Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: Daniel 7.9-10, 13-14
Leituras: João 18.33-37 e Apocalipse 1.4b-8
Autor: Nilo Christmann
Data Litúrgica: 26º Domingo após Pentecostes (Cristo Rei)
Data da Pregação: 22/11/2015
1. Introdução
Estamos no último domingo do ano eclesiástico: Domingo de Cristo Rei. Os três textos previstos têm expressiva relação entre si. No conjunto testemunham o senhorio de Deus sobre a história e apontam para o reino de Deus, cujo rei é Jesus Cristo.
Jo 18.33-37 mostra Pilatos inquirindo Jesus, a fim de ter argumentos para condená-lo. A pergunta central é se Jesus se autodenomina rei dos judeus. É um diálogo meio truncado, porque o entendimento que Pilatos e Jesus têm sobre o assunto parte de princípios distintos. Jesus não nega ser rei, mas deixa claro que o seu reino não é deste mundo. Jesus é rei na perspectiva divina e não em perspectiva humana.
O testemunho de João, em Apocalipse, confirma que Jesus é rei e a ele se refere como “o Soberano dos reis da terra” (v. 5). O texto traz uma preciosa qualificação desse rei: aquele que nos ama, que por seu sangue libertou-nos dos pecados e que nos constituiu reino de sacerdotes. A afirmação de que o rei “vem com as nuvens” (v. 7) estabelece uma estreita conexão com a visão de Daniel, pois “eis que vinha com as nuvens do céu um como o Filho do Homem” (Dn 7.13).
É importante perceber de antemão que a visão de Daniel aponta para um reino que será eterno. Em Jesus, esse reino é personificado. Chegará o dia em que será definitivo; afinal, Deus é “o Alfa e o Ômega, aquele que é, que era e que há de vir” (Ap 1.8). Assim também nós pedimos cada vez que oramos o Pai-Nosso: “Venha o teu reino!”.
O pregador e a pregadora terão uma boa oportunidade de relacionar os três textos entre si e com o último domingo do ano litúrgico. Mas, para tanto, importa aprofundar o texto da pregação propriamente dito.
2. Considerações exegéticas
Em Proclamar Libertação, há poucos auxílios homiléticos para textos do livro de Daniel. O texto indicado foi abordado uma única vez (PL XVI, p. 311), ainda assim com outro recorte para a perícope.
Daniel retrata acontecimentos do exílio da Babilônia. O capítulo 7 faz referência ao rei Belsazar, que governou entre 552 e 551 a.C., portanto mais de 50 anos depois da deportação de Daniel, sob o reinado de Jeoaquim. No entanto, há certo consenso que o livro de Daniel foi escrito, da forma como o conhecemos, por volta de 167-164 a.C. É o tempo do domínio selêucida em Israel sob Antíoco IV. Um tempo de forte imposição da cultura helênica. Nesse contexto, a mensagem do livro de Daniel representava uma resistência “pacífica” como alternativa ao levante armado proposto pelos macabeus.
Os capítulos 1 a 6 contêm material histórico, com Daniel interpretando sonhos e visões de outras pessoas (governantes). Entre os capítulos 7 e 12 predominam textos preditivos/proféticos. Agora, quem tem os sonhos/visões é o próprio Daniel, que conta com ajuda de “um dos que estavam perto” (v. 16) para entender o significado dos mesmos. Os pesquisadores entendem o capítulo 7, especialmente o texto previsto para a pregação, como o ponto alto do livro.
Será difícil pregar sobre Dn 7.9-10,13-14 sem fazer referência aos versículos anteriores. Esses relatam um sonho de Daniel e visões que foram colocadas diante dos seus olhos. Quatro seres estranhos e assustadores, diferentes um do outro, emergem do mar. Os quatro seres representam diversos reinados (v. 17). A visão dos seres ameaçadores dá lugar, subitamente, a outro cenário. O que o profeta vê agora é totalmente diferente.
O v. 9 introduz um cenário de julgamento. O tribunal é composto. Quem se assenta no trono é o Ancião de Dias, que possui barba branca e cabelos como lã. O próprio trono eram chamas de fogo. A expressão Ancião de Dias é inusitada. Aparece apenas no Livro de Enoque. Mas a sua descrição é esclarecedora. O branco é a cor da pureza e da justiça, associadas pelos profetas às ações e in- tenções de Deus (Is 1.16-18 e Zc 3.1-5). Cabelos e roupas brancas são as vestes de juiz do Deus de Israel. Os reinos descritos na primeira parte da visão são de animais ferozes, predadores e monstruosos. Em contraste, o Ancião de Dias, que se assenta no trono, assemelha-se a um ser humano.
