ (1 Co 15.57, 54a.)18
Um dos biógrafos recentes de Lutero observa que Lutero jamais teria superado seus problemas de espiritualidade, decorrentes da culpa que sentia diante de Deus, se tivesse continuado a se preocupar exclusivamente consigo mesmo. Precisava também de ¨impulsos criativos¨ de fora. Vieram, em primeiro lugar, da Bíblia. Ela mostra e traz aquele Cristo que nos abre o acesso a Deus Pai. Cristo, diz Lutero, é o ¨espelho do coração paterno¨ de Deus 19. Em Cristo se vêem as ¨profundezas [Abgrund, abismo] da majestade divina¨ e nelas a ¨inefável vontade e amor clemente do coração paterno para conosco¨20. Cristo é encontrado na Bíblia. ¨Sem dúvida alg. uma toda a Escritura está orientada unicamente para Cristo.¨21 Por isso ela é de importância fundamental para a superação de toda e qualquer tentação. Não foi por acaso que Lutero, no mosteiro, se apaixonou pela Bíblia, em meio a uma época em que alguém se podia tornar doutor em Teologia sem possuir um exemplar próprio da Sagrada Escritura22. O tema ¨Lutero e a Bíblia¨ foi abordado já muitas vezes23, razão pela qual neste lugar não entro em mais detalhes.
Importantíssimo para a superação dos problemas que Lutero enfrentou foi também seu pastor-conselheiro e confessor, João von Staupitz (provavelmente 1469-1524). É um belo exemplo do papel que tal conselheiro pode desempenhar na vida de uma pessoa atribulada, angustiada e sufocada pelo sentimento de culpa, inferioridade e perdição. Staupitz era vigário-geral da Ordem dos Eremitas Agostinianos, à qual também Lutero pertencia. Era, pois, seu superior, que tinha o direito de lhe dar ordens e de avaliar sua vida e suas atividades, com os respectivos pareceres para as instâncias superiores. Os dois papéis, ser superior de Lutero e ser seu conselheiro e confessor, não se excluíam.
Staupitz aconselhou Lutero, em especial, a não se fixar sempre em si mesmo e em seus problemas. Foi o primeiro que explicou a Lutero a verdadeira penitência. Anteriormente a palavra ¨penitência¨ havia sido a mais amarga de toda a Escritura, para Lutero; depois tomou-se-lhe mais doce e agradável que todas as outras24. Staupitz lhe disse também que deveria ¨olhar para o homem que se chama Cristo¨, em vez de fitar os olhos em seus escrúpulos e angústias25. Apontou, sobretudo, para as chagas de Cristo, isto é, para o Cristo sofredor, crucificado26. Ensinou-lhe que justamente a intensidade das tentações é um sinal de que Deus o predestinou para uma grande tarefa27.
Mais tarde Staupitz se declarou publicamente contra a Reforma. Apesar disso Lutero sempre se lembrou dele com gratidão. Em 1523 lhe escreveu que graças a ele, Staupitz, ¨a luz do Evangelho brilhou pela primeira vez em nosso corações em meio às trevas¨28. Aos seus companheiros, sentados em torno de sua mesa em Wittenberg, disse uma vez: ¨Tenho toda a minha causa do doutor Staupitz; ele mo proporcionou.¨29 Muito, pois, o conselheiro e orientador espiritual contribuiu não apenas para alguns melhoramentos na instituição à qual servia, e sim para o desencadeamento de um movimento de proporções universais, a Reforma.
4. PERDÃO: A LIBERTAÇÃO PARA O SERVIÇO AO PRÓXIMO
O perdão sempre tem duas dimensões: nossa aceitação por parte de Deus e a aceitação do nosso próximo por nossa parte. Segundo Lutero, ¨Deus não quer (…) perdoar o pecado a ninguém, a não ser que perdoemos também ao nosso próximo.¨30 O perdão de Deus liberta-nos da fixação em nós mesmos; abre nossos olhos, corações e mãos para o próximo e suas necessidades. ¨A verdadeira vida do cristão¨ é uma vida cheia de boas obras evangélicas, uma vida em que todo o agir visa o ¨bem do próximo¨, pois não precisamos merecer nossa salvação, porque a recebemos de graça. O perdão de Deus liberta-nos para servirmos ¨ao próximo com amor desinteressado¨31. Perfeitamente de acordo com esse pensamento de Lutero, uma confissão de fé do nosso século constata que por intermédio de Jesus Cristo, ¨a única palavra de Deus que devemos ouvir”, ¨experimentamos (…) jubilosa libertação dos ímpios grilhões deste mundo, para servirmos livremente e com gratidão às suas criatu-ras¨32. Nesse sentido ¨o cristão é servidor de todas as coisas¨33; ¨não vive em si mesmo, mas em Cristo e no próximo¨. Nisso consiste sua ¨liberdade verdadeira, espiritual e cristã, (…) a liberdade que supera a toda outra I iberdade¨34.
