Mateus 22.15-22
Prezada Comunidade:
Na época de Jesus, muita gente achava que a arrecadação de tributos para o império romano não era correta, pois esses eram cobrados e arrecadados dos judeus e na Palestina, mas revertiam em benefício dos romanos e de Roma, pois a Palestina estava dominada pelos romanos. Então o povo pagava a um governo do qual pouco ou nada recebia em troca.
Essa é uma crítica que muito se ouve ainda hoje aqui no Brasil. Temos uma das mais altas taxas de impostos do mundo, mas, quando comparado com outros países, o retorno social desses impostos é muito pequeno. Para onde vai então o dinheiro dos impostos? Hoje já sabemos: vai para a máquina pública inchada, vai para o excessivo número de funcionários públicos, vai para o grande número de ministérios e de cargos comissionados; vai para o exagerado número de vereadores, deputados estaduais, federais e senadores – que na maioria das vezes não produzem nada – vai para os salários exorbitantes dos juízes, vai para as obras públicas superfaturadas, vai para a corrupção que é estimada anualmente em torno de 100 bilhões de reais, aproximadamente 10% de toda a carga tributária brasileira (quatro vezes o que se arrecada com o imposto de renda sobre a pessoa física).
Se perguntamos sobre a origem dos tributos na história da humanidade, então devemos olhar para o Antigo Testamento. Lá poderemos ver que o pagamento de tributos começou com o surgimento do Estado. A maioria dos reis eram líderes militares, que lutavam contra exércitos invasores. Para fazer isso, esses líderes militares cobravam tributos dos povos que protegiam. Quando as pessoas não pagavam os tributos, então os líderes militares voltavam o exército contra o seu próprio povo.
Portanto, os tributos nasceram junto com o Estado. E o que ameaça a existência do Estado é o não pagamento de tributos. Esse um perigo mortal para o Estado. Por isso, qualquer insinuação ou tentativa de não pagamento de tributos sempre foi severamente reprimida. Certamente você conhece exemplos assim da história do Brasil em sua região ou da história de outros países da América Latina, onde revoluções surgiram a partir de um protesto contra o pagamento de tributos.
Aqui em Minas Gerais – além da conhecida Inconfidência Mineira – cujo mártir foi Tiradentes enforcado e esquartejado em 21 de abril de 1792, muitas outras histórias populares falam dos protestos contra o pagamento de tributos exigidos pelo governo português e depois também pelo império do Brasil. Expressões como o “quinto dos infernos” e “lavar a égua” surgiram desses protestos. O “quinto” era o imposto de 20% que os donos das minas deviam pagar ao Estado. Era algo maldito, por isso era o “quinto dos infernos”. Por outro lado, “lavar a égua” era uma das formas de sonegar o pagamento do quinto (20%). Na região de Ouro Preto(MG), por exemplo, o ouro geralmente era em forma de pequenas partículas, misturadas com o barro. Para sonegar o pagamento do quinto, os donos das minas esfregavam o barro com partículas de ouro no corpo das éguas e das mulas de carga. Assim os animais passavam pelos postos de controle. Depois, em casa, os animais eram lavados e o ouro retirado. Desta forma surgiu a expressão “lavar a égua”.
Mas sonegar o pagamento de tributos sempre foi algo muito perigoso, que muitas vezes se pagou com a própria vida. Uma grande parte dos donos de minas que fizeram isso aqui em Minas Gerais foram torturados, executados e seus corpos arrastados pelas ruas até que se despedaçavam. Essa crueldade servia para intimidar novas tentativas.
Certamente Jesus percebeu que a posição referente ao pagamento ou não de tributos era uma questão muito perigosa. Com a pergunta sobre se “é ou não é contra a Lei dos judeus pagar impostos ao Imperador romano?” os fariseus e os representantes do partido de Herodes queriam jogar Jesus na fogueira. César, como imperador romano, representava as forças militares de ocupação na Palestina (os romanos tinham conquistado a Palestina desde 63 a.C. e cobravam impostos dos judeus para manter o território em “paz e segurança”). A maioria dos judeus era contrária a esse domínio estrangeiro na Palestina. Se, pois, Jesus dissesse que era a favor do pagamento de tributos “a César”, estaria se incompatibilizando com o povo, que era o que mais sofria com a alta tributação. Mas se Jesus dissesse que era contra o pagamento de tributos certamente seria perseguido pelos romanos, pois uma negação da legitimidade do pagamento de tributos aos romanos equivalia a uma sentença de prisão ou mesmo de morte (Lc 20.20; 23.1-2).