O v. 10 amplia a descrição do cenário. Diante do Ancião de Dias saía um rio de fogo. A presença de Deus relacionada a fogo não é incomum. Em Êx 3.3, a teofania dá-se através de uma sarça ardente. O fogo também está relacionado ao juízo de Deus, assim em Ml 4.1. Na linguagem apocalíptica de Daniel, impressionam as semelhanças com o livro de Apocalipse. As miríades de miríades – muita gente – têm grande similaridade com Ap 5.11. As semelhanças também podem ser percebidas pela presença do trono, do juiz, do tribunal e dos livros.
Quem estuda o texto logo pergunta pela razão da não inclusão dos v. 11 e 12. Nesses dois versículos, é retomada a história dos animais ameaçadores do início do capítulo. Mesmo sendo uma espécie de digressão, é relevante perceber como os reinos deste mundo capitulam diante do poder de Deus. Sequer há es- paço para a resistência. Simplesmente perdem o domínio e, no máximo, lhes é concedida uma sobrevida por tempo determinado.
Não se pode afirmar com certeza a quem o escritor se refere no v. 13 ao dizer que com as nuvens do céu vinha “um como o Filho do Homem”. Mais uma vez, no entanto, as características humanas estão presentes. Ele se achega ao Ancião de Dias. Se do mar emergem os reinos que ameaçam a vida do povo de Deus, dos céus (indicando a transcendência) vem aquele que não esquece seu povo, que lhe fará justiça, mesmo quando a tribulação do presente parece afirmar o contrário. No Antigo Testamento estabelece-se, com certa frequência, uma relação entre nuvens e presença de Deus. Assim, por exemplo, em Êx 16.10, a glória do Senhor apareceu na nuvem diante da congregação.
Literalmente, a expressão “um como o Filho do Homem” deveria ser traduzida por “um como um ser humano”. É uma expressão que influenciou os evangelhos, em que o título “Filho do Homem” recebe um novo significado na pessoa de Jesus Cristo. O “um como um ser humano” recebe do Ancião de Dias o domínio, a glória e o reino. Ele será servido e terá domínio eterno, e seu reino jamais será destruído.
Ainda em relação ao texto, um detalhe interessante: o estar face a face com Deus, a rigor, é insuportável para o ser humano. Vários personagens do Antigo Testamento o comprovam, entre eles Moisés e Elias. Semelhante também foi a experiência de Pedro, Tiago e João no Monte da Transfiguração. Daniel teve um sonho, uma visão. A experiência foi tão marcante, que o deixou perturbado (v. 15) e pálido (v. 28). Para ele foi como estar na presença do próprio Deus. Contudo o que foi levado a ver não tinha o objetivo de amedrontar, mas sim ajudar a perseverar na fé. Tanto assim que Daniel guardou todas “essas coisas no coração” (v. 28).
3. Meditação
Daniel é um exemplo de vida de fé. Essa é a tônica do livro que leva o nome do profeta. Por um lado, a sua fidelidade a Deus, quando colocada à prova, mostra-se inabalável. É capaz de enfrentar os leões e a fornalha ardente. Por outro lado, não se submete simplesmente ao poder constituído, resistindo ao mesmo através da palavra. O enfrentamento não se dá pela violência ou pela resistência armada, mas através de uma postura calcada em suas convicções de fé. Daniel não tem receio de ocupar cargos no governo. Faz deles um meio de dar testemunho de seu Deus. Não abre mão de princípios. Sua ética é coerente com o que crê. O livro de Daniel escancara as mazelas dos poderes constituídos pelos seres humanos, especialmente quando se arrogam o direito de ocupar um lugar que não lhes cabe, assumindo o lugar que pertence a Deus. A divinização do ser humano é duramente criticada. O sonho e a visão de Daniel apontam para o fim dos poderes humanos e mostram, de forma inequívoca, que Deus é o Senhor da História. Um Deus que possui traços “humanos”, em contraposição aos reinos que, exemplificados nos monstros que emergem do mar, são assustadores, totalitários e devoram o que está à sua frente. O Deus que se manifesta no sonho de Daniel mostra-se infinitamente mais poderoso, e o seu reinado é caracterizado pela justiça.
A visão de Daniel é sinal de esperança para o povo de Deus, que enfrenta o sofrimento decorrente do abuso do poder. A ausência de Deus em meio a perseguições e outras conjunturas adversas é apenas aparente.
Não faz muito tempo, uma liderança engajada compartilhou a percepção de que os ministros e ministras têm falado pouco em suas pregações sobre vida eterna. Refletindo sobre a observação feita, concluí que ele tem razão. Houve um tempo em que fomos levados a perceber que a teologia precisava encarnar-se de forma mais decisiva na realidade, deixando de transferir para o futuro a libertação que Deus quer para seu povo. O pêndulo voltou-se muito mais para a imanência de Deus do que para a sua transcendência. É interessante observar que a teologia da prosperidade, que obviamente parte de outra leitura da realidade, também acentua a imanência através de um conceito de bênção imediatista. Há pouco espaço para falar do sofrimento humano, que persiste/permanece, bem como para falar da morte.