Todos os que foram libertados por Deus formam a comunhão dos santos ou o corpo de Cristo. Sua ¨lei¨ básica, a ¨lei de Cristo¨ que Paulo menciona em GI 6.2, é o serviço mútuo dos seus membros. ¨(…) minhas obras¨, diz Lutero, ¨devem servir ao corpo e aos seus membros, isto é, a meus queridos irmãos e companheiros; não quero propor-me algo particular meu nem causar discórdia e seitas.¨35 Os perdoados por Deus são ¨unânimes no amor, sem seitas e sem cismas¨36. Colocam-se inteiramente à disposição dos que deles precisam. Na congregação cristã ¨tudo é comum [a todos], e os bens de cada um pertencem ao outro, e ninguém possui algo para si somente¨37. Essa comunhão inclui o perdão concedido ao próximo, o que também prometemos fazer no Pai Nosso: ¨Assim como nós perdoamos aos nossos devedores.¨38 ¨(…) continuamente devemos perdoar ao nosso próximo¨, escreve Lutero no Catecismo Maior, ¨que nos inflija dano, violência e injustiça, proceda com maligna astúcia contra nós, etc.¨39
O perdão mútuo entre os cristãos é ¨sem medida nem termo. Sempre um deve perdoar ao outro.¨40 A base do perdão humano é a confiança. Perdoar ao próximo significa, fundamentalmente, confiar nele e, assim, libertá-lo para que também perdoe. Quando os cristãos da República Democrática Alemã realizaram, em 1983, uma série de Dias de Igreja (Kirchentage), também em homenagem aos 500 anos de Lutero, escolheram o lema ¨Vertrauen wagen¨ (¨Arriscar confiança¨). Parece-me uma excelente atualização do perdão mútuo, não apenas para a situação deles, mas também para a nossa. O ser humano é desconfiado por natureza, primeiramente em relação a Deus. Todos, diz a Confissão de Augsburgo, reproduzindo com fidelidade o pensamento de Lutero, ¨nascem (…) sem confiança em Deus¨41. Consequentemente, falta também a legítima confiança humana nas criaturas de Deus. O perdão de Deus tira-nos da desconfiança fundamental em relação a ele, Deus. Aceitar o perdão de Deus, crer em Deus quer dizer confiar-se de coração a ele42. O perdão de Deus liberta-nos para que possamos perdoar aos nossos devedores. Este perdão arrisca confiança. Ajuda a superar a profunda desconfiança que distorce todas as relações humanas. Ajuda a criar um clima de confiança mútua que possibilita vida plena e digna, seja numa instituição como a Escola Superior de Teologia, em nossa comunidade, em nossa Igreja, em nosso país ou entre os povos.
Arriscar confiança não quer dizer, no entanto, submissão passiva e cega a outros. A partir do perdão de Deus nossa missão é servirmos e sermos úteis ao próximo necessitado, não aos caprichos e às arbitrariedades de quem quer que seja. Perdoados por Deus, somos chamados a cooperarmos com ele ¨na superação do mundo que é inimigo de Deus¨. Neste contexto somos chamados a lutarmos pelos direitos que são negados ao nosso próximo43.