Como então reage Jesus? Jesus pede que lhe tragam uma moeda cunhada pelo império romano. E a resposta final de Jesus é: Deem a César o que é de César e deem a Deus o que é de Deus.
Ao dizer: “deem a César o que é de César” Jesus diz que aquelas moedas que ele solicitou com a efígie e a inscrição de César deveriam ser devolvidas (= apodídomi) ao imperador romano, por terem sido cunhadas a seu mando e, portanto, lhe pertencem. Ao que parece Jesus reconhece a autoridade dos romanos, mas ao mesmo tempo relativiza o seu poder, sugerindo que o poder dos romanos está representado e limitado somente por essas moedas.
E então acrescenta: deem a Deus o que é de Deus. Para dar a Deus as coisas de Deus, é preciso que esteja claro o que, afinal, é de Deus? Qualquer judeu responderia com relativa facilidade essa pergunta. De Deus, segundo o Antigo Testamento, é “toda a terra” (Dt 19.5; cf. 26.8s; Sl 136.22), e, portanto, também a terra da Palestina, que os romanos consideravam como sendo sua após a conquista de Israel; ou, como diz mais detalhadamente o Salmo 24.1: “Ao Senhor pertencem a terra e tudo o que nela se contém, o mundo e os que nele habitam”. Os governos – César, por exemplo – não “mandam” sobre as pessoas, só administram a vida pública; quem “manda” nas pessoas ou as “governa” é, em última análise, aquele a quem elas pertencem: Deus. Além disso, pertencem a Deus os próprios reis e nações: “Por meu intermédio reinam os reis… governam os príncipes, os nobres e todos os juízes da terra” (Pv 8.15). Numa frase: há coisas que cabe dar a César, ao imperador, as autoridades, aos governos; mas também essas coisas e as próprias autoridades estão sob uma soberania ainda maior, que é o reinado de Deus. Deus é a instância última, perante a qual tudo tem que ser responsabilizado e a quem tudo deve ser dado e entregue.
Portanto, a resposta de Jesus não separa Deus da administração política da vontade de Deus e ainda nos alerta que ser cristão é assumir uma responsabilidade social. É participar e viver eticamente na família, na comunidade e na sociedade. Somos incentivados a viver nossa fé em testemunho diário, pois não somos cristãos só quando estamos na igreja. Somos chamados a viver a fé na vida. Fé e vida são inseparáveis.
Um dos documentos confessionais da Igreja Luterana é a Confissão de Augsburgo de 25 de junho de 1530. No Artigo 16 lemos que “toda autoridade, os governos e as leis são instituídos por Deus e que e que toda pessoa cristã tem o dever de estar sujeito à autoridade e de obedecer-lhe os mandamentos e as leis em tudo que não envolva pecado. Mas se não é possível obedecer à ordem da autoridade sem pecar, mais importa então obedecer a Deus que aos homens (Atos 5)”. Portanto, para a igreja luterana a política e a economia são formas de organizar a sociedade, visando o bem-estar integral de todas as pessoas. Deus quer usar essas instituições do Estado para realizar a sua vontade. Quando o Estado abusar de sua autoridade ou as autoridades e instituições políticas se desviarem de seu papel de servidores do povo, então essa autoridade ou esse Estado ainda continuam instituídos por Deus, mas o que esse Estado ou essas autoridades estão fazendo já não será vontade de Deus. Nesse caso, a pessoa cristã é chamada a resistir – em nome de Deus – ainda que isso signifique desobediência civil. O amor ao próximo implica em denunciar as injustiças e que a voz profética da Comunidade se faça ouvir (Catecumenato Permanente). Por isso, não somente na esfera particular, mas também na esfera pública Deus deseja a nossa atuação cristã. Cabe a igreja ser uma consciência da sociedade e empenhar-se na vigilância para que a política e a economia tenham como objetivo o bem-estar integral de todas as pessoas.