A linguagem de Daniel, a partir do sonho e da visão, ainda que enigmática, aponta de forma inequívoca para o juízo de Deus e para a eternidade: “o seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído” (v. 14). Essa também foi a dimensão que Pilatos não conseguiu entender quando queria saber se Jesus era rei e Jesus lhe disse que o seu reino não é deste mundo. O texto de Apocalipse vai na mesma direção ao referir-se a Deus como aquele que era, que é e que há de vir (v. 4 e 8).
O Domingo de Cristo Rei, a partir dos textos previstos, permite sublinhar a realidade última que espera pelos filhos e pelas filhas de Deus. A vida não se resume à nossa rápida passagem por este mundo. O mundo, com todas as mazelas escancaradas diariamente – violência, injustiça, sofrimento, abuso de poder –, não foi abandonado por Deus. Antes, assim como nos tempos de Daniel, comprova a dificuldade do ser humano em deixar Deus ser Deus. Mas essa é uma realidade que tem os seus dias contados. Nós não sabemos, mas Deus sabe quantos são.
Refletir, falar e testemunhar do reino de Deus definitivo, quando ele será tudo em todos, não precisa ser alienante. Ao contrário, a viva esperança de que nem tudo se resume a esta vida é combustível para fazer a diferença já no presente. Nesse aspecto, a própria vida de Daniel é um belo exemplo. Em nosso tempo, muitas vezes, os cristãos deixam de envolver-se em questões sociais e no âmbito político porque a corrupção impera. Quem ousa envolver-se sabe o quanto é difícil sustentar a ética nos meandros do poder. Não são poucos os que sucumbem. Outros, porém, conseguem fazer a diferença, assim como Daniel fez.
Vivemos um tempo no qual tudo passa e envelhece rapidamente. Vários produtos são descartados com pouco tempo de uso, pois já se tornaram ultrapassados diante do lançamento de uma nova tecnologia. Também as relações humanas se fragilizam. Tornam-se superficiais e descartáveis. O sentimento de pertença à comunidade cristã está igualmente fragilizado. Falar do que é eterno nessa realidade é, num primeiro momento, fora de propósito. E, no entanto, pode ser palavra com grande poder de consolar e instigar. Afinal, não é difícil desmascarar a loucura implícita em todos os imediatismos e nas relações superficiais. O reino que Daniel viu no seu sonho será eterno, não passará e não será destruído – esperança para o presente e para o futuro.
4. Imagens para a prédica
a) O profeta Daniel tornou-se conhecido e respeitado pela capacidade de interpretar sonhos. Deus o inspirava para tanto. Como são poucas as pregações previstas sobre o livro de Daniel, tem-se a oportunidade de contar de forma breve a história de Daniel, destacando o espaço que ocupou no reino da Babilônia.
b) Uma imagem que pode ajudar na pregação é a do pesadelo. Quando o nosso sonho tem característica de pesadelo, ficamos aliviados ao acordar e per- ceber que era “apenas” um pesadelo. O texto de Daniel previsto para pregação representa, em seu tempo, esperança para um contexto de regimes totalitários e opressivos.
c) Há várias situações na vida das pessoas caracterizadas como pesadelos: o acidente, o diagnóstico de uma doença, a perda do emprego… Há momentos em que perguntamos: Isso não vai acabar nunca? Saber que Deus é um juiz justo e amoroso e que a nossa vida está em suas mãos, em qualquer circunstância, é um grande alento. É como um belo alvorecer depois de uma noite de pesadelos.
d) Outro exercício interessante pode ser pedir que a comunidade reflita por alguns instantes sobre aquilo que cada qual considera mais precioso em sua vida.
Na sequência, perguntar qual dessas preciosidades ainda existirá daqui a cem anos. Trata-se de uma forma de ajudar as pessoas a refletir sobre a transitoriedade das coisas humanas e, ao mesmo tempo, permite apontar para a dimensão da eternidade – Domingo de Cristo Rei.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados:
Reconhecer que nos deixamos seduzir por uma sociedade que tende a descartar as pessoas, assim como se descartam os objetos depois de um breve tempo de uso. Reconhecer que somos imediatistas e que temos dificuldade para colocar a eternidade em nosso horizonte.
Kyrie:
Momento de lembrar todas as pessoas que sofrem por abuso de poder pelo mundo afora, especialmente crianças, mulheres e idosos.
Hinos:
Jesus Cristo é Rei e Senhor (HPD I, 95); Deus é Castelo Forte e Bom (HPD I, 97).
Bibliografia
BALDWIN, Joyce G. Daniel – Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova e Mundo Cristão, 1897.
LÜDY, José Héctor. Daniel. In: OPORTO, Santiago G. e GARCÍA, Miguel S. (Editores). Comentário ao Antigo Testamento II. São Paulo: Ave Maria, 2004.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).