Arriscar confiança em relação ao nosso próximo não é fácil. Não há nenhuma garantia de bom êxito. Nossa confiança humana muitas vezes é abusada e explorada por outros, que a consideram como ingenuidade, falta de esperteza ou fraqueza. Mas o perdão de Deus possibilita sempre um novo começo também em nosso convívio humano. Arriscar confiança em relação ao nosso próximo não é somente concordância com suas idéias, propostas e projetos. É, em sua dimensão mais profunda, solidariedade radical e abrangente com o pecador, como transparece nas seguintes palavras de Lutero: ¨Uma virgem tem que dar sua grinalda a uma prostituta, uma mulher irrepreensível [tem que dar] seu véu a uma adúltera, e o que é nosso temos que deixar ser uma roupa para cobrir os pecadores.¨44 Devemos afundar-nos na lama tão profundamente como o pecador, carregar seu pecado como se fosse nosso, e livrar-nos da lama. Devemos admoestar o pecador seriamente, mas não desprezá-lo, e sim amá-lo de coração. Essas são ¨as verdadeiras obras cristãs¨45.
5. PENITÊNCIA EVANGÉLICA: UMA QUESTÃO DE SAÚDE ESPIRITUAL E TEOLÓGICA
A Reforma do século XVI começou, por assim dizer, com a redefinição da penitência. Segundo a primeira das famosas 95 teses de Lutero, de 31 de outubro de 1517, ¨ao dizer: ‘Fazei penitência’, etc. [Mt 4.17], nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo quis que toda a vida dos fiéis fosse penitência.¨46
A questão da penitência era vital para a prática eclesial de então. Por causa dela Lutero havia experimentado muita angústia e desespero. O que estava em jogo era a certeza do perdão e, consequentemente, da salvação. Lutero viu-se confrontado com essa questão também como pregador em sua cidade, Wittenberg47. Conforme a compreensão tradicional, destacavam-se no Sacramento da Penitência os atos do penitente. Atos humanos, porém, jamais podem dar-nos a certeza do perdão. Por isso Lutero criticou veementemente essa compreensão. ¨Penitência¨, por um lado, não são apenas os momentos em que se pratica o sacramento chamado Penitência. Penitência é toda a vida do cristão: viver como cristão significa viver arrependido do pecado por amor a Deus e receber dele o perdão. O ¨coração¨ da penitência, por outro lado, é aquilo que Deus faz, ou seja, a absolvição dos pecados e da cuipa48.
A principal característica da Igreja cristã é, para Lutero, que nela acontece constantemente perdão. Na ¨cristandade¨ (no sentido luterano da palavra) o Espírito Santo ¨perdoa a mim e a todos os crentes diária e abundantemente todos os pecados (…)¨, escreve Lutero no Catecismo Menor49. No Catecismo Maior explica que ¨tudo na cristandade é ordenado para a finalidade de aí se buscar todos os dias simplesmente pleno perdão dos pecados (…), enquanto aqui vivemos.¨ Na cristandade ¨não há senão remissão de pecados (…). Fora da cristandade, porém, onde não está o evangelho, outrossim não há perdão (…).¨50 O perdão não está presente apenas no âmbito do culto, da pregação e dos sacramentos. Chega a nós também ¨através de múltiplas palavras consolatórias de todo o evangelho¨ e, não por último, através da absolvição51. Assim, diz Lutero, Crista ¨lhes enche [aos seus cristãos] todos os cantos com perdão do pecado, para que devam encontrar perdão dos pecados não apenas na comunidade, mas também em casa, no campo, no quintal, e em qualquer lugar em que alguém chega ao outro, deve ter consolo e salvação (…).¨52 O perdão nos é ¨trazido para casa, perante a porta, e até colocado dentro do peito’53.
Estamos acostumados a entender o ministério eclesial como ministério da pregação ou ministério da Palavra e dos sacramentos. Mas seria uma heresia restringi-lo a isso. Para Lutero e as confissões luteranas é essencialmente também ministério ou ofício ou poder das chaves. A Confissão de Augsburgo fala, após o Batismo (art. IX) e a Ceia do Senhor (art. X), também da confissão dos pecados (art. Xf) e do arrependimento (art. XII). Nos Artigos de Esmalcalde Lutero trata também do ofício das chaves, da confissão e da excomunhão (III, 7; 8; 9). Entende que o ofício das chaves foi instituído por Cristo no Evangelho (ou por Deus mediante Cristo) como ¨auxílio e consolo contra o pecado e a má consciência¨. Acrescenta: ¨(…) de forma nenhuma se deve permitir que a confissão ou absolvição caia em desuso na igreja¨54. Em importantes escritos eclesiológicos inclui o poder das chaves expressamente entre os sinais da verdadeira Igreja de Jesus Cristo55. Lamentavelmente somos, hoje, pouco luteranos neste particular.