A IECLB tem se manifestado em vários momentos sobre a unidade que existe entre fé e posição política. Essas coisas não são excludentes. Na mensagem às Comunidades do XIII Concílio Geral da IECLB realizado em 1982 lemos que “como Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil não podemos ficar calados e acomodados diante da realidade de injustiça social e de corrupção institucional. É dever das Comunidades, dos membros, dos pastores(as) a se engajarem e a promoverem mudanças para que a terra e suas riquezas – no campo e na cidade – sejam melhor distribuídas e usadas, e que para isso devemos apoiar campanhas de ampla informação sobre os problemas agrários e urbanos, apoiar os pequenos agricultores (e a agricultura familiar), assumir e defender as reivindicações dos movimentos sociais em suas bases, como as associações de bairro, atingidos por barragem, proteção ambiental, além de inúmeras outras formas de atuação onde o amor de Deus quer se tornar vivo e real entre as pessoas.”
Portanto, a teologia luterana tem o Estado como instrumento da ação de Deus no mundo. Os governos e instituições públicas estão à serviço de Deus. O Estado para cumprir suas funções carece de receitas tributárias. O imposto é o recurso mais corriqueiro para viabilizar as ações do Estado na sociedade. Os impostos são pagos pelos cidadãos e a sociedade em geral. Pagar impostos significa contribuir para a missão de Deus através do Estado. Não se trata aqui de discutir se devemos pagar impostos ou não. Importante é reconhecer o princípio teológico que vê a ação de Deus no braço estatal e nas demais instituições sociais e políticas. Desta forma, como pessoas cristãs devemos cumprir nossas obrigações tributárias. Quando Jesus diz que “deem a César o que é de César” isso implica que não devemos sonegar o que é de César, mas cumprir com nossas obrigações civis.
Uma vez que cumprimos com nossas obrigações, então temos também o dever de fazer um acompanhamento criterioso do uso e aplicação dos impostos pagos ao Estado. Os impostos são recursos do povo e não podem ser mal administrados. Quando isso acontece, então Jesus nos chama a ser “o sal da terra!”. O sal tem a qualidade de conservar e evitar a deterioração de tecidos vivos. Impede a podridão e a corrupção. Os cristãos devem estar presentes na sociedade. Dissolvem-se em seu interior para manter o tecido social segundo os desígnios de Deus. O Estado e as instituições políticas existem para servir e promover o bem-estar de todas as pessoas. Essa é a missão de Deus para o Estado e as instituições políticas. Dar a Deus o que é de Deus significa então reconhecer que tudo é de Deus – também o Estado e as instituições políticas – e que a sua vontade deve ser realizada na política e na economia.
Portanto, quando políticos, governantes e funcionários usam recursos públicos para proveito próprio; quando órgãos legislativos abusam de seu poder para legislarem em causa própria; quando integrantes do poder judiciário decidem por vultosos salários para si próprios, quando integrantes de todos os poderes beneficiam parentes com cargos públicos, nesse momento Jesus nos lembra que isso não é servir para o bem estar de todas as pessoas. Com essas coisas o Estado e as instituições políticas se desviaram da vontade de Deus e, por isso, conforme a confessionalidade luterana (Confissão de Augsburgo) devemos continuar pagando os tributos, mas também podemos e devemos resistir aos que administram o Estado e as instituições políticas, pois importa obedecer a Deus que aos homens (Atos 5). Omitir-se seria o mesmo que concordar com a evolução desse câncer que vai se espalhando pelo tecido social e vai destruindo a vida em sociedade, pervertendo as novas gerações e agravando os problemas da desigualdade e da exclusão social.
Deus quer vida digna para todas as pessoas, especialmente para as que mais dela carecem. Por isso, como cristãos, cientes de nossa cidadania, devemos acompanhar e fiscalizar as pessoas eleitas para cargos públicos; devemos resistir a todo e qualquer tipo de corrupção e denunciar todo tipo de sonegação; aos políticos, governantes, legisladores, promotores e juízes devemos obediência devida somente quando eles atuarem com responsabilidade conforme a vontade de Deus.
Portanto, essa é uma das formas de atualizar essas palavras de Jesus: ”Deem a César o que é de César e deem a Deus o que é de Deus”.
Amém.