Deus deu à Igreja, mediante Cristo, duas chaves ou dois poderes, segundo Mt 16.19 e 18.18: o poder de ligar os pecados dos pecadores não-arrependidos e o poder de desligar, isto é, perdoar ou absolver os pecados dos que deles se arrependem e os confessam, confiando-se inteiramente à graça e misericórdia de Deus. Também o primeiro poder, porém, visa, em última análise, o perdão, pois quer levar o pecador ao arrependimento e à confissão, de modo que possa receber o perdão56.
Na redefinição evangélica da Penitência Lutero distingue nela duas partes, a confissão dos pecados e a absolvição ou o perdão. Quanto à confissão, conhece as seguintes maneiras de praticá-la:
a) A confissão dos pecados perante Deus acontece na oração, onde se pede também o perdão: ¨Perdoa-nos as nossas dívidas.¨ (Mt 6.12a.) Essa confissão é ordenada por Deus. Jamais pode ser omitida.
b) Confessamos nossos pecados e nossa culpa também perante aqueles que temos ofendido, injustiçado e prejudicado. Esta confissão é fruto e conseqüência da confissão perante Deus. Também é ordenada por Deus e não pode faltar na vida do cristão57.
c) A confissão particular ou privada em tese é livre, mas é de inestimável valor, motivo pelo qual igualmente não pode faltar numa vivência saudável da fé. Numa prédica de 1522 Lutero declarou:
(…) não pretendo permitir que me tirem a confissão privada; não gostaria de trocá-la nem pelos tesouros do mundo inteiro. Pois conheço o consolo e a força que me deu (…). Sim, já há muito eu teria sido estrangulado pelo diabo, se a confissão não me tivesse preservado.58
No Catecismo Menor mostra, após ter falado sobre o Batismo, mas antes do capítulo sobre a Ceia do Senhor, ¨como se deve ensinar as pessoas simples a se confessarem¨59. Ao Catecismo Maior acrescentou, desde a 2a edição, como apêndice uma ¨breve admoestação a se confessar¨60, lamentável e talvez significativamente não incluída na tradução portuguesa do Livro de concórdia. Em outra oportunidade Lutero afirmou que não queria nem pretendia prescindir da confissão. ¨Pois ela me dá freqüente e ainda diariamente grande consolo, quando me sinto deprimido e angustiado.¨61 Ele mesmo confessou-se regularmente com o pároco de sua comunidade em Wittenberg, João Bugenhagen (1485-1558)62.
Para Lutero, a absolvição é ¨a parte principal e o melhor na confissão¨63. O que tradicionalmente se chamava de Penitência ou confissão, Lutero prefere chamá-lo de absolvição64. A palavra da absolvição ou do perdão que o confessor proclama ao pecador arrependido, é a palavra de Deus mesmo: ¨É a palavra de Deus e tão evidente como se o próprio Cristo a tivesse falado (…).¨65 Assim o pecador arrependido tem a certeza de que o perdão não é imaginação, invenção e auto-sugestão sua. Tem igualmente a certeza de que o perdão é dado realmente a ele, não a outro nem à comunidade como um todo. A absolvição é a aplicação bem pessoal do Evangelho à pessoa. Aqui, diz Lutero, a palavra do perdão ¨não pode atingir a ninguém senão somente a ti¨66.
Pela absolvição, o cristão recebe consolo e fortalecimento em meio a suas tentações, suas dúvidas, suas angústias e seu desespero; como Lutero mostrou detalhadamente, p. ex., na explicação das 95 teses, em 1518. O pecador atribulado
não tem paz nem consolação, a menos que se refugie junto ao poder [das chaves] da Igreja e, tendo posto a descoberto seus pecados e misérias através da confissão, peça consolação e remédio. Pois não conseguirá encontrar paz por seu próprio conselho ou auxílio; sim, por fim a tristeza seria transformada em desespero.67
Lutero insiste na certeza do perdão ao dizer:
A pessoa a ser absolvida (…) deve, com toda a diligência, tomar cuidado para não duvidar que seus pecados lhe estejam perdoados junto a Deus e deve ficar tranqüila em seu coração. Pois ainda que esteja incerta devido à perturbação de sua consciência (…), mesmo assim é obrigada a perseverar no julgamento do outro (…) por causa da palavra de Cristo [Mt 16.19], que não pode estar mentindo (…).A fé nesta palavra produzirá a paz de consciência (…). Nossa paz é Cristo, porém na fé.68
Naquele tempo Lutero ainda era da opinião de que cabe ao ministro ordenado administrar o poder das chaves: ¨Aqui o sacerdote (…) deve (…) desligá-lo [de sua culpa] e declará-lo desligado, dando-lhe, assim, paz de consciência.¨69 Mais tarde, porém, atribuiu a todos os cristãos esta tarefa. Importa que haja a ¨obra nobre e consolatória onde dois se reúnem e se aconselham, ajudam e consolam mutuamente; isto é algo bem fraternal e bonito: alguém revela sua doença e o outro lhe cura as feridas.¨70 Importa que haja perdão, seja pela absolvição (¨poder das chaves¨), seja ¨per mutuum colloquium et consolationem fratrum¨ [através de mútuo colóquio e consolação dos irmãos]71. Não importa se o perdão é proclamado por um ministro ordenado ou outro irmão ou irmã cristã. O confessor é apenas o ¨ministro¨ e servo da palavra divina do perdão. Assim a absolvição é o campo de atuação preferencial do sacerdócio geral de todos os batizados, mais do que a pregação pública do Evangelho e a administração pública dos sacramentos. Penitência e absolvição, a rigor, outra coisa não são senão volta ao Batismo, aplicação e vivência do Batismo.
(…) o batismo (…) também compreende o terceiro sacramento, que se chamou de penitência, o qual, propriamente, outra coisa não é que o batismo. Pois que outra coisa significa penitência senão atacar o velho homem [e a velha mulher] com seriedade e entrar em nova vida? Por isso, se vives na penitência, então andas no batismo, que não apenas significa essa vida nova, mas também a opera, inicia e promove. (…) Assim, o arrependimento outra coisa não é que um retorno ao batismo e [re-] aproximação dele (…).72
Coerente com a importância existencial e permanente que atribui à absolvição, Lutero chama o ofício das chaves ¨o dulcíssimo poder pelo qual devemos agradecer sumamente e do fundo do coração a Deus, que deu tal poder aos seres humanos. Esse poder é o único consolo dos pecadores e das consciências infelizes (…).¨73 No fim resume seu pensamento, em 1518, nas seguintes palavras:
¨(…) a remissão de Deus opera a graça, mas a remissão do sacerdote opera paz, a qual também é graça e dom de Deus, porque é a fé na remissão e na graça presentes.¨ Porém ¨a remissão não está firmada no sacerdote, mas na palavra de Cristo. (…) tua fé o recebe plenamente. Tão grande coisa é a palavra de Cristo e a fé nela.¨74
6. A VIDA CRISTÃ: DA PRISÃO DO DIABO À LIBERDADE DE CRISTO
Lutero descreveu toda a história da nossa salvação em seu conhecido hino ¨Cristãos, alegres jubilai¨ 75. Por um lado há a prisão de Satã, por outro o castelo forte de Deus. Estávamos aprisionados por Satã, mas Deus já abalou pela força de sua graça as muralhas da prisão, abrindo-nos as portas da mesma. Saímos da prisão. Agora estamos a caminho do castelo de Deus, onde encontraremos liberdade plena e definitiva. Os guardas da prisão de Satã perseguem-nos com seus cães adestrados para recapturar-nos. Dentro de nós, o velho Adão e a velha Eva são seus aliados valiosos. Porém Deus envia ao nosso encontro um poderosíssimo protetor. Ele nos traz o poder do perdão, que nos protege contra as mordidas dos cães diabólicos. Entre a prisão da culpa e o castelo do perdão definitivo estende-se nossa caminhada cristã. Nela, Cristo é nosso protetor e companheiro, do qual Lutero canta:
E disse em sua compaixão:
A minha mão segura.
Alcançarás a salvação,
eu venço a luta dura.
Pois eu sou teu e tu és meu;
onde eu estou, terás o céu.
Nada há de separar-nos.¨
Graças a este protetor e companheiro podemos cantar, em gratidão pelo perdão que ele nos deu:
Cristãos, alegres jubilai,
felizes exultando;
com fé e com fervor cantai,
a Deus glorificando.
O que por nós fez o Senhor,
por seu divino excelso amor,
custou-lhe a própria vida.‘
Notas
Palestra proferida em 18 de setembro de 1985, no Ciclo de Palestras sobre o tema ¨Culpa e perdão como temas teológicos¨, realizado pela Faculdade de Teologia em São Leopoldo no 29 semestre de 1985.
1 Populações indígenas aquelas que devem viver. Tempo e presença, Rio de Janeiro, (153):4, ago./set. 1979.
2 LÉON-PORTILLA, Miguel. A conquista da América Latina vista pelos índios; relatos astecas, maias e inces. Trad. de Augusto Angelo Zanatta. Petrópolis, Vozes, 1984. p. 19, 20.
3 BECKER, Ítala Irene Basile. O índio kaingá.ng e a colonização alemã. In: MÜLLER, Teimo Lauro, coord. 22 Simpósio de História da Imigração e Colonização Alemã no Rio Grande do Sul. São Leopoldo, 17 a 19 de setembro de 1976. s.n.t. [São Leopoldo, Rotermund] p. 45-69. — V. sobretudo o mapa entre as p. 56 e 57.
4 Ibid., p. 69.
5 SCHRÖDER, Ferdinand. Brasilien und Wittenberg; Ursprung und Gestaltung deutschen evangelischen Kirchentums in Brasilien [Brasil e Wittenberg; surgimento e formação da vida eclesiástica alemã no Brasil]. Berlin, Walther de Gruyter, 1936. p. 56-7.
6 AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagem pela Província do Rio Grande do Sul (1858). Trad. de Teodoro Cabral. Belo Horizonte, Itatiaia, 1980. p. 167-9. (Reconquista do Brasil, Nova Série, 17)
7 WA TR 5,439,32-5 (n2 6017).
8 Ibid., p. 440,7.
9 LUTERO, Martinho. Obras selecionadas; volume 1: Os primórdios; escritos de 1517 a 1519. São Leopoldo, Sinodal; Porto Alegre, Concórdia, 1987. p. 98-9.
10 GRISAR, Hartmann. Martin Luthers Leben und sein Werk [Vida e obra de Mar-tim Lutero]. Freiburg i. Br., Herder, 1926. p. 89.
11 BRECHT, Martin. Martin Luther; sem n Weg zur Reformation 1483-1521 [Martim Lutero. Seu caminho rumo à Reforma 1483-1521]. Stuttgart, Calwer, 1981. p. 86.
12 Artigos de Esmalcalde III, 3, 2. In: Livro de concórdia; as confissões da Igreja Evangélica Luterana. Trad. de Arnaldo Schüler. São Leopoldo, Sinodal; Porto Alegre, Concórdia, 1980. p. 325.
13 Catecismo maior 11,55. In: Livro de concórdia [v. n. anterior], p. 455.
14 Preleção sobre a Epístola de São Paulo aos Gálatas, publicada em 1535. In: WA 40/1,235,15-7.
15 Artigos de Esmalcalde II, 1, 5. In: Livro de concórdia [v. acima n. 12], p. 313.
16 ARAÚJO, João Dias de. Imagens de Jesus Cristo na cultura do povo brasileiro. In: MARASCHIN, Jaci C., ed. Quem é Jesus Cristo no Brasil? São Paulo, ASTE, 1974. p. 43-6. (Teologia no Brasil, 1)
17 LUTERO, Martinho. Obras selecionadas; volume 1 [v. acima n. 9], p. 249-56.
18 Da liberdade cristã. 3. ed. Trad. de Leônidas Boutin e Heinz Soboll. São Leopoldo, Sinodal, 1979. p. 19-20.
19 Catecismo maior II, 65. In: Livro de concórdia [v. acima n. 12], p. 456. — Cf. ALTHAUS, Paul. Die Theologie Martin Luthers [A teologia de Martim Lutero]. Gütersloh, Gerd Mohn, 1962. p. 161-71.
20 Prédica sobre Fp 2.5-12 para o Domingo de Ramos, no Sermonário para a Quaresma, de 1525. In: WA 17/11,244,29s.
21 Von Menschenlehre zu meiden und Antwort auf Sprüche, so man führet, Menschenlehre zu stärken [Sobre doutrina humana a ser evitada e resposta a trechos bíblicos citados para fortalecer doutrina humana], 1522. In: WA 10/11, 73,15s.
22 BRECHT, Martin. Martin Luther [v. acima n. 11], p. 90.
23 Em língua portuguesa v., p. ex., BRAKEMEIER, Gottfried. A Bíblia e a nossa vida. In_. Enfoques bíblicos. São Leopoldo, Sinodal, 1980. p. 67-70; SCHMIDT, Ervino. Autoridade da Sagrada Escritura e interpretação científica. Estudos teológicos, São Leopoldo, 19(2):85-8, 1979; FISCHER, Joachim. A Bíblia e a nossa vida. ibid., p. 73-6. — Nessas publicações trata-se de palestras proferidas na Faculdade de Teologia da IECLB em São Leopoldo, num Ciclo de Palestras sobre o tema geral ¨A Bíblia e nós¨, no 29 semestre de 1978.
24 LUTERO, Martinho. Explicações do debate sobre o valor das indulgências. In¨— Obras selecionadas; volume 1 [v. acima n. 9], p. 57.
25 WA TR 1,245,11s. (n9 526), primavera de 1533.
26 WA TR 1,512,19s. (n9 1017), 19- metade cia década de 30 do século XVI.
27 BRECHT, Martin. Martin Luther [v. acima n. 11], p. 87.
28 Carta de 17 de setembro de 1523. In: WA Br 3,155,7-156,1.
29 WA TR 1,80,6s. (n9 173), fev./mar. de 1532.
30 Prédica no Domingo de Ramos, 20 de março de 1524, sobre a confissão e a Ceia do Senhor. In: WA 15,484,14s.
31 LUTERO, Marfim. Da liberdade cristã [v. acima n. 18], p. 40s.
32 A Declaração Teológica de Barmen, teses 1 e 2. In: IGREJA PRESBITERIANA UNIDA DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, ed. A Constituição da Igreja Presbiteriana Unida dos Estados Unidos da América; parte I; livro de confissões. São Paulo, Missão Presbiteriana do Brasil Central, 1969. 8.11,14.
33 LUTERO, Martim. Da liberdade cristã [v. acima n. 18], p. 30.
34 Ibid., p. 48.
35 Prédica sobre Rm 12.6-16, para o 22 Domingo após Epifania, no Sermonário para a Quaresma, de 1525. In: WA 17/11,37,11-3.
36 LUTERO, Martim. Catecismo maior 11,51. In: Livro de concórdia [v. acima n. 121, p. 454.
37 Eine kurze Form der zehn Gebote, eine kurze Form des Glaubens, eine kurze Form des Vaterunsers [Uma forma breve dos Dez Mandamentos, uma forma breve do Credo, uma forma breve do Pai Nosso], 1520. In: WA 7,219,11-3. — Betbüchlein [Livrinho de oração], 1522. WA 10/11,394,6-8.
38 LUTERO, Marfim. Catecismo maior 111,93. In: Livro de concórdia [v. acima n. 12], p. 470.
39 Catecismo maior 111,94. In: ibid.
40 Prédica sobre Mt 18.21-35, para o 22º. Domingo após Trindade, no Sermonário para o lar cristão, de 1544. In: WA 52,521,26s.
41 Confissão de Augsburgo 11,1, texto latino. In: Livro de concórdia [v. acima n. 12], p. 64.
42 LUTERO, Marfim. Catecismo maior I,1ss. In: ibid., p. 394-5.
43 STROHM, Theodor. Luthers Wirtschafts- und Sozialethik [A ética econômica e social de Lutero]. In: JUNGHANS, Helmar, ed. Leben und Werk Martin Luthers von 1526 bis 1546; Festgabe zu seinem 500. Geburtstag [Vida e obra de Martim Lutero de 1526 até 1546; homenagem por ocasião do seu 500º. aniversário]. Berlin, Evangelische Verlagsanstalt, 1983. v. 1, p. 207.
44 Prédica sobre Lc 15.1-10, para o 3º. Domingo após Trindade, 6 de julho de 1522. In: WA 10/111,32-5.
45 Ibid., p. 218,26-30.
46 LUTERO, Martinho. Debate para o esclarecimento do valor das indulgências. Obras selecionadas; volume 1 [v. acima n. 9], p. 22.
47 BRECHT, Martin. Martin Luther [v. acima n. 11], p. 173; VERCRUYSSE, Jos E. Schlüsselgewalt und Beichte bei Luther [Poder das chaves e confissão em Lutero]. In: JUNGHANS, Helmar, ed. Leben und Werk Martin Luthers von 1526 bis 1546 [v. acima n. 43], p. 153.
48 VERCRUYSSE, Jos E. Schlüsselgewalt und Beichte bei Luther [v. n. anterior], p. 161.
49 Catecismo menor 11,6. In: Livro de concórdia [v. acima n. 12], p. 372.
50 Catecismo maior 11,55s., In: ibid., p. 455.
51 Ibid.
52 Mateus 18-24 explicado em prédicas, 1537-1540. In: WA 47,298,1-4 (explicação de Mt 18.19s.).
53 Prédicas sobre Mateus 5-7, 1530-1532. In: WA 32,425,3s. (explicação de Mt 6.14s.).
54 Art. Esm. 111,8,1. In: Livro de concórdia [v. acima n. 12], p. 335.
55 Von den Konziliis und Kirchen [Dos concílios e da Igreja], 1539. In: WA 50,631,36-632,20. Wider Hans Worst [Contra Hans Worst], 1541. In: WA 51,480,31-481,23. — Cf. FISCHER, Joachim. O conceito ¨Igreja¨ de Lutero segundo seus escritos ¨Dos concílios e da Igreja¨ e ¨Contra Hans Worst¨. Trad. de Werner Dietz e Rubens Horst. Estudos teológicos, São Leopoldo, 6(4): 166,167-8, 1966.
56 VERCRUYSSE, Jos E. Schlüsselgewalt und Beichte bei Luther [v. acima n. 47], p. 155.
57 Ibid., p. 159-60.
58 Prédica no Domingo Reminiscere, 16 de março de 1522. In: WA 10/111, 61,13-62,2.
59 Catecismo menor V. In: Livro de concórdia [v. acima n. 12], p. 377-8.
60 Der grasse Katechismus deutsch [O Catecismo maior em alemão]. In: Die Bekenntnisschriften der evangelisch-lutherischen Kirche [Os escritos confessionais da Igreja Evangélica Luterana]. 2. ed. Gõttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1955. p. 725-33.
61 Sendschreiben an dia zu Frankfurt a. M. [Carta aberta ao conselho e à comunidade de Frankfurt do Meno], 1533. In: WA 30/111,569,32-4.
62 VERCRUYSSE, Jos E. Schlüsselgewalt und Beichte bei Luther [v. acima n. 47], p. 160.
63 Vermahnung an die Geistlichen, versammelt auf dem Reichstag zu Augsburg [Admoestação aos clérigos reunidos na Dieta de Augsburgo], 1530. In: WA 30/11,287,28.
64 VERCRUYSSE, Jos E. Schlüsselgewalt und Beichte bei Luther [v. acima n. 47], p. 158.
65 Prédica sobre Mt 21.1ss., no Domingo de Ramos, 21 de março de 1529. In: WA 29,143,9s.
66 Prédica sobre a confissão e a Ceia do Senhor, no Domingo de Ramos, 20 de março de 1524. In: WA 15,486,33.
67 Explicações do debate sobre o valor das indulgências. In: LUTERO, Martinho. Obras selecionadas; volume 1 [v. acima n. 9], p. 76.
68 Ibid.
69 Ibid.
70 Prédica sobre a confissão e a Ceia do Senhor, no Domingo de Ramos, 20 de março de 1524. In: WA 15,487,29-32.
71 LUTERO, Martim. Art. Esm. 111,4. In: Livro de concórdia fv. acima n. 12], p. 332.
72 Catecismo maior IV,74,79. In: ibid., p. 484-5.
73 Explicações do debate sobre o valor das indulgências, In: LUTERO, Martinho. Obras selecionadas; volume 1 [v. acima n. 9], p. 76.
74 Ibid., p. 77, 79.
75 Hinos do povo de Deus; hinário da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. 3. ed. São Leopoldo, Sinodal, 1982. Hino 155.
76 ibid., estr. 7.
77 Ibid., estr. 1.